No presente artigo quero justamente dividir e socializar algumas reflexões quanto a certas práticas notariais que são, em alguns casos, um desserviço, havendo um desvirtuamento de nossa atuação quando a forma se torna mais relevante que o conteúdo.
Nessa perspectiva, como tabeliã tenho sido obrigada a confrontar diversas práticas à luz da lei, mas, sobretudo, tenho sido confrontada por um atravessamento ético em perceber como certas práticas solidificadas não têm qualquer sentido e estão em confronto com o interesse diário dos cidadãos.
E, ao que me parece, não se trata de um problema nacional. Em 2010 o presidente Obama firmou o chamado Plain Writing Act of 2010, que, entre outras providências, previa a simplificação da linguagem, a referida lei exige que agências federais usem “comunicação governamental clara, que o público possa entender e usar”. Em 18 de janeiro de 2011, o presidente Obama emitiu uma nova ordem executiva, “E.O. (Executive Order, traduzindo em ordem executiva) 13.563 – Melhorando Regulamentos e Análise Regulatória”. Essa ordem executiva declara que “[o sistema regulatório] tem que se certificar de que os regulamentos sejam acessíveis, consistentes, escritos em linguagem simples e fáceis de entender.1
Duas outras ordens executivas (E.O. 12.866 e E.O. 12.988) cobrem o ato de linguagem simples em regulações. Há alguns anos reitero considerações sobre esse assunto, no entanto, confesso-lhes que, até agora, pouco mudou nesse sentido. Na medida em que a persistência me permite, decidi revisitá-lo, no intuito de tentar, ao menos, embutir algumas reflexões ensejadoras de mudanças. Talvez o tônus do presente artigo seja a esperança de novos ventos sobre a prática notarial, no sentido de que as palavras possam assumir mais o teor da comunicação do que as substâncias burocráticas.
Estamos vivendo uma época de grandes e incessantes transformações, tanto sociais como tecnológicas. As pessoas buscam, cada vez mais, a praticidade e a objetividade na vida cotidiana, mormente nas relações profissionais. A linguagem moderna se caracteriza pela clareza e objetividade, dispensando palavras ou termos ininteligíveis para o cidadão comum.
Além disso, com a chegada da nova tecnologia disruptiva da blockchain, já se fala em contratos inteligentes (smart contracts). E o que isso quer dizer? Contratos celebrados nos moldes da tecnologia blockchain autoexecutáveis. Melhor explicando:
(...) os contratos inteligentes são programas de computador que protegem, fazem cumprir e executam a liquidação de acordos registrados entre pessoas e organizações. Como tal, eles ajudam na negociação e na definição desses acordos. (Tapscott : 2017, p. 139)
Seria, portanto, inimaginável pensar que nunca chegarão ao nosso mundo jurídico notarial essas inovações? Creio que não. Se formos fazer uma retrospectiva, veremos que o novo vem sem pedir licença, de forma abrupta e irreversível, vide o Streaming, o Facebook, o Uber, Airbnb, entre outros tantos largamente conhecidos. Quando poderíamos imaginar que o processo eletrônico se tornaria uma realidade?
Partindo dessas premissas, a sugestão é que nos adaptemos a essa nova realidade, pois, caso contrário, seremos certamente abduzidos do sistema, inaptos aos novos tempos.
As práticas para além da forma
Tecidas essas considerações e esses receios, percebo que a elaboração de um bom contrato não está fundamentada no uso de palavras difíceis ou em um amontoado de folhas, que o usuário dos serviços extrajudiciais não entende no geral, tampouco pelo uso de frases e termos inúteis para a confecção de um determinado instrumento contratual.
Sob esse aspecto, pontuo alguns termos recorrentemente utilizados que poderiam ser substituídos por outros mais claros ou mesmo extirpados do texto escritural, assim temos: Partes entre si, justas e contratadas. Não seria melhor dizer: “compareceu, como vendedor, fulano de tal”?
Outra frase célebre é a presente promessa é irrevogável e irretratável. Não seria melhor escolhermos um dos dois adjetivos? Não podemos esquecer outra expressão usual verificada nas escrituras: Este instrumento é celebrado nos melhores termos de direito; Alguém já firmou algum documento nos piores termos de direito?
Por que ninguém se refere aos vícios redibitórios2 ? Porque as consequências jurídicas dos vícios redibitórios se encontram na lei, exatamente como na evicção de direito.
E no tocante aos contratos de doação? Por que razão não se insere na redação da escritura que o doador não responderá pela evicção de direito? Por um motivo muito simples, a lei assim já o determina, com uma única exceção.
O constituto-possessório3 ou clausula constituti e a traditio brevi manu4 são termos igualmente intrigantes que atormentam o mundo notarial. Será que alguém sabe o momento correto de imitir o comprador na posse do imóvel, por meio do constituto-possessório ou da traditio brevi manu?
Sabemos que o constituto-possessório e a traditio brevi manu se dão quando se transfere a posse ficticiamente. Mas será que todos realmente sabem o exato momento para utilizá-lo de forma correta? Ou o inserem indistintamente em todas as escrituras?
O constituto-possessório estava positivado no inciso IV, do art. 494 e inciso V, do art. 520, do antigo Código Civil, que tratava respectivamente de modos de aquisição e perda da posse. O Código Civil de 2002 não o previu expressamente. No entanto, a melhor doutrina entende que o instituto permanece no nosso sistema jurídico de forma implícita no art. 1.2045 . Nesse sentido, a I Jornada de Direito Civil da Justiça Federal compreendeu a sua aplicação ao editar o enunciado 776, devendo ser tratada de forma idêntica a traditio brevi manu, por ser o reverso do constituto-possessório7 .
Agora, seria razoável pôr esses termos em um contrato envolvendo apenas cidadãos leigos da linguagem jurídica? Não estaríamos violando o dever de informação, contido na cláusula geral da boa-fé objetiva?
Lembramos as palavras de Miguel Reale ao definir boa-fé objetiva como:
“A boa-fé objetiva se apresenta como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria uma pessoa honesta, proba e leal. Tal conduta impõe diretrizes ao agir no tráfico negocial, devendo-se ter em conta, como lembra Judith Martins Costa, ‘a consideração para com os interesses do alter, visto como membro do conjunto social que é juridicamente tutelado’. Desse ponto de vista, podemos afirmar que a boa-fé objetiva é assim entendida como noção sinônima de ‘honestidade pública (Reale: 2003, p. 4)”.
Ora, o que se impõe a todos nós operadores do Direito é o dever que extrapola uma simples conduta profissional, para além nos impulsiona a boa-fé objetiva a um agir condicionados aos deveres anexos que resultam de tão importante princípio, como dever de informação; dever de agir conforme a confiança depositada; dever de agir conforme a razoabilidade, a equidade e a boa razão.
Seguindo esse mesmo diapasão, saliento a nossa tendência à prolixidade quando lavramos uma procuração para alienar determinado imóvel. Devemos deixar expresso que o procurador poderá vender, dar quitação, transmitir domínio, responder pela evicção, e por aí afora, sob pena de a mencionada procuração não ser aceita no serviço notarial, registral ou nas instituições financeiras, que se pretende realizar o ato.
No exemplo acima, não bastaria dizer que um procurador tem poderes para a venda, os outros poderes não seriam corolários do primeiro, que é a venda? Aprendemos no curso de Direito que quem pode o mais, pode o menos, mas na prática notarial essa máxima não surte quase nenhum efeito. Se posso vender, a fortiori, posso dar quitação, não seria o lógico?
Isso, apesar de aparentemente ser um detalhe irrelevante, gera um grande problema ao sistema notarial, posto que provoca insegurança jurídica quando se lavra o ato, haja vista que não sabemos de antemão se aquela determinada procuração será aceita ou não perante o outro tabelionato, instituição financeira, órgão público, empresa, entre outros. Por sua vez, a situação se agrava quando a procuração é dirigida à prática do ato principal em outro estado da nossa Federação ou quando é originária de outro país.
Vejamos que o sentido da burocracia nesses pontos, previamente analisados neste artigo, dá-nos conta de um processo de burocratização textual, não raro inócuo. Isso faz lembrar a teoria burocrática de Max Weber que, ao contrário, sustenta a burocracia como espécie de organização humana baseada na racionalidade, ou seja, os meios devem ser analisados e estabelecidos de maneira totalmente formal e impessoal, de modo a alcançarem os fins pretendidos proficuamente. O que, infelizmente, no que tange a nossa análise, nem sempre é efetivo.
Enfim, acreditamos que essa proposta de mudança não se trata, simplesmente, de querer por diletantismo, alterar a forma em que é lavrada a maioria das escrituras no nosso país, mas, sim, de adequá-las às normas e aos princípios determinados tanto na Constituição da República, que prima pelo princípio da solidariedade em seu artigo 3º8 , como ao seu corolário previsto no Código Civil, que é o princípio da boa-fé objetiva e os seus deveres anexos, quais sejam, o dever de proteção, informação e cooperação, sendo certo, ainda, que a sua inobservância acarreta a violação positiva do contrato, da função social do contrato e da justiça contratual.
Conclusão
Em breve síntese, o presente paper se propõe a trazer à luz questionamentos oriundos de anos de experiência como Tabeliã de um ofício de notas, em que, entre outras situações, percebi a grande barreira imposta pelo excesso de burocracia, que se encontra atrelado não apenas aos procedimentos mas, principalmente, aos documentos necessários à prática do ato notarial.
Ocorre que, na maior parte dos casos, as consequências dos atos praticados em cartório encontram previsão legal de modo que a inclusão de tais dispositivos nos documentos públicos confeccionados para e por interesse de particulares somente tornam o nosso serviço incompreensível e inacessível ao cidadão comum, afastando-se de sua função primordial, qual seja, a promoção por meio da publicidade, dos atos oriundos da autonomia privada das pessoas.
Assim, o que se percebe hoje é uma atividade cartorária burocratizada e anacrônica, em completo descompasso com a evolução das práticas sociais, que buscam cada vez mais a simplificação e agilidade nas transações.
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2 Art. 441. A coisa recebida em virtude de contrato comutativo pode ser enjeitada por vícios ou defeitos ocultos, que a tornem imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe diminuam o valor.
Parágrafo único. É aplicável a disposição deste artigo às doações onerosas.
3 cláusula contratual mediante a qual o alienante (vendedor) transmite a posse da coisa alienada ao nome do comprador, embora continue a deter o bem; desprendimento de posse.
4 Modalidade de tradição ficta, quando o detentor passa a ser possuidor por ter adquirido o bem.
5 Art. 1.204. Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade.
6 Enunciado 77, da Jornada de Direito Civil: A posse das coisas móveis e imóveis também pode ser transmitida pelo constituto-possessório.
7 Altera a titularidade na posse, de maneira que, aquele que possuía em seu próprio nome, passa a possuir em nome de outrem (Ex.: eu vendo a minha casa a João e continuo possuindo-a, como simples locatário). Contrariamente, na traditio brevi manu, aquele que possuía em nome alheio, passa a possuir em nome próprio (por exemplo, é o caso do locatário, que adquire a propriedade da coisa locada).
8 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
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*Fernanda de Freitas Leitão exerceu a advocacia na iniciativa privada, em seguida, admitida em concurso público, exerceu o cargo de Procuradora do Estado do Rio de Janeiro e, a partir de 1998, passou a atuar como quinta tabeliã do 15º Ofício de Notas.