Este texto se restringe a fazer uma breve aproximação entre o Direito Penal e o Direito Contratual, sem a menor intenção de exaurir o tema, bem como não pretende fazer aprofundamentos conceituais e teóricos sobre a temática.
Nos últimos tempos temos ouvido muito falar sobre acordos de delação premiada/colaboração premiada, como se fossem um contrato entre a acusação e os envolvidos em organizações criminosas, delito que comporta o acordo objeto deste ensaio. Para fins legais, considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.
Esses acordos, da forma como estão sendo firmados atualmente, evidenciam a intenção do legislador de permitir negócios jurídicos em matéria penal/processual penal.
Deve ser pontuado que, apesar de não ser uma novidade em nosso ordenamento, esses negócios passarem a ter mais folego com a lei 12.850/13 (Lei de Organizações Criminosas).
A condição de os acordos de delação/colaboração serem vistos como negócio jurídico já foi inclusive reconhecida pelo STF, através do HC 127.483/PR, no qual ficou assentada a condição de negócio jurídico personalíssimo.
Assim, não resta dúvida da condição negocial/contratual dessas relações.
Em linhas gerais, contrato é um de acordo de vontades com a finalidade de produzir efeitos jurídicos (criar, conservar, modificar, extinguir relações jurídicas etc.), ou seja, de um lado o colaborador/delator, com a intenção de reduzir o peso penal que o Estado irá lhe impor pela sua suposta conduta criminosa; e, do outro lado o Estado, que busca coibir, inibir ou desmantelar a rede criminosa da organização, bem como facilitar a obtenção da prova ou a resolução do problema criminal a ele imposto.
Assim, regras e princípios gerais de direito contratual devem ser aplicados sobre os acordos de delação/colaboração premiada.
Sob esse aspecto, o termo/contrato há de ser regido pelo princípio da obrigatoriedade ou pacta sunt servanda, pelo que, o seu descumprimento, seja por qualquer das partes, levará a extinção do acordo e em consequência disso, o responsável arcará com os ônus devidamente decorrentes da quebra contratual.
Deve ainda ser observado nesse acordo o princípio da boa-fé objetiva, dever anexo a todo contrato, de modo que os agentes, ainda que um deles seja supostamente um criminoso, tenha que agir de modo a não obter nenhuma vantagem indevida em decorrência de sua colaboração. Some-se a isso o fato de ter o agente que laborar, nesse diapasão, com a verdade acerca do que expõe à acusação (art. 4°, § 14, da Lei de Organizações Criminosas).
Os contratos de delação/colaboração premiada resgataram um velho princípio da relação contratual, que é o da relatividade dos contatos, uma vez que os efeitos da delação e suas benesses se restringem apenas às partes contratantes, salvo melhor juízo.
Por consequência da relatividade, típica das relações contratuais, o termo produzirá efeitos somente para as partes, não expandindo efeitos ao delatado. Portanto, não há falar, em possibilidade de impugnação ao acordo firmado entre o colaborador e órgão ministerial, proposta pelo delatado. Nessa linha, o STJ já se posicionou (HC 127.483).
Pelo fato de ser um contrato, o acordo deve garantir aos seus signatários paridade de armas, o que nem sempre ocorre, especialmente pelo fato de que prisões cautelares são levadas a efeito para forçar a delação.
Essa situação de efetuar prisões para fins de colaborações fere de morte umas das regras mais básicas dos contratos que é a voluntariedade. O contrato (delação/colaboração) não deve advir do arrependimento ou da coação. Todo contrato tem que partir voluntariamente daquele que pretende se vincular e não decorrer, por exemplo, de coação, que seria causa, inclusive, de invalidação do negócio, conforme preceitua o art. 151 do CC: “A coação, para viciar a declaração da vontade, há de ser tal que incuta ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens”.
Como reflexo dessa condição contratual, deve ser sempre observada a situação de possível hipossuficiência do delator/colaborador frente à acusação, que colhe a delação/colaboração.
Pressupõe também proposta e aceitação, momentos essenciais para a formação da contratação.
Ainda, táticas negociais devem entrar em cena para a boa elaboração do acordo e a definição de suas cláusulas.
Em caso de dúvidas de interpretação, deve-se adotar, salvo melhor juízo, a que mais beneficie o delator, tendo em vista o fato de ser a parte mais fraca no contrato e em observância ao princípio do in dubio pro reo.
Como nas relações contratuais, as tratativas não criam vinculação. A doutrina civil e a jurisprudência civilista são uníssonas em não atribuir valor contratual às negociações preliminares. Também, a lei civil permite a retratação.
O mesmo ocorre nas delações.
Diz o art. 4º, § 10, da lei 12.850/13: “As partes podem retratar-se da proposta, caso em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor.”.
Uma tônica do direito contratual atual é a modulação dos efeitos do contato, situação que pode ser vislumbrada também nos acordos de delação/colaboração premiada, conforme se vê no art. 4º, §§ 8º e 11, da lei 12.850/13).
Trata-se de contrato solene ou formal, nos moldes do art. 6º da lei de organização criminosa (o termo de acordo da colaboração premiada deverá ser feito por escrito).
Qualquer imposição pela acusação de renúncias no acordo implicará em nulidade, tendo em vista o disposto no art. 423 do CC: “Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio.”.
Deve ser ponderado, ainda, acerca da bilateralidade ou sinalagma do contrato de delação/colaboração premiada, gerando obrigações recíprocas entre o delator e a acusação.
Por fim, não podemos, salvo opiniões em contrário, confundir o contrato de delação com uma mera confissão. Até porque, é possível delatar sem ter que necessariamente confessar a participação na empreitada criminosa. É possível que o delator negue a autoria ou a participação, mas aponte outros agentes como responsáveis pelo fato delitivo.
Nessa esteira, a delação não poderia ser encarada como uma confissão, uma vez que extrapola os limites desta. Quem defende essa tese afirma que o conteúdo de uma delação não se resume a assumir a responsabilidade por um fato, o que impede a equiparação entre delação e confissão.
Portanto, em vista do que foi acima ponderado em breves linhas, não há como afastar a aproximação entre o Direito Contratual e o Direito Penal quando o assunto é delação/colaboração premiada.
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*Alneir Fernando S. Maia é advogado mestre em Direito pela UFMG, professor da universidade FUMEC, professor de Direito Penal da escola superior de advocacia da OAB-MG, membro da comissão de Direito Penal Econômico da OAB-MG.