Atualmente, vigem no direito brasileiro inúmeras normas anticorrupção. Apenas a título exemplificativo, figuram como diplomas legais de repressão às condutas ímprobas e corruptas a lei Anticorrupção (lei 12.846/13), a lei de Defesa da Concorrência (lei 12.258/11) e a lei de Improbidade Administrativa (lei 8.429/92). Sem embargo, é justamente em virtude dessa pluralidade de instrumentos repressivos que se faz necessário que as iniciativas anticorrupção sejam implementadas de forma coordenada.
Tal premissa é aplicável especialmente no que se refere à responsabilização das pessoas jurídicas, uma vez que, nos moldes atuais, o microssistema normativo autoriza que estas sejam sancionadas tanto pela prática de atos de improbidade administrativa quanto pela prática de condutas previstas na lei Anticorrupção. Precisamente por causa da incidência de múltiplos diplomas sobre as mesmas esferas, visando à repressão de atos praticados pelos mesmos agentes, que se torna obrigatório que os instrumentos previstos em lei sejam compatíveis entre si. Em outras palavras, se uma lei permite a adoção de determinadas práticas, não pode outra, integrante do mesmo sistema, vedá-las. No entanto, verifica-se que, apesar de as leis de Improbidade Administrativa e Anticorrupção terem coerência interna, a sua relação dentro do microssistema normativo pode dar causa a contrassensos que viriam a inviabilizar as iniciativas de repressão às condutas lesivas cometidas em face da administração pública.
Em linhas gerais, as hipóteses de atos de improbidade administrativa constam dos arts. 9º, 10 e 11 da lei 8.429/92. Nesse sentido, são condutas ímprobas aquelas que: i) produzem acréscimo patrimonial ilícito ao agente público ou a terceiro; ii) causam lesão ao erário em virtude de ação ou omissão; iii) atentam contra os princípios da administração pública. Não obstante, o rol dos dispositivos supramencionados não consegue esgotar todas as situações concretas e por isso, é meramente exemplificativo – o que se evidencia pelo uso da expressão “notadamente” em cada um dos artigos em questão.
O ato de improbidade pode ser praticado por qualquer um que exerça, em caráter permanente ou transitório, emprego ou função pública, independentemente de remuneração. Além disso, é possível que figure, ao lado do agente principal, o que a doutrina denomina sujeito ativo impróprio,1 ou seja, aquele que, não sendo funcionário público, participa ou obtém vantagem da conduta lesiva à administração.
Em apertada síntese, nos casos em que se constate o ato de improbidade, o Estado poderá determinar que o agente seja condenado: i) à perda do cargo, apenas com relação ao agente principal; ii) à suspensão de direitos políticos por prazo determinado; iii) ao pagamento de multa civil e; iv) à proibição de contratar com o Poder Público, por prazo igualmente determinado. É possível, ainda, que o agente seja obrigado a devolver bens ou ativos obtidos em virtude da conduta antijurídica, especificamente com relação às hipóteses do art. 9º da lei 8.429/92, em que há o enriquecimento ilícito do funcionário ou de terceiros por causa da conduta ímproba.
Já com relação à possibilidade de acordos nas ações de improbidade, Marino Pazzaglini Filho afirma que estes seriam absolutamente vedados. Isso porque “tal transação, caso fosse permitida, abortaria a persecução civil e, em consequência, frustraria a aplicação das demais sanções previstas na LIA”.2 E, apenas para concluir este breve exame do instituto da improbidade administrativa, vale pontuar que, em virtude do caráter evidentemente punitivo das sanções ora mencionadas, à ação de improbidade deve ser aplicado um regime próprio – diferente, por exemplo, daquele dedicado às demandas fundadas na mera reparação pecuniária.
A lei Anticorrupção (lei 12.846/13), por sua vez, disciplina hipóteses de responsabilização em caráter objetivo de pessoas jurídicas pela prática de atos lesivos contra a administração pública. Necessário pontuar que, para além das pessoas jurídicas, também podem ser responsabilizados, para os fins do diploma legal em questão, os dirigentes das empresas processadas, bem como qualquer pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do ato ilícito.
De acordo com o art. 5º, caput, do diploma legal em questão, constituem atos lesivos à administração pública “todos aqueles que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil”. E, uma vez configurado o ato, a lei 12.846/13 prevê a responsabilização dos agentes tanto na esfera administrativa quanto na esfera judicial.
Fato relevante, ainda, é que o art. 30 da lei 12.846/13 determina que a eventual aplicação de sanções referentes aos atos de corrupção em nada afeta os processos de responsabilização e aplicação de penalidades decorrentes de ato de improbidade administrativa. Disso decorre a já mencionada possibilidade de cominação de múltiplas sanções judiciais às pessoas jurídicas por atos do mesmo tipo (lesivos à administração pública), muitas vezes oriundos do mesmo evento fático – o que demanda a reflexão a respeito da relação que pode existir entre demandas fundadas nessas diversas leis.
No que diz respeito à possibilidade de celebração de acordos de leniência, estabelece a lei 12.846/13 que a autoridade pública poderá valer-se do referido instrumento desde que as pessoas jurídicas acusadas colaborem efetivamente com as investigações. Para que a sua colaboração seja considerada efetiva, deve decorrer dela: i) a identificação de eventuais coautores da infração e; ii) a obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito sob apuração.
De acordo com o que se verificou da brevíssima análise ora traçada, as leis 8.429/92 e 12.846/13 propõem-se a tutelar a administração pública, compondo, portanto, um mesmo microssistema normativo. A interação entre referidas leis não se limita, porém, ao objeto tutelado. Na realidade, conforme visto, ambos os diplomas legais acabam por ensejar a responsabilização dos mesmos agentes, graças à figura do agente impróprio da lei de Improbidade. As condutas típicas de cada diploma também se confundem, uma vez que, diante dos conceitos jurídicos amplos e do rol exemplificativo dos arts. 9º, 10 e 11 da lei de Improbidade, as hipóteses previstas na lei Anticorrupção podem facilmente figurar como improbidade administrativa.
A inegável intersecção que existe entre os diplomas legais demanda que se reflita sobre a relação entre as demandas fundadas nessas diversas leis. De plano, é possível concluir que a proximidade das disposições constantes em cada uma delas torna necessário que, caso sejam propostas em separado, seja reconhecida a existência de conexão entre essas ações, reunindo-as no juízo prevento.3 A administração sistemática dos processos singulares garantirá que eventuais condenações sejam realizadas de forma a resguardar o princípio da proporcionalidade.
Além da reunião de processos, porém, é certo que a atuação repressiva sobre as mesmas pessoas, condutas e esferas, torna imprescindível que se observem outras normas estruturantes acima mencionadas, não apenas sob o viés intraprocessual, mas, também, na perspectiva interprocessual. A possibilidade de eventual condenação do mesmo agente, por conduta ligada ao mesmo fato, pode colocar em xeque a efetiva aplicação da presunção de inocência.
Por isso, importante ressaltar que, para que haja a condenação, deve ser comprovada a culpabilidade da pessoa jurídica em cada um dos processos em andamento, independentemente do que já tenha sido apurado nos demais – até mesmo porque, como visto, o tipo de responsabilização decorrente de cada lei é distinto. Em outras palavras, não se pode olvidar, em virtude da evidente proximidade dos diplomas sob análise, que estes ainda compõem instrumentos distintos. Tais instrumentos, de acordo com um entendimento lógico sistemático, ressalte-se, não podem ser incompatíveis, sendo imperiosa a sua harmonização. Contudo, eles tampouco se confundem ou se imiscuem.
Entre uma demanda e outra deve ser resguardado, também, o direito do acusado de não produzir prova contra si mesmo. Nesse ponto, necessário rememorar o que foi dito a respeito do acordo de leniência: como visto, para que seja permitida a celebração do acordo de leniência, a pessoa jurídica deve confessar o envolvimento no ilícito, sendo esse requisito imprescindível para ensejar a aplicação das causas de diminuição de pena.
Eventual confissão em ação fundada na lei Anticorrupção pode ter reflexos sobre a ação de improbidade administrativa que versasse sobre os mesmos fatos. Não obstante, se interpretado de forma literal o disposto no art. 17, § 1º, da lei de Improbidade, a leniência obtida nos moldes da lei 12.846/13 em nada beneficiaria o acusado por improbidade e, ao contrário, poderia ser utilizada em prejuízo deste – como prova de seu envolvimento no ato ímprobo. Nesses termos, sempre considerando a estreita ligação ora constatada que há entre os diplomas sob análise, faz-se necessário compatibilizar o tratamento conferido ao instrumento da leniência em cada uma dessas leis.
No ordenamento jurídico pátrio, o acordo de leniência consiste em instituto voltado ao encurtamento da fase de investigação, por meio da obtenção da confissão do ilícito pela pessoa jurídica. É cediço, portanto, que o acordo de leniência figura com o instrumento positivo na tutela da administração pública. Isso porque a celebração do acordo não apenas abrevia o processo de investigação, diminuindo custos e esforços empregados na verificação do ilícito, como, ainda, torna mais efetivo o combate e a prevenção à corrupção.
Sob a ótica da eficiência, já seria defensável a aplicação do instituto da leniência também com relação aos procedimentos fundados sob a égide dalei de Improbidade Administrativa. Não obstante, a complexidade do fenômeno da corrupção, o seu caráter multifacetado e multidisciplinar, bem como a pluralidade de instrumentos que visam a combatê-la impõe que se realize uma atuação transversal e organizada nesta seara.
Sendo assim, a adoção, por uma lei, de prática aparentemente vedada por outra, dificulta a persecução dos atos antijurídicos como um todo – o que foge ao objetivo comum de ambas as leis sob análise e do microssistema normativo de proteção à administração pública. Trata-se, dessa forma, de um contrassenso entre o disposto na lei de Improbidade e os propósitos a que essa se destina.
Em outras palavras, por um viés equivocado de interpretação literal, a lei 8.429/92 estaria criando verdadeiros entraves à tutela da administração pública. Considerando, porém, o caráter paradoxal que há nessa constatação, resta evidente que a vedação à transação, na lei de Improbidade, deve ser interpretada de modo a tornar-se compatível com o combate à corrupção.
E, em que pese a ausência de previsão legal expressa no corpo da lei de Improbidade Administrativa, esta integra um microssistema que prevê a possibilidade de leniência. Ademais, conforme evidenciado, a íntima relação que possui a lei de Improbidade com a lei Anticorrupção torna viável inclusive argumentar que o que está previsto em uma, por uma questão lógica, se estende à outra.
Considerando que a leniência aumenta a efetividade da tutela da administração, defende-se que, se esta for realizada em demanda fundada na lei Anticorrupção, os seus efeitos sejam alargados para eventual ação de improbidade em curso. Caso, porém, não se conclua pela possibilidade de extensão dos efeitos da leniência, é certo que, a confissão obtida com o referido instrumento não pode ser usada contra o agente em demanda diversa, uma vez considerados os princípios que regem o direito administrativo sancionador.
O fato é que, sendo inegável a sofisticação que adquirem os atos de corrupção, as iniciativas de repressão hão de ser analisadas de forma sistemática, para que se obtenham resultados efetivos. Nesse sentido, é imperioso que se reflita sobre a interação que há entre os diversos diplomas legislativos atualmente vigentes no ordenamento pátrio, na busca por uma tutela justa e efetiva da administração pública.
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1 - Sobre o tema, ver: SANTOS, Carlos Frederico Brito. Improbidade administrativa. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 13.
2 - PAZZAGLINI FILHO, Marino. Op. Cit., p. 214.