Uma tendência que se está firmando no implexo dos litígios de Direito do Seguro e Direito dos Transportes é a de levantar contra a indenização securitária a hipótese da mera liberalidade, do pagamento ex gratia.
Mas da simples frequência de uma afirmação não se extrai exatamente uma verdade. Às vezes nem uma dose razoável de bom senso. Pode se tratar apenas de um engano insistente, um particularíssimo jeito de errar.
E justamente é o que acontece aqui.
Os protagonistas são alguns transportadores de carga que, depois de descumprir o contrato que firmaram, veem-se em disputa judicial com os seguradores sub-rogados. Usam o argumento da mera liberalidade no pagamento da indenização securitária sem saber, ou mesmo sabendo, que isso se choca com a estrutura mesma da relação de seguro.
É de se supor um caso particular.
Imagine-se que, resguardada por um contrato de seguro, uma empresa contrata outra para o transporte de cargas. Naturalmente, o transportador compromete-se a entregar a carga segurada, em perfeito estado, a seu local de destino. Contudo, ainda sob sua custódia contratual, essa mesma carga vem a perder-se, danificar-se ou estragar-se. Por força de lei a presunção da culpa recai sobre ele.
Posteriormente, sabendo do sinistro, o dono da carga notifica o segurador. Este procede com os rigores procedimentais de sua regulação, na qual o evento danoso é revirado, analisado nos mais mínimos detalhes, posto sobre a mesa técnica, aberto e exposto em suas causas e culpados. Como resultado, surgem dali apontamentos de salvados (quando os há), deduções e minúcias, tudo a fim de precisar a cobertura do risco e, consequentemente, o valor da indenização.
Confirmadas as perdas, o segurador faz o pagamento da indenização securitária, contornando os prejuízos advindos ao segurado pelo descumprimento do contrato de transporte. E no momento seguinte, já sub-rogado nos direitos e ações do segurado, prepara contra transportador a ação de regresso cabível.
Em defesa, porém, junto às questões de sempre a empresa transportadora vez ou outra levanta dúvidas irrazoáveis sobre o comprovante de pagamento da indenização. Embaralha valores, oferece interpretações estranhas aos fatos e ao direito, de tal maneira que, infundindo na confusão certo ar de verossimilhança, procura ver reconhecida no formalismo a razão que lhe falta no resto.
Por mais que se lhe prostrem à frente, as evidências de indenização nunca parecem suficientes a certos transportadores. Acabam sempre por apontar para um pagamento ex gratia. O propósito dessa alegação é muito simples: corroer a prova de sub-rogação, minar a legitimidade ativa do segurador e assim evitar a discussão meritória.
Montam argumentos do gênero ao modo de uma magnífica engenharia de problemas. É truque de ilusão dos bons. Principalmente quando sua responsabilidade pelo sinistro é de indesculpável clareza, já que, em vista dos autos, a conclusão é de que não entregaram a carga tal como a receberam, violaram o contrato sem oferecer nenhuma justificativa legal. De fato, contra isso não podem muito; sobra-lhes então só a eterna fuga do mérito, um refúgio sob o teto fácil das questões preliminares. Pouquíssimas vezes têm êxito. Mas até essas devem ser repelidas.
O esforço é válido, tem sua razão de ser — ao menos no campo da retórica. No campo jurídico ainda provoca dúvidas, afinal, muito embora o pagamento ex gratia seja tese comum em disputas em juízo, sua prática é não só incomum no mundo dos fatos, como praticamente impossível de acontecer.
No caso específico do seguro de transporte, por exemplo, por quanto e quantos anos teria o segurado de manter-se fiel à seguradora, sem causar sinistros, só para oferecer uma única justificativa financeira a sustentar uma indenização por liberalidade ou interesse comercial?
A conta não fecha.
A princípio nem seria preciso buscar argumentos propriamente jurídicos ou éticos para desmontar a falácia de um pagamento ex gratia. A probabilidade matemática, irresignada com semelhante argumentação, faria questão de esticá-la até os limites da lógica, de abusar de sua elasticidade diminuta, até arrebentá-la ao meio.
O negócio de seguro é o mais regulado de todos. A probabilidade de um pagamento de indenização sem nenhuma razão de ser, além de ser afastado pelo próprio Direito, é amordaçada por um sem-número de instâncias controladoras, algumas das quais personificadas pelos próprios acionistas.
No mais, o pagamento ex gratia seria uma deslealdade perfeita com o colégio de segurados: pagar indenizações a quem não as merece é atentar contra os segurados, é retirar os valores que lhes deveriam servir, enriquecendo um às custas de todos os outros. É uma deformação do princípio do mutualismo, um dos pilares do negócio de seguro. Evidentemente, não é coisa que o segurador possa ou queira fazer, até porque aquele que ajuíza ações regressivas sem comprovar sub-rogação traz a si mesmo mais danos do que benefícios.
De todo modo, uma pergunta há de ser feita em litígios assim: em que o contrato de seguro interfere no contrato de transporte?
Os negócios jurídicos não se confundem.
Com a sub-rogação de direitos da seguradora, o foco é outro. Está no fato, no dano, na inexistência completa de qualquer causa a excluir da transportadora a responsabilidade pelo evento. O caso acaba por ganhar corpo no campo do contrato de transporte, desviando-se de discussões mais afeitas ao seguro propriamente dito.
Sobre essa mesmíssima questão, eis o que consta de um julgado recente do TJ/SP, da lavra do excelentíssimo desembargador Gilson Delgado Miranda (Ap. 0042246-43.2012.8.26.0114):
“Vale dizer, em demandas de regresso por sub-rogação fundadas em contrato de seguro, não cabe ao réu questionar a correção ou incorreção do pagamento da indenização securitária por exemplo, apontando cláusula de exclusão de cobertura existente na apólice firmada entre a autora e o seu segurado, imiscuindo-se em relação jurídica alheia, mas sim defender-se de forma a afastar a sua responsabilidade perante o segurado, quebrando o silogismo necessário à sua condenação."
Nem poderia o transportador desidioso, indiscutível autor de ato ilícito, deixar de ressarcir integralidade dos danos e prejuízos, em um apego às formalidades mais comezinhas do contrato entre segurador e dono da carga.
Companhias seguradoras não são instituições de caridade. Nem saem por aí distribuindo indenizações sem mais nem menos, sem motivo ou justificativa, antes de haver juntado, por evidências do caso e esforços dos seus, um acervo documental cujo vigor probatório aponte para a existência do sinistro e a necessidade de indenizá-lo.
Controlado do modo que é o mercado segurador maximamente improvável é que demande em juízo o ressarcimento de indenização de seguro, se não estiver perfeitamente sub-rogado. Do mesmo modo, não é de se imaginar que um pagamento será feito se não ficar identificado, no campo dos fatos, um avivamento do risco previsto em apólice; e, no caso particular do seguro de transporte o dano, a avaria, o extravio da carga.
De qualquer forma a gênese da sub-rogação não está no contrato de seguro, mas no pagamento da indenização securitária:
Art. 786, CC. Paga a indenização, o segurador sub-roga- se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.
Súmula 188 (STF): O segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até ao limite previsto no contrato de seguro.
Então, mesmo que não houvesse contrato de seguro, a simples indenização por ato ilícito de terceiro já faria incidir diversos dispositivos do Código Civil acerca do dever de indenizar, de acordo com o art. 934 do CC 2002:
Art. 934. Aquele que ressarcir o dano causado por outrem pode reaver o que houver pago daquele por quem pagou, salvo se o causador do dano for descendente seu, absoluta ou relativamente incapaz.
A Autora desembolsou os valores devidos pela Ré, a responsável pelos prejuízos. O pagamento da indenização faz incidir também o preceito geral da sub-rogação disposta no art. 346 c/c o art. 349 do Código Civil:
Art. 346. A sub-rogação opera-se, de pleno direito, em favor:
I - do credor que paga a dívida do devedor comum;
II - do adquirente do imóvel hipotecado, que paga a credor hipotecário, bem como do terceiro que efetiva o pagamento para não ser privado de direito sobre imóvel;
III - do terceiro interessado, que paga a dívida pela qual era ou podia ser obrigado, no todo ou em parte.
Art. 349. A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores.
Ou seja, independentemente se oriundo de contrato de seguro ou não, o pagamento realizado por terceiro interessado faz incidir os mesmos efeitos sob aquela relação, sendo verdadeiramente amplo o arcabouço normativo que garante ao segurador o direito ao ressarcimento por ter feito as vezes do terceiro faltoso.
Não se trata de uma exigência arbitrária de ressarcimento, uma postulação oportunista fundada em coisa nenhuma; é evidente que houve um contrato de transporte, o seu descumprimento pelo transportador e a indenização securitária decorrente dele. São coincidências demais que, acompanhadas de material probatório, apontam para o direito da seguradora. Há ainda sempre a regulação do sinistro, sem a qual não há pagamento de indenização.
Não há como deixar de concluir que a alegação de pagamento ex gratia, enxergada mais de perto, dissecada, exposta em suas entranhas, revela só o eco de um vazio interior.
Não tendo como afastar sua responsabilidade, presumida por lei, parte o transportado culpado para uma discussão sobre questões comerciais que não lhe dizem respeito, voltando-as à seguradora feito um escudo contra a legitimidade do direito de regresso.
De todo modo, não seria imensamente injusto que, provado o fato, provado o dano, provada a responsabilidade da transportadora, provada a relação securitária, provado o pagamento da indenização, devesse se extinguir a ação por um formalismo tão enormemente exagerado, tão exigente no acidental e leniente no essencial, tal como costuma exigir esse tipo particular de transportador, sempre cético, sempre apegado à mais bizantina burocracia?
Não há dúvida.
Por essa razão, afora pense serem suficientes para negar o direito de regresso, as palavras do transportador inadimplente acabam por se mostrar invariavelmente fracas, subnutridas, cansadas; de respiração vacilante, andam de um lado a outro sem rumo, como moribundos à espera do juízo. Pagamento ex gratia não existe. Motivo para que seja feito também não. O que existe é o apego do transportador culpado à caricatura do formalismo, pois que lhe facilita a fuga do próprio dever. E para isso a lei não lhe há de servir.
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*Leonardo Quintanilha é advogado do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados.
*Paulo Henrique Cremoneze é advogado com atuação nas áreas do Direito do Seguro e Direito dos Transportes, sócio de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados.