São várias as justificativas para a existência de regimes especiais de intervenção no sistema financeiro nacional. O fundamento mais comum e aceito pela literatura é a necessidade de o Estado dispor de um instrumental regulatório que seja capaz de conferir respostas rápidas e eficientes a determinadas situações enfrentadas por instituições financeiras.
Na história brasileira, esse instrumental ganhou força com a crise cafeeira iniciada no final da década de 1860, que levou ao fechamento de diversas casas bancárias, dentre elas a bancárias J.A Souto & Cia., em 1864, e a Mauá Mac-Gregor, em 1866. A partir desse momento, foram criadas regras específicas para situações de crises bancárias, como, por exemplo, a lei 1.083, de 22 de agosto de 1860, que acabou por receber o nome de “Lei dos Entraves”, passando a exigir a aprovação governamental para o estabelecimento de sociedades anônimas, bem como a proibição à emissão de vales por bancos privados enquanto estes não se mostrassem capazes de reembolsá-los em ouro.
Já em 1974, sob forte influência da legislação italiana, pelo instituto da Liquidazione Coacta Amministrativa, que permitia a imposição do regime de liquidação de maneira forçada, sem a deliberação dos administradores e sócios, é editada a lei 6.024, de 13 de março, que disciplina até hoje o processo de intervenção e liquidação extrajudicial.
Ocorre que, quando da publicação da lei acreditava-se que os atos liquidatários deveriam ser realizados fora do âmbito judicial, garantindo, portanto, a celeridade, mobilidade e especialidade, já que o regime seria decretado e conduzido por um órgão técnico. Todavia, a experiência mostrou o contrário, ou seja, durante os quarenta e dois anos de vigência da lei, é possível observar diversos litígios judiciais envolvendo o instituto da liquidação, acarretando na morosidade, falta de mobilidade e ineficiência. É o que demonstra os dados fornecidos pelo próprio BACEN1. Segundo tais informações, até 23/4/13, existiam seiscentos e vinte e sete processos movidos em face do banco, sendo que deste total de processos, quatrocentos e trinta, versavam sobre algum litígio envolvendo o regime de liquidação extrajudicial.
E não para por aí. Ainda segundo os mesmos dados, o Banco Central do Brasil figurou como polo passivo das demandas em quinhentos e noventa e seis casos. Portanto, diante desse cenário, tais processos resultaram em um valor de provisionamento elevadíssimo, principalmente nos casos de liquidação extrajudicial, chegando ao montante à época de R$ 1,244 bilhões, representando 88,2% de todo o provisionamento do banco.
Também é possível destacar a morosidade do regime de liquidação, posto que ainda existem regimes ativos desde a década de 80. Sobre os motivos dessa morosidade é possível destacar: (i) interferência excessiva do Banco Central nos atos liquidatórios, seja por sua demora em responder às consultas e preposições que lhe são submetidas pelo liquidante e; (ii) alto número de ações judiciais manejadas por sócios e credores da liquidanda contra decisões proferidas pelo Banco Central quando instado a manifestar-se sobre créditos, atos do liquidante ou condução da liquidação extrajudicial.
Outra premissa que merece ser observada é o desequilíbrio da relação Estado-Cidadão, manifestado pela ausência de processo administrativo prévio para a aplicação dos regimes especiais, ou seja, decreta-se o regime - sem as garantias do contraditório e ampla defesa, acarretando em medidas sancionatórias, como, por exemplo, a indisponibilidade de bens, perda do cargo e a necessidade de autorização para sair do foro. Ainda sobre a proposição do desequilíbrio, a lei 6.024/74 também peca em outros aspectos, tais como o fato do BACEN possuir a competência para deliberar sobre a classificação, legitimidade e valor dos créditos declarados, competindo-o ainda, decidir sobre eventuais recursos sobre tais classificações.
Ainda nesta linha de preceitos constitucionais que merecem uma maior atenção, vale lembrar o prazo do inquérito instaurado após a decretação do regime para a apuração das responsabilidades dos administradores. Assim, a lei prevê o prazo de 120 (cento e vinte dias), prorrogáveis, se necessário, por igual prazo para o término do inquérito, deixando apenas o prazo de 5 (cinco) dias para os ex administradores apresentarem suas alegações e explicações. Por fim, em sentido semelhante, e de forma ainda mais aterradora, a lei prevê expressamente a possibilidade de encerramento do inquérito sem a apresentação de defesa.
Como conclusão, é necessário, no mínimo, uma nova interpretação e aplicação dos preceitos da lei 6.024/74 com base em uma leitura constitucional, além de uma revisão sob a ótica da eficiência do regime de liquidação extrajudicial.
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1 Apresentação pelo procurador-geral do Banco Central, Sr. Isaac Siney Menezes Ferreira no seminário internacional sobre regimes de resolução no sistema financeiro brasileiro em 6/5/13 Brasília. Apresentação disponível em: clique aqui, acesso em 20/10/19
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*Felipe Herdem Lima é mestre em Direito da Regulação, pós-graduado em Direito Empresarial e graduado pela FGV Direito Rio. É membro da Comissão de Direito Empresarial da OAB/RJ e professor do FGV Law Program.