Migalhas de Peso

O patrimônio de afetação do imóvel rural e a cédula imobiliária rural*

Deve-se ter em conta que, do ponto de vista de sua oportunidade, a eficácia dos institutos tratados pela MP 897/19 depende da superação da recessão econômica que está estabelecida no país, ambiente atualmente desfavorável à procura de crédito pelas empresas.

23/10/2019

No primeiro artigo desta série tratamos da estrutura e finalidade do FAF, expondo as minhas dúvidas a seu respeito, que não eram poucas. A leitura dos artigos que têm sido publicados sobre o tema não as espancaram, porque eles têm sido de natureza predominantemente descritiva. E uma das minhas preocupações se deu em relação a problemas eventuais do entendimento, alcance e interpretação das normas referentes à MP 897/19 e dos que estão a ela ligados, pensando até mesmo o que poderá acontecer futuramente no plano do Judiciário, imaginando o que entenderão sobre ele – com o devido respeito -  juízes de comarcas distantes dos grandes centros, não afeitos aos segredos do direito bancário e do mercado de capitais, por exemplo.

Por oportuno, deve-se ter em conta que, do ponto de vista de sua oportunidade, a eficácia dos institutos tratados pela MP 897/19 (que é uma solução micro) depende da superação da recessão econômica que está estabelecida no país (solução macro, sem perspectiva de superação a não ser no longo prazo, conforme os ventos da política ), ambiente atualmente desfavorável à procura de crédito pelas empresas (no caso particular pelos produtores rurais). E a prova disto está no fato de que, tendo o Banco Central do Brasil liberado recentemente quase 20 bilhões de reais que estavam presos como depósitos compulsórios, eles ficaram inertes nos caixas dos bancos, sem clientes interessados1.

Outra observação a ser feita refere-se à necessidade da interpretação da MP 897/19 a partir do trabalho de um operador generalista do direito, dada a significativa quantidade de micro sistemas jurídicos envolvidos, entrelaçados uns aos outros. Trata-se de uma tarefa que aos poucos caminha para a qualificação de missão impossível X, considerando-se que nossas faculdades de direito têm se preocupado em formar o advogado especialista do direito do dedo mindinho de pé esquerdo. Também é desprezada a importância da lógica, instrumento, digamos assim, da condução do pensamento adequadamente concatenado. Prefere--se, ao invés, o método de se pescar aleatoriamente todos os peixes que possam ser encontrados em uma lei, para depois tentar se fazer uma classificação qualquer, mesmo que no meio deles tenha vindo um sapo.

Veja-se que a MP em questão passa pelo Direito Constitucional, Civil, Comercial, Tributário e Trabalhista, se é que não me esqueci de algum dos que nela foram chamados a colaborar. Nesse contexto são identificados, entre outros, diversos institutos como o do patrimônio (geral e de afetação), dos títulos de crédito (a Cédula Imobiliária Rural, o Depósito Bancário, à Cédula de Produto Rural, os Títulos do Agronegócio, quanto à cartularidade, endosso, aval, escrituração), a recuperação judicial, o depósito centralizado, os valores mobiliários, a subvenção econômica, e por aí vai. 

E já que estou me relacionando aos diletos leitores em um tom coloquial, destaco que a minha geração de operadores do direito foi privilegiada ao tempo do milênio/século passado, pelo estudo dos fundamentos dessa ciência em termos de Teoria Geral do Direito, bem como as teorias gerais de cada das disciplinas que formavam a grade do nosso curso. Especialização era pouca, sendo uma delas na faculdade de Direito da USP a relativa ao Direito do Trabalho, mediante a estruturação prática da disciplina pelo saudoso prof. Cesarino Júnior. Especialização vinha da vida prática, mas as ferramentas para tanto já estavam em nossas mãos. Sobre isto escreverei em momento mais adequado, tendo certeza de que aquele era o melhor caminho.

1. Novas considerações sobre o patrimônio de afetação

No tocante ao patrimônio de afetação vemos que ele é instrumentalizado por meio da Cédula Imobiliária Rural - CIR (uma ou mais), da qual falaremos mais especificamente em seguida, que será colocada no mercado objetivando a obtenção de recursos pelo proprietário do bem para a utilização na sua atividade rural. Duas situações poderão se dar em relação ao destino de parte de uma propriedade rural para o fim da constituição de um patrimônio de afetação: ser constituído por meio da separação da melhor parte da propriedade ou, ao contrário, pela menos valiosa delas.

É evidente que no primeiro caso a colocação no mercado das correspondentes cédulas se dará de forma mais fácil e a uma taxa mais favorecida. No sendo assim, dar-se-á o contrário. Um efeito perverso será observado quando o credor excutir o patrimônio de afetação diretamente, tornando-se proprietário do bem, do que resultará uma ampla desvalorização da área remanescente. Pense-se, por exemplo, que é na parte boa de uma fazenda que se constituiu o patrimônio de afetação, na qual está a sua fonte principal ou única de água, localizada fora da linha divisória daquela propriedade. Se não tiver sido constituída previamente uma servidão adequada para dar ao dono da área sem água o direito de acesso a esta, ele ficará “na mão” do seu vizinho, sem nada poder fazer a respeito para superar o seu problema.

Na qualidade de bem destinado a prestar garantias em operações de crédito tomadas pelo produtor rural a estrutura jurídica mostra-se adequada, observadas as ponderações acima efetuadas. Sua segurança jurídica está bem construída, tratando-se de bem completamente livre de outros gravames e de sua absoluta separação de demais bens do patrimônio gera do proprietário ou de eventuais outros patrimônios de afetação que ele tiver constituído. Neste sentido esse patrimônio de afetação na correspondente CIR a plena materialidade do direito de propriedade, naquela cartularizado, tal como ocorre em relação a todo e qualquer título se crédito.

Mas um eventual problema ligado à questão da segurança desse patrimônio poderia ser encontrado, por exemplo, na sua desconsideração, por um juiz, em situações de insolvência do produtor rural, passando ele por cima das regras próprias que essa MP 897/19 dispõe sobre o afastamento dos efeitos da falência, insolvência civil ou recuperação judicial do produtor rural. A largueza indiscriminada que têm sido observada no âmbito do Judiciário quanto à aplicação dos princípios da função social e da preservação da empresa deixa o operador do direito um pouco receoso de que o mesmo venha a acontecer em relação ao patrimônio de afetação de que se trata e à CIR que nele tem origem.

Outra fonte de enfraquecimento do patrimônio de afetação em tela, como nota fortemente negativa, tem base no inciso I do art. 9º e no inciso II do art. 13 da MP 897/19, transcritos em seguida ipsis litteris:

Art. 9º  Os bens e os direitos integrantes do patrimônio de afetação não se comunicam com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do proprietário ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos, desde que o patrimônio de afetação esteja vinculado a uma ou mais Cédulas Imobiliárias Rurais, na medida das garantias vinculadas à Cédula Imobiliária Rural.
(...)
§ 5º  O disposto neste artigo não se aplica às obrigações trabalhistas, previdenciárias e fiscais do proprietário rural.
Art. 13.  Incumbe ao proprietário que constituir o patrimônio de afetação:
(...)
II - manter-se adimplente com as obrigações tributárias e os encargos fiscais, previdenciários e trabalhistas de sua responsabilidade, incluída a remuneração dos trabalhadores rurais. 

Assim sendo, nos termos dos dispositivos acima, o patrimônio de afetação poderá ser desconstituído ou ignorado diante da inadimplência do proprietário rural que o erigiu. Assim tal instituto se revela mais como uma carta de intenções do que como um patrimônio efetivamente separado que assim não é. Ou seja, o legislador está vendendo gato por lebre.

2. A Cédula Imobiliária Rural – CIR

Cuida-se de mais um título de crédito destinado ao financiamento da atividade produtiva rural, dotada da natureza de promessa de pagamento em dinheiro relativa a operação de crédito contratada pelo produtor rural junto a uma instituição financeira (necessariamente). Caso o pagamento em questão não seja efetuado o devedor deverá entregar ao credor o bem imóvel do qual se constituiu a CIR como garantia, objeto do patrimônio de afetação estabelecido pela MP vertente.

Diferentemente da alienação fiduciária em garantia (na qual, diante do inadimplemento do devedor, o credor se consolida na propriedade plena do bem que é o seu objeto), em relação à CIR, uma vez não paga, surge para o devedor a obrigação de entregar o bem imóvel rural ou fração dele vinculado ao respectivo patrimônio de afetação. A recusa da entrega obrigará o credor recorrer ao oficial de registro de imóveis competente para que, na forma do inciso IX do art. 19 da MP, processe o registro para o seu nome da transmissão da propriedade do bem que formou o mencionado patrimônio de afetação. Essa prerrogativa consta expressamente de autorização dada pelo emitente.

A emissão da CIR é reservada exclusivamente ao proprietário rural, pessoa natural ou jurídica, que, como premissa necessária, tenha constituído um patrimônio de afetação na forma da MP em foco o qual, portanto, é o bem jurídico subjacente àquele título de crédito. Observe-se que a CIR não é, naturalmente, “o bem objeto do patrimônio de afetação”, mas tão somente uma garantia que se estabelece sobre ele e a cartularidade divide-se entre a natural (em papel) e a escritural (constituída pelo registro ou depósito correspondente em entidade própria, como veremos em seguida).

A MP 897/19 permite, sem especificar as razões, que, não configurando requisito do título (mais corretamente deveria ter dito elemento quando à cártula), está presente a faculdade de fazer constar de sua literalidade outras cláusulas não financeiras lançadas em seu registro, depósito ou cártula, as quais poderão constar de documento à parte com a assinatura do emitente, incluída a menção na formalização correspondente. Ficando em aberto essa possibilidade – que não poderá conter qualquer cláusula que esvazie a CIR do seu conteúdo mínimo obrigatório – nada impediria a meu ver que o endossante dela fizesse uso na medida de eventual interesse legítimo. A diferença entre os efeitos do que constará do registro e da cártula não foram explicitadas pela norma, observando-se que qualquer interessado poderá ter acesso aos elementos constantes do registro, limitando-se ao uso que fará do seu conhecimento, não envolvendo a responsabilidade de quem negociou o título registrado (ou depositado?), como foi visto linhas acima.

A MP em questão disciplina o ato de registro ou depósito da CIR em alguma entidade autorizada pelo BCB ou pela CVM a exercer a atividade correspondente de registro ou de depósito centralizado de ativos financeiros e de valores mobiliários, nos termos do disposto na lei 12.810, de 15/5/13, no prazo de cinco dias úteis, contado da data de sua emissão.  Esses atos são a condição necessária para que a CIR tenha eficácia executiva sobre o patrimônio de afetação a ela vinculado. Ou seja, ela se tornará um título executivo extrajudicial.

Em primeiro lugar não ficou muito claro no texto da MP 897/19 se, diante da falta de registro ou de depósito, qual seria a natureza da CIR, que não chegaria a constituir-se como um título de crédito dotado de eficácia executiva, caracterizando-se tão somente como uma promessa de pagamento de natureza civil, fora, portanto, do direito cambial e de sua força.

Em segundo lugar a referida MP parece colocar no mesmo plano, como sinônimos, os termos registro e deposito que têm juridicamente contornos bastante diversos. Quando se faz o registro de uma escritura de imóveis em cartório próprio, o efeito é tão somente o de se dar publicidade quanto à identificação do proprietário do bem registrado e de eventuais gravames sobre o imóvel (hipoteca, por exemplo). Ao contrário, quando se faz o depósito – que no caso seria aquele de natureza regular, que não transfere a propriedade do bem para o depositário, como acontece com os depósitos bancários – o depositário assume a obrigação de guarda, de conservação do bem e de sua devolução oportuna ao legítimo proprietário.

No parágrafo segundo do art. 16 a MP 897/19 abandona o termo registro, para fixar-se no de depósito para o fim de determinar que a CIR terá natureza cartular antes de depósito e escritural enquanto permanecer depositada.

De início verifica-se uma contradição aparente entre essa declarada natureza cartular antes do depósito da CIR e a ausência de eficácia executiva se não depositada, conforme explanado linhas acima. Isto significaria que ela poderia circular por endosso, transmitindo-se a sua propriedade, mas o endossatário não teria em tal documento a força que lhe seria conferida no plano de sua execução se fosse considerada um título de crédito pleno. Tal contradição se mantém quando é feita a leitura do art. 18 da MP sob comento, no qual está declarado que a CIR é um título extrajudicial, representando dívida em dinheiro, certa, líquida e exigível, correspondente ao valor nela indicado ou ao saldo devedor da operação de crédito que ela representa. Tudo muito certinho e bonito, mas, não depositada, lhe faltará a eficácia executiva.

Uma vez depositada escrituralmente, os atos jurídicos praticados em relação à CIR não serão incorporados à sua literalidade, constando tão somente o histórico correspondente nos registros do sistema próprio. Isto quer dizer que os adquirentes sucessivos da CIR depositada não integram – ou não devem integrar – a cadeia cartular da responsabilidade inerente aos títulos de crédito, não servindo como elemento integrativo o histórico das negociações objeto daquele título. Essa cadeia, na verdade, não se formaria quanto aos negócios feitos em relação à CIR depositada.

Um ponto a se destacar é o relativo à desnecessidade do protesto da CIR para que seja assegurado o direito de regresso contra endossantes e avalistas. Isto, é claro, aqueles cujos nomes constam de sua literalidade enquanto não depositada. Mas essa circulação seria muito restrita, pois se daria no curto prazo de cinco dias antes do registro obrigatório, nos termos do art. 16 da MP em questão.

Caro leitor, se você a essa altura dos acontecimentos não estiver totalmente confuso, peço por favor que ocupe o lugar desse escriba para o fim de afugentar a quantidade de dúvidas que têm sido levantadas neste e no texto anterior.

A CIR poderá ser garantida por terceiros, pessoas comuns, instituições financeiras ou seguradoras e receber aval, que constará, conforme o caso, do registro ou do depósito ou da cártula. Tratando-se o aval do efeito cambial relativo à garantia de algum negócio realizado com o título, mostra-se uma contradição na norma (ou no mínimo uma limitação), na medida em que o inciso I do § 3º do art. 16 estabelece que no período e que a CIR estiver depositada não serão transcritos negócios ocorridos no seu verso, que somente constará dos respectivos registros.

A esse respeito deve-se fazer uma pergunta sobre qual seria o efeito jurídico e como se tornaria eficaz diante de terceiros um aval concedido quanto a uma CIR depositada, que não constará da literalidade do título, mas tão somente dos registros do sistema. Trata-se de uma incógnita específica para esse título, que necessita ser tratada do ponto de vista da Teoria Geral dos Títulos de Crédito. Vejamos.

A Lei Uniforme sobre a letra de câmbio e outros títulos de crédito dispõe no seu art. 31 que o aval, além de ser aposto no próprio título, também pode ser dado em folha anexa. Desse ponto de vista a única questão que se coloca é a da prova daquele ato cambial, porque isoladamente a folha anexa não é nada. Neste caso a eficácia do aval depende de ter o titular do crédito, em suas mãos, os dois documentos, o original do título e aquela folha anexa. O anexo é um documento à parte, mas pode estar ligado ao título, por meio de cola, o que se tem chamado de alongamento. Veja-se a esse respeito o art. 13 da lei Cambial. No caso do cheque a lei 7.357, de 2/9/85 refere-se expressamente em seu art. 19 à folha de alongamento.

No sentido acima, portanto, o histórico extra cartular da CIR, no tocante ao aval, anotado nos registros do sistema e ao qual algum interessado tenha o direito de acesso, poderá ser eventualmente considerado como a tal folha de alongamento, para o efeito do reconhecimento daquele ato de garantia prestado pelo portador da CIR. E como aval por ele responderá o avalista perante o titular legitimado do título de que se trata.

E para o fim de tal responsabilidade, como também daquela dos endossantes, a MP vertente dispensa o ato de protesto (art. 18, § 2º). Mas, precisamente quanto à responsabilidade dos endossantes, eis que o legislador provisório ad hoc nos traz uma pérola no art.  24, inciso II, segundo o qual os endossantes responderão somente pela existência da obrigação e não pelo seu pagamento. Seriam endossantes do tipo café com leite, como se fazia em relação à antiga brincadeira do pique, quanto às crianças mais novas. Trata-se da quebra de um dos princípios cambiais essenciais dos títulos de crédito.

Nos termos do art. 15 da lei Cambial, o endossante, salvo cláusula em contrário, é garante tanto da aceitação quanto do pagamento do título. Dessa maneira, o que a MP 897/19 é dar ao endossante a simples função de repassador material do título, sem qualquer responsabilidade. Durma-se com uma regra dessas, cuja finalidade econômico-jurídica não se pode compreender. Se fosse o caso de não se atribuir responsabilidade cambial aos endossantes, bastaria proibir o endosso (por meio da “cláusula não à ordem”), do que resultaria, é claro, um esvaziamento da função da CIR. Aliás, parece que contraditoriamente, tendo em vista o objetivo de sua circulação no mercado,  a “cláusula à ordem”, que permite a circulação por endosso dos títulos de crédito, é uma faculdade expressa em relação à CIR.

Como vimos acima, a regra geral no tocante ao endosso é, portanto, a da responsabilidade do endossante, respondendo ele pelo pagamento do título, tal como consta do art. 15 da lei Cambial. Para não responder é necessário que se faça constar expressamente da literalidade do título uma cláusula em tal sentido, não tendo sido essa a solução adotada pela MP sob exame.

Vamos a outro ponto. Sem necessidade, porque há lei específica, o § 2º do art. 19 da MP 897/19 estabelece que o patrimônio de afetação vinculado à CIR observará o disposto na legislação ambiental.

A CIR foi criada com a intenção de dar nascimento a um crédito, que tem como fundamento econômico e jurídico (negócio jurídico subjacente) o patrimônio de afetação sobre o qual se constitui. Daí que a sua negociação em mercados é um fator natural para o exercício de sua finalidade. Neste sentido a MP 897/19 determina que ela somente poderá ser negociada nos mercados regulamentados de valores mobiliários quando registrada ou depositada em entidade autorizada pelo BCB ou CVM, autorizada a exercer a atividade de registro ou de deposito centralizado de ativos financeiros e de valores mobiliários.

Tenha-se em conta que nada impede a circulação privada, que não caracterize ofensa à obrigatoriedade do registro ou depósito prévio da CIR para o efeito da sua negociação em mercados próprios. Atente-se para o fato de que tal negociação dispensa o registro na CVM, referido no art. 19 da lei 6.385/76, uma vez que foi criada uma sistemática própria aqui já examinada. E a natureza, por sua vez, da CIR como valor mobiliário, é determinada pela própria MP 897/19, não se encontrando ela no rol constante do art. 2º da lei acima mencionada, não sendo o caso de ser classificada como título ou contrato de investimento coletivo, na forma do inciso IX.

No tocante ao uso do imóvel ou parte dele que se constituiu em patrimônio de afetação, isto se dará em relação à sua destinação econômica própria, a cargo do proprietário (por sua vez o emitente da CIR) devendo empregar em sua guarda a diligência que se revelará compatível com a sua natureza. Neste sentido, fazendo uma blague com a questão do acesso a armas pelo produtor rural, segundo a filosofia bolsonariana, será dever do produtor rural (sob pena de quebra dessa obrigação) estar preparado com armamento eficaz para defender-se de eventuais invasores. Será o faroeste caboclo, fundada a reação armada do proprietário nos dizeres de placas comuns em propriedades rurais norte americanas: “No trespassing”. O risco será seu, membros do MST, quejandos e bandidos comuns.

Não há vencimento determinado para a CIR. Isto dependerá da necessidade financeira do produtor rural que a emite, de acordo com o tempo de maturação da atividade que desenvolve na propriedade objeto da constituição do patrimônio de afetação correspondente.  Aproveito para lembrar os riscos próprios da atividade rural e da necessidade de se resguardar de eventos danosos por meio de contratos de seguro pertinentes.

Dar-se-á vencimento antecipado, nos termos do art. 23 da MP em questão nas seguintes hipóteses:

I - inadimplência da operação de crédito garantida pela Cédula Imobiliária Rural;
II - descumprimento das obrigações de que trata o art. 13;
III - insolvência civil, falência ou recuperação judicial do emitente; ou
IV - na existência de prática comprovada de desvio de bens e administração ruinosa do imóvel rural que constitui o patrimônio de afetação a ela vinculado.
Há algumas coisas interessantes a se comentar quanto ao dito vencimento antecipado. Em primeiro lugar a questão do art. 13, segundo o qual:
Art. 13.  Incumbe ao proprietário que constituir o patrimônio de afetação:
I - promover os atos necessários à administração e à preservação do patrimônio de afetação, inclusive por meio da adoção de medidas judiciais; e
II - manter-se adimplente com as obrigações tributárias e os encargos fiscais, previdenciários e trabalhistas de sua responsabilidade, incluída a remuneração dos trabalhadores rurais. 

Veja-se as obrigações referidas no inciso primeiro, supra, correspondem ao exercício próprio de qualquer pessoa quanto ao cuidado com seus bens (o nosso caro pater famílias), no tocante especifico à defesa do patrimônio de afetação. Seria o equivalente a um dever fiduciário do direito anglo-norte-americano, instituto ao qual se costuma fazer uma aplicação deveras leviana entre os nossos operadores do direito e que nada tem a ver com os fundamentos daquele instituto na sua origem.

Quanto ao inciso II, lá vem de novo a conhecida e antiga novela da proteção diferenciada que no direito brasileiro se estabelece quanto aos créditos públicos e aos trabalhistas (no caso referidos especificadamente os trabalhadores rurais), sem que haja uma devida justificativa econômica para tanto, que a torne eficaz em relação ao recebimento dos créditos correspondentes.

Quanto ao inciso III do art. 23, a MP que afasta do devedor (emitente da CIR) o direito à recuperação judicial a qual seria, de acordo com o art. 47 a lei 11.101/05, precisamente o meio adequado para viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

E note-se que ao produtor rural é especificamente estendido o direito a pleitear sua recuperação judicial uma vez obedecidos os requisitos presentes no parágrafo segundo da norma acima citada. Dessa forma a MP 897/19 quebra o princípio maior, consistente em se dar oportunidade de recuperação do seu negócio para negócios viáveis, na medida em que os problemas financeiros por ele enfrentados não sejam de natureza estrutural, mas contingenciais.

Prezados leitores, vou parar por aqui. Já gastei demasiadamente os meus já antigos neurônios e deve ter esgotado a sua paciência.

Vem mais por aí em terceiro artigo sobe esta matéria. Além de mais a tratar com relação a essa MP, são tantas as interrelações jurídicas envolvidas e inerentes a diversos micro sistemas jurídicos, que sobre muitas delas eu posso ser ignorante (como já afirmei na matéria anterior) e quanto a outras posso não as ter percebido.

Por isto, recorro a um habeas corpus preventivo para que em próxima oportunidade, eu reveja ou complete eventualmente alguma coisa sobre a qual já me pronunciei, esperando não precisar recorrer ao STF, já tão assoberbado de questões ingentes, algumas das quais ele mesmo cavou, SMJ. Eventuais omissões que tiverem se verificado serão oportunamente sanadas. Críticas construtivas serão muito bem recebidas.

Hasta la vista, baby.      

__________

* Este artigo é continuação daquele publicado neste Migalhas no dia 8 do mês em curso, sob o título “O Fundo der Aval Fraterno – FAF -, o Patrimônio de Afetação do Imóvel Rural e a Cédula Imobiliária Rural”. 

1 - Vide sobre o tema “Compulsório liberado pelo BC fia ‘empoçado’ e não vira crédito”, de Alex Ribeiro, in Valor Econômico de 16/10/19.

__________

*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio de Duclerc Verçosa Advogados Associados.

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