O governo publicou a MP 899, que estabelece os requisitos e as condições para que a União e os devedores, ou as partes adversas, realizem transação resolutiva de litígio, nos termos do art. 171 da lei 5.172, de 25 de outubro de 1966 — CTN. A MP encerra dois problemas, um na forma e outro no conteúdo.
O teor da MP camufla uma pauta-bomba de alta radioatividade para a capacidade arrecadatória do país. À primeira vista, o material de divulgação do governo sobre a medida provisória, denominado “contribuinte legal”, passa a republicana impressão de que a medida será uma facilitadora dos conflitos fiscais. No entanto, o argumento não resiste a uma análise mais crítica. O “novo paradigma” que o governo vende está longe de ser uma alternativa “fiscalmente justa”. A matéria cria mecanismos para perenizar os parcelamentos especiais de débitos fiscais (Refis) que sempre beneficiaram, em grande medida, os maiores e mais lucrativos contribuintes.
A apresentação do projeto prevê novo cenário para a transação tributária. Mas que “novo cenário” é esse se nem a premissa a respeito da capacidade contributiva está explicitada? Na modalidade “transação na cobrança dívida ativa”, o argumento é de que o crédito é irrecuperável. Sendo assim, não há capacidade contributiva. Na transação no contencioso tributário, definida a situação de controvérsia jurídica, não se poderia distinguir por capacidade contributiva — o que impediria, por exemplo, os bancos de participar. Todos que possuíssem litígios análogos, em certo aspecto, seriam classificados de igual modo. Em outras palavras, seria a consolidação do princípio da capacidade contributiva às avessas no sistema tributário brasileiro, de maneira similar ao que ocorreu nos diversos Refis já implantados.
As dúvidas sobre a transação proposta pela MP são muitas. Por exemplo, é legal existir uma delegação para o ministro da Economia definir os casos de transação, como aparece na medida provisória? Sem que haja alguma baliza ao poder administrativo do ministro da Economia, nesse caso, estaremos diante de uma discricionariedade que beira a arbitrariedade. Sem falar que a subjetividade é total na definição de litígios tributários ou aduaneiros que versem sobre relevante e disseminada controvérsia jurídica. Muitos defendem que a estrita legalidade tributária impede isso.
A medida provisória não aponta, ainda, em que tipo de juízo ou tribunal, judicial ou administrativo deve estar localizada a controvérsia jurídica. Pode ser no Carf, tribunais estaduais, TRFs, STJ, STF ou outra instância recursal. A expressão “disseminada” pode e deve ser melhor definida. Em quantos e quais juízos ou tribunais, deve ser demonstrada a existência da controvérsia? Em cada tribunal deve existir a controvérsia? Se um tribunal vem decidindo uniformemente, não teremos uma controvérsia naquele tribunal?
Outro aspecto importante é que, apesar de a matéria de relevância afetar diretamente a competência da Receita Federal, o Fisco foi surpreendido com o anúncio da medida sem que os auditores fiscais ou seus dirigentes fossem consultados. Sua elaboração, ignorando por completo o que pensa um dos órgãos mais técnicos e eficientes do Estado, é incompreensível, porque a MP tem poder de impactar de maneira profunda e irreversível o papel fiscalizatório e arrecadatário do órgão. Esse comportamento do governo só aprofunda a crise institucional pela qual passa a Receita Federal, vilipendiada por forças poderosas externas e ignorada pelo próprio governo na formulação de assuntos tributários.
Cientes de que a edição da MP 899 é mais um ataque à Receita Federal, a tramitação no Congresso Nacional é uma realidade que precisamos enfrentar, um assunto que, lamentavelmente, nunca foi colocado em debate pelo governo na sociedade.
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*Mauro Silva é presidente da Unafisco Nacional (Associação Nacional dos Auditores Fiscal da Receita Federal).