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O julgamento das ADCs 43, 44 e 54 pelo STF e a PEC 5/19 acerca da possibilidade da prisão em 2ª instância

Como cláusula pétrea, o princípio da presunção de inocência não pode ser relativizado, nem pelo STF, nem pelos parlamentares, que em outras palavras, estariam colocando a CF contra ela mesma em caso de aprovação da PEC 5/19.

14/11/2019

Na última quinta-feira (7/11), o plenário do STF julgou em conjunto as ADCs 43, 44 e 54, onde, por maioria, julgou procedente a ação para assentar a constitucionalidade do artigo 283, do CPP, na redação dada pela lei 12.403/11.

Através da mencionada lei ordinária 12.403/11, editou-se o artigo 283 do CPP, oportunidade que os legisladores concretizaram na esfera processual penal a garantia explícita contida na Carta da República de 1988 de que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

Por tal redação, regra geral, a segregação do acusado somente poderá se materializar antes de transitar em julgado o decreto condenatório em situações de fundamentada necessidade, oportunidade que o magistrado o fará através do instrumento da prisão temporária ou preventiva. 

As ADC’s tinham por objeto a discussão acerca da possibilidade da prisão após confirmação em segunda instância, jurisprudência esta adotada desde 2016 onde o STF, ao julgar o HC 126.292, também por maioria, entendeu acerca da possibilidade de início da execução provisória da pena logo após a confirmação da condenação em segunda instância, alterando o entendimento contido na lei ordinária, com repercussão na ideologia normativa da presunção de inocência lapidada no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição, sem declarar a inconstitucionalidade do artigo em referência. 

Cumpre destacar que a propositura das ADCs tiveram pedidos de medidas cautelares, buscando fosse assentada a harmonia do artigo 283 do CPP com a Carta Magna de 1988.

O ministro Marco Aurélio, relator das ADCs 43, 44 e 54, declarou em seu voto que “[…] a Carta Federal consagrou a excepcionalidade da custódia no sistema penal brasileiro, sobretudo no tocante à supressão da liberdade anterior ao trânsito em julgado da decisão condenatória. A regra é apurar para, em execução de título judicial condenatório precluso na via da recorribilidade, prender. […] Ao editar o dispositivo em jogo, o Poder Legislativo, mediante a lei 12.403/11, limitou-se a concretizar, no campo do processo, garantia explícita da lei Maior, adequando-se à compreensão então assentada pelo próprio Supremo”.

Conclui-se, dessa forma, que ao declarar a constitucionalidade do artigo 283 do CPP, a maioria dos ministros da Suprema Corte sedimentou uma interpretação na expressão “trânsito em julgado”, que acabou por violar frontalmente a CF e o referido dispositivo processual penal, resultando na denominada fraudem legis.

Agora, na decisão proferida no último dia 7 de novembro de 2019, restabeleceu-se, mesmo que por maioria apertada, a garantia fundamental do cidadão de ser considerado inocente até que não seja mais possível reverter eventual decisório condenatório, deixando-se explicitado que o artigo 283 do CPP não viola o texto constitucional.

Antes do julgamento das ações declaratórias de constitucionalidade, o Brasil possuía aproximadamente 5 mil presos, segundo o CNJ, por condenação em segunda instância, ou seja, cerca 0,6% da população carcerária brasileira – estimada em 834 mil pessoas segunda os dados do BNMP (Banco Nacional de Monitoramento de Prisões) – que ainda aguardava recursos nas instâncias superiores. Em outras palavras, presos que não possuíam em seu desfavor uma sentença penal condenatória transitada em julgado.

Após o julgamento das ADC’s, inúmeros foram os pedidos de expedição de alvará de soltura, como por exemplo, o do ex-presidente Lula e do ex-governador de Minas Gerais, Eduardo Azeredo.

Se não bastasse o árduo trabalho enfrentado no STF para julgamento das ADC’s, a presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania – CCJ, Simone Tabet (MDB-MS), anunciou que colocará em pauta na próxima sessão uma proposta de emenda constitucional que permite a prisão após julgamento em segunda instância.

A PEC 5/19, de autoria do senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), pretende inserir o inciso XVI ao artigo 93, da CF e tem no dispositivo como redação de que “decisão condenatória proferida por órgãos colegiados deve ser executada imediatamente, independentemente do cabimento de eventuais recursos”.

Conforme se observa, para não ferir cláusula pétrea, o Senador Oriovisto utilizou-se de uma estratégia para inserir a prisão em segunda instância no artigo 93, da CF, que tem por objeto estabelecer os princípios básicos do Estatuto da Magistratura.

Trata-se de cláusula pétrea o princípio da presunção de inocência, previsto no inciso LVII, do artigo 5º, da CF, onde dispõe que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Por força do artigo 60, § 4º, da CF, não será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional que tende a abolir a) a forma deliberativa de Estado; b) o voto direto, secreto e universal e periódico; c) a separação dos poderes e d) os direitos e garantias individuais.

Cláusulas pétreas são normas que não podem ser deturpadas, sob pena de desvio de finalidade e abuso de poder. O ministro do STF, Carlos Ayres Britto, sob essa perspectiva, entendeu que:

A eficácia das regras jurídicas produzidas pelo poder constituinte (redundantemente chamado de "originário") não está sujeita a nenhuma limitação normativa, seja de ordem material, seja formal, porque provém do exercício de um poder de fato ou suprapositivo. Já as normas produzidas pelo poder reformador, essas têm sua validez e eficácia condicionadas à legitimação que recebam da ordem constitucional. Daí a necessária obediência das emendas constitucionais às chamadas cláusulas pétreas. (ADIn 2.356 MC e ADI 2.362 MC, rel. p/ o ac. min. Ayres Britto, j. 25-11-2010, P, DJE de 19-5-2011).

De detida análise da PEC 5/19, conclui-se que o senador Oriovisto não faz qualquer referência direta ao inciso LVII, do artigo 5º, da Constituição, prevista nos direitos e garantias individuais, possuindo apenas o intuito de dar entendimento contrário ao que o plenário do STF acabou de decidir acerca da impossibilidade de execução provisória da pena após confirmação em 2ª instância.

Ademais, não se pode olvidar que, não obstante a estratégia do Senador de incluir a redação da prisão em segunda instância no artigo 93, da Constituição, tornando-se regra geral, o artigo 5º, inciso LVII, é regra especial e, desta forma, sobrepõe a regra geral, ainda que esta seja posterior.

Como cláusula pétrea, o princípio da presunção de inocência não pode ser relativizado, nem pelo STF, nem pelos parlamentares, que em outras palavras, estariam colocando a CF contra ela mesma em caso de aprovação da PEC 5/19.

Assim, diante da não declaração de inconstitucionalidade do artigo 283 do CPP pelo STF, mantendo-se sadia sua origem constitucional, qualquer tentativa de se inserir na Carta Magna dispositivo que afronte o princípio da não culpabilidade, por se tratar esta de cláusula inserida em direitos e garantias individuais, pode-se simplesmente se avultar uma fraude à Constituição e que assim será declarada inconstitucional.

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADC 43, Tribunal Pleno. Requerente: Partido Ecológico Nacional e outros. Relator ministro Marco Aurélio. Brasília, DF, julgamento em 5 de outubro de 2016. Disponível em: Clique aqui. 

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*Leopoldo Gomes Moreira é advogado, vice-presidente da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da Subseção da OAB/MG de Varginha, pós-graduando em Direito Penal Econômico pela PUC Minas e sócio da banca Chalfun Advogados Associados.

*Oilson Nunes dos Santos Hoffmann Schmitt é advogado e juiz de Direito aposentado pelo TJ/MG.

 

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