Conceito de vitaliciedade
A vitaliciedade pode ser conceituada como a prerrogativa de alguns cargos públicos de que a sua perda somente pode ocorrer por meio de decisão judicial com trânsito em julgado.
Nesse sentido entende Maria Sylvia Zanella Di Pietro, para quem “vitalício é o que se faz em cargo público, mediante nomeação, assegurando ao funcionário o direito à permanência no cargo, do qual só pode ser destituído por sentença judicial transitada em julgado”.
Igualmente Celso Antônio Bandeira Mello leciona que o desligamento por meio de decisão judicial é característica marcante da vitaliciedade:
Os cargos de provimento vitalício são, tal como os efetivos, predispostos à retenção dos ocupantes, mas sua vocação para retê-los é ainda maior. Os que neles hajam sido prepostos, uma vez vitaliciados, só podem ser desligados mediante processo judicial.
Outros autores administrativistas também assim entendem, como José dos Santos Carvalho Filho, Matheus Carvalho e Ricardo Alexandre.
Entre os doutrinadores constitucionalistas também a vitaliciedade é conceituada e caracterizada como a impossibilidade de perda do cargo por processo administrativo, mas apenas por decisão judicial transitada em julgado.
Assim entendem os ministros do STF Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, bem como Pedro Lenza, Uadi Lammêgo Bulos, Nathalia Masson e Marcelo Novelino.
Vitaliciedade do magistrado, sanção disciplinar de aposentadoria e reforma da previdência
A Constituição Federal de 1988 (CF/88) prevê de forma expressa a vitaliciedade apenas para os cargos de magistrado (art. 95, I), membros do ministério público (art. 128, § 5º, I, ‘a’) e de ministros e conselheiros de tribunal de contas (art. 73, § 3º, e art. 75).
Insta ressaltar que a Constituição Federal de 1988 atribui de forma implícita essa vitaliciedade aos oficiais militares, ao estabelecer que o oficial só perderá o posto e a patente se for julgado indigno do Oficialato ou com ele incompatível, por decisão de Tribunal Militar de caráter permanente, em tempo de paz, ou de Tribunal Especial, em tempo de guerra (art. 142, § 3º, VI) .
A vitaliciedade para a magistratura está prevista em todas as 08 Constituições brasileiras, desde 1824:
a) Constituição de 1824: art. 153 (“Os Juízes de Direito serão perpétuos”);
b) Constituição de 1891: art. 57;
c) Constituição de 1934: art. 64, alínea ‘a’;
d) Constituição de 1937: art. 91, alínea ‘a’;
e) Constituição de 1946: art. 95, I;
f) Constituição de 1967: art. 98 e art. 108, I;
g) Constituição de 1969: art. 113, I;
h) Constituição de 1988: art. 95, I.
A vitaliciedade do magistrado também está prevista no art. 25 da lei complementar 35/79, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN), ao dispor que “Salvo as restrições expressas na Constituição, os magistrados gozam das garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos”.
O objetivo da vitaliciedade não é bem compreendido pela maioria da imprensa, o qual noticia como se fosse um privilégio da classe.
Todavia, essa afirmação é equivocada, pois a vitaliciedade, longe de ser privilégio, é uma garantia para uma atuação independente do magistrado, evitando que o juiz possa ser pressionado, por exemplo, com a ameaça de demissão em um Processo Administrativo Disciplinar (PAD), instaurado por perseguição.
Essa garantia é do Magistrado, que reforça a independência do juiz, mas também da sociedade, que terá a tranquilidade de ter o seu processo julgado por um juiz que não sofre a ameaça psicológica de demissão, caso desagrade pessoas influentes e setores poderosos da política, da economia e da sociedade em geral.
Todavia, em casos graves, permanece a possiblidade do magistrado perder o cargo (demissão ou cassação de aposentadoria) por meio de ação judicial própria. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o ex-juiz Nicolau Dos Santos Neto, conhecido por LALAU.
Como consequência da vitaliciedade, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN) prevê a sanção de aposentadoria compulsória, com vencimentos proporcionais ao tempo de contribuição (art. 42, inciso V).
Segunda a imprensa a reforma da previdência teria a intenção de acabar com a sanção disciplinar de aposentadoria compulsória de magistrados e de membros do ministério público.
Todavia, salvo melhor juízo, não é isso que se extrai em uma interpretação sistêmica do ordenamento jurídico.
Vejamos.
A redação original do art. 93, inciso VIII, da Constituição Federal de 1988 previa que “o ato de remoção, disponibilidade e aposentadoria do magistrado, por interesse público, fundar-se-á em decisão por voto de dois terços do respectivo tribunal, assegurada ampla defesa”.
A EC 45, que promulgou a Reforma do Poder Judiciário, alterou a redação do art. 93, inciso VIII, autorizando que a sanção de aposentadoria fosse aplicada também pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). In verbis: “o ato de remoção, disponibilidade e aposentadoria do magistrado, por interesse público, fundar-se-á em decisão por voto da maioria absoluta do respectivo tribunal ou do Conselho Nacional de Justiça, assegurada ampla defesa”.
Agora a EC 103, que promulgou a reforma da Previdência, alterou novamente a redação do art. 93, inciso VIII, da Constituição Federal de 1988, o qual passou a ter a seguinte redação: “o ato de remoção ou de disponibilidade do magistrado, por interesse público, fundar-se-á em decisão por voto da maioria absoluta do respectivo tribunal ou do Conselho Nacional de Justiça, assegurada ampla defesa”.
Constata-se que a Reforma da Previdência, por meio da Emenda Constitucional 103, apenas retirou a sanção de aposentadoria da Constituição.
Isso inclusive consta da “Explicação da Ementa”, da PEC 6/19, no sítio do Senado Federal, explicando que a PEC “Retira da Constituição a possibilidade de ser aplicada a sanção de aposentadoria a membros do Poder Judiciário e do Ministério Público”.
Contudo, a Emenda Constitucional 103 não proibiu de forma expressa a sanção disciplinar de aposentadoria. Apenas retirou a previsão do texto da Constituição.
Sucede que, como não há proibição expressa na Constituição, permanece em vigor a possibilidade de aplicação da sanção disciplinar de aposentadoria (com proventos proporcionais ao tempo de contribuição), a qual continua prevista no art. 42, inciso V, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN), instituída pela Lei Complementar 35/79.
Registra-se que a previsão legal da LOMAN não é incompatível com a nova redação do art. 93, VIII, da Constituição Federal, em uma interpretação literal e autêntica do texto da Emenda Constitucional 103.
Assim, o art. 42, inciso V, da Lei Complementar nº 35/79 foi recepcionado pela Emenda Constitucional 103.
Outrossim, essa conclusão é corroborada ao se analisar a nova redação do art. 130-A, § 2º, III, da Constituição Federal (dada pela Emenda Constitucional 103).
O art. 130-A foi inserido na Carta Magna pela Emenda Constitucional 45 (não constava da redação original) e estabeleceu a competência do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para aplicar a membros do MP a sanção disciplinar de aposentadoria proporcional ao tempo de contribuição (art. 130-A, § 2º, inciso III:
Compete ao Conselho Nacional do Ministério Público o controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público e do cumprimento dos deveres funcionais de seus membros, cabendo lhe: [..] receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Ministério Público da União ou dos Estados, inclusive contra seus serviços auxiliares, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional da instituição, podendo avocar processos disciplinares em curso, determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa).
A Emenda Constitucional 103 alterou a redação do art. 130-A, § 2º, inciso III, da Constituição, apenas retirando a sanção de aposentadoria da Constituição. Mas não proibiu de forma expressa. In verbis:
“Compete ao Conselho Nacional do Ministério Público o controle da atuação administrativa e financeira do MP e do cumprimento dos deveres funcionais de seus membros, cabendo lhe: [..] receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do MP da união ou dos estados, inclusive contra seus serviços auxiliares, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional da instituição, podendo avocar processos disciplinares em curso, determinar a remoção ou a disponibilidade e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa”.
Desta feita, em uma interpretação literal/autêntica da EC 103, em conjunto com a hermenêutica sistêmica do ordenamento jurídico, conclui-se que houve apenas a desconstitucionalização da aposentadoria como forma de sanção disciplinar, a qual deixou de estar prevista na Constituição Federal.
Permanece em vigor a sanção disciplinar de aposentadoria compulsória, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição, pois continua vigente o art. 42, inciso V, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN), instituída pela lei complementar 35/79, que foi recepcionado pela EC 103.
Reforma disciplinar de militar: sanção disciplinar de aposentadoria
É de bom alvitre registrar que a sanção disciplinar de aposentadoria compulsória não se restringe à magistratura e ao MP.
Ocorre também no âmbito Militar, em que a sanção disciplinar de aposentadoria compulsória é denominada de reforma, situação que o militar é transferido para a Inatividade, não podendo mais retornar a serviço ativo (art. 3º, § 1º, alínea ‘b’, inciso II, da lei 6.880/80, que dispõe sobre o Estatuto dos Militares).
A reforma disciplinar é aplica a praças com estabilidade assegurada, por meio de um processo administrativo disciplinar denominado de conselho de disciplina.
No âmbito da união o decreto 71.500/72 dispõe sobre o conselho de disciplina para praças das forças armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica), o qual prevê a sanção disciplinar de Reforma no art. 13, inciso IV, e no art. 13, § 2º.
Outrossim, a sanção disciplinar de Reforma também é aplicada aos Oficiais, por meio do Conselho de Justificação, com fulcro no art. 16, inciso II, da lei 5.836/72.
Destarte, conclui-se que a sanção disciplinar de aposentadoria não se restringe à magistratura e ao MP, estando presente também no âmbito Militar, para oficiais e praças.
Conclusão
Ao final se conclui que houve apenas a desconstitucionalização da aposentadoria como forma de sanção disciplinar, a qual deixou de estar prevista na Constituição Federal.
Assim, em uma interpretação literal/autêntica da Emenda Constitucional 103, em conjunto com a hermenêutica sistêmica do ordenamento jurídico, deduz-se que permanece em vigor a sanção disciplinar de aposentadoria compulsória, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição, pois continua vigente o art. 42, inciso V, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN), instituída pela lei complementar 35/79, que foi recepcionado pela Emenda Constitucional 103.
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ALEXANDRE, Ricardo; DEUS, João de. Direito Administrativo Esquematizado. 1ª ed. São Paulo: Método, 2015, p. 284.
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CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 6ª ed. Salvador: Jus Podivm, 2019, p. 848.
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LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 18ª ed: Saraiva, 2014, p. 792.
MASSON, Nathalia. Manual de Direito Constitucional. 3ª ed. Salvador: Jus Podivm, 2015, p. 893-894.
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MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 30ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 528.
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ALMEIDA, Robledo Moraes Peres de. Vitaliciedade implícita: uma prerrogativa dos oficiais militares. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5191, 17 set. 2017.
BRASIL. Constituição Federal de 1988.
Decreto nº 71.500/72. Dispõe sobre o Conselho de Disciplina.
Lei 5.839/72. Dispõe sobre o Conselho de Justificação.
Lei 6.880/80. Dispõe sobre o Estatuto dos Militares.
Lei Complementar 35/79. Dispõe sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional..
SENADO FEDERAL. Proposta de Emenda Constitucional 06/19.
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*Robledo Moraes Peres De Almeida é juiz de direito do TJ do Piauí