Migalhas de Peso

A homologação de acordo extrajudicial como negócio jurídico processual

Há necessidade de processo prévio como elemento supressor da falta de interesse de agir?

19/12/2019

Sem dúvida, uma das maiores dificuldades enfrentadas pelo Poder Judiciário atualmente diz respeito ao gigantesco número de processos que são ajuizados diariamente perante os Tribunais de Justiça, desembocando, no ano de 2014, mais de 99,7 milhões de processos que tramitaram perante o Judiciário Brasileiro, conforme dados do CNJ obtidos por meio do levantamento anual Justiça em Números. Cada juiz recebe, na média, 1,5 mil processos por ano!

O resultado é um efeito cascata que culmina, muitas vezes, na má prestação da tutela jurisdicional pelos magistrados, sobrecarregados nas Varas, contando muitas vezes com infraestrutura precária, baixo número de serventuários. Enfim, quando olhamos o quadro por completo, nos deparamos com um cenário em que todos saem perdendo, não só o Judiciário, mas a Sociedade como um todo.

Para contornar este cenário apocalíptico, a edição da lei 13.105, de 16 de março de 2015 – Novo Código de Processo Civil – ostenta como precípuo princípio a celeridade processual, aliado a autocomposição das partes, estimulado pelos próprios Serventuários da Justiça, à exemplo da mediação e conciliação, plantando a semente para a solução pacífica dos conflitos judiciais.

Neste sentido, o artigo 190, do citado Códex, assim dispõe:

“Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.

Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.”

O caput do art. 190, do CPC, como bem ensina o festejado doutrinador Fredie Didier Jr., em sua obra Curdo de Direito Processual Civil1, é uma cláusula geral, da qual se extrai o subprincípio da atipicidade da negociação processual. Subprincípio, porque serve à concretização do princípio de respeito ao autorregramento da vontade no processo. O negócio processual atípico tem por objeto as situações jurídicas processuais – ônus, faculdade, deveres e poderes (“poderes”, neste caso, significa qualquer situação jurídica ativa, o que inclui direitos subjetivos, direitos potestativos e podres propriamente ditos).

Nesse diapasão, o comando legal ostenta clareza solar: versando o processo sobre direitos que admitem autocomposição¸ poderão as partes estipular mudanças no procedimento, de tal forma que, ao Estado Juiz, é permitido apenas o controle da validade das convenções, quando declarará – de ofício ou a requerimento – a nulidade ou abusividade constante no instrumento. A título de exemplo de negócios processuais atípicos permitidos pelo art. 190 citamos: ampliação ou redução de prazos, acordo de instância única, superação de preclusão, substituição de bem penhorado, rateio de despesas processuais, dispensa de assistente técnico, remoção do efeito suspensivo da apelação e etc.

Trata-se de regra de inspiração processualista de cunho liberal, negocial, completamente voltada à premiação da vontade das partes, em especial ao Princípio do Autorregramento da Vontade dos sujeitos processuais. Exemplo disso é a valorização, na atual sistemática, da conciliação, da mediação, da arbitragem, dos negócios jurídicos processuais, da previsão do Princípio da Cooperação (artigo 6º, CPC).

Neste sentido, comungam deste entendimento os renomados doutrinadores a) Prof. Teresa Arruda Alvim Wambier2, b) Prof. Luiz Guilherme Marinoni3, c) Prof. Cassio Scarpinella Bueno4, além do Prof. José Roberto dos Santos Bedaque.

Mister destacar que nos exemplos citados não há qualquer necessidade de chancela judicial para que o negócio surta efeitos (ao contrário da desistência da demanda, art. 200, § único e art. 357, §2, CPC). A necessidade de homologação, portanto, depende de expressa previsão legal. Assim, quando deparado diante de tais situações e, não possuindo defeito o negócio processual, o juiz não pode recusar sua aplicação.

De toda sorte, não são raras as oportunidades em que operadores do direito se deparam com situações absolutamente contrárias à letra e ao espírito da lei.

Por exemplo, tratando-se de Ação de Homologação de Acordo Extrajudicial, ou seja, via processual que não objetiva o litígio propriamente dito, mas, apenas a chancela jurisdicional homologando a avença e determinando o cumprimento das cláusulas legitimamente pactuadas entre as partes, há magistrados que coadunam com o entendimento de que, inexistindo lide entre as partes, não há processo e, consequentemente, desencadeia na falta de interesse de agir, ensejando na recusa da homologação.

Na mesma linha, a prestigiada Ministra do E. Superior Tribunal de Justiça, Nancy Andrighi, quando no julgamento do REsp 1184151, destacou com coerência de que “é necessário romper com a ideia de que todas as lides devem passar pela chancela do Poder Judiciário, ainda que solucionadas extrajudicialmente. Deve-se valorizar a eficácia dos documentos produzidos pelas partes, fortalecendo-se a negociação, sem que seja necessário, sempre e para tudo, uma chancela judicial’, utilizando a premissa de que, para uma transação ser homologável, há de existir, previamente, um processo ainda que de conteúdo mais amplo. Ou seja, para a homologação da avença demandaria a existência de processo.

Respeitado tal posicionamento, entendemos que este não coaduna com o espírito da lei processual civil vigente.

Conforme exposto no início deste artigo, o estímulo à autocomposição das partes não pressupõe, necessariamente, a existência de um processo para que o Estado Juiz intervenha prestando a tutela jurisdicional pretendida – homologação. Não há azo para o entendimento de que, sob tal prisma, o Judiciário passaria a função de mero órgão a homologar acordos.

O próprio STJ comunga do entendimento de que as partes não deixarão de buscar e de obter a homologação judicial de acordo extrajudicial desvinculado de processo judicial.

Ora, deveriam as partes simularem processos para, após, apresentar petição conjunta requerendo a homologação do acordo noticiado? Certamente não, e esta não foi a intenção do Legislador.

Ademais, não se encontram argumentos lúcidos que justifiquem a negativa na chancela jurisdicional. Se antes os processos demandavam considerável espaço físico em arquivos, além da manutenção necessária para sua preservação, hoje, com o advento do processo eletrônico, não há amparo legal que autorize a negativa dos magistrados quando deparados com referido pedido.

Respeitados entendimentos contrários, vislumbramos, apenas, pontos positivos na homologação desta espécie de negócio jurídico processual. Apesar da autonomia da vontade das partes não presumir absoluta validade, já que, se tratando de direitos patrimoniais indisponíveis (impossibilidade no manejo de recursos, contraditório e etc.) obstada estará a transação, entendemos necessária a homologação judicial para a eficácia plena do negócio jurídico entabulado.

Em caso de descumprimento do acordo, a parte interessada pode, simplesmente, denunciar o fato e requerer, nos próprios autos, o cumprimento de sentença (artigo 513 e seguintes, do CPC) daquilo que foi previamente homologado, não havendo que se falar em exaustivas tentativas de citação, endereço e etc.

Noutro aspecto, se analisarmos o binômio prova e sua renúncia x violação ao devido processo legal, por meio de renúncia havida em negócio processual entre as partes, entende Fredie Didier Jr. que não cabe ao Magistrado julgar o “mérito” dos pactos, tampouco a conveniência ou oportunidade da celebração dos negócios, mas tão somente analisar a validade do acordo. Não há, portanto, necessidade de que a parte tenha meios para produção de absolutamente todas as provas, visto não se tratar de direito fundamental absoluto, admitida a sua mitigação, portanto, ao haver conflito aparente frente a outros Princípios, aqui inserindo-se o da Autorregulação das Partes.

Plenamente viável e válida, portanto, a aplicação do artigo 190, do CPC neste tipo de demanda, descabendo a existência de litígio para homologação, quando assim requerido, do negócio processual entabulado entre as partes.

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1 Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1, pág. 443/444, 20ª Edição.

2 Primeiros comentários ao novo código de processo civil: coordenação Teresa Arruda Alvim Wambier [et al.]. 1ª ed. São Paulo: Ed. RT, 2015, p. 352/353

3 In Novo Código de Processo Civil Comentado, 1ª Edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 244

4 Comentários ao Código de Processo Civil: coordenação Cassio Scarpinella Bueno, arts. 1º a 317 – Parte Geral, Ed. Saraiva, 2017, págs. 748/752

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*Breitner Quilles é advogado do escritório CMMM – Carmona Maya, Martins e Medeiros Advogados.

*Diego Lima é advogado do escritório CMMM – Carmona Maya, Martins e Medeiros Advogados.

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