“Da dignidade do juiz depende a dignidade do direito. O direito valerá, em um país e em um momento histórico determinado, o que valham os juízes como homens. No dia em que os juízes têm medo, nenhum cidadão pode dormir tranquilo.” (Couture)
Na última quinta feira (17/10/19) o Supremo Tribunal Federal começou a julgar as Ações Diretas de Constitucionalidade ADCs 43, 44 e 54 que tratam da execução provisória da pena. As ADCs tratam da constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, c/c art. 5º, Inciso LVII da Constituição Federal, que estabelece: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.”
Um julgamento histórico que pretende revisar entendimento da Suprema Corte de 2016 e que trará efeitos nocivos ou não (a depender do resultado), que transcende a esfera criminal e que poderão afetar milhares de trabalhadores e trabalhadoras, aumentando a quantidade de desempregados no país que hoje já alcança a marca de 13,1 milhões (dados do IBGE), acrescido da quantidade de 24,1 milhões de trabalhadores por conta própria (levantamento da consultoria IDados – publicada no Valor Econômico de 21/8/19).
Consta desta análise que “41,7% das pessoas ocupadas por conta própria vivem com menos de um salário mínimo por mês. Isso significa que existem atualmente 10,1 milhões de pessoas atuando como trabalhador por conta própria com rendimento inferior a R$ 998 mensais.
A análise sob a perspectiva dessa ressonância para o Mundo do Trabalho, da decisão da Suprema Corte, parte do artigo 482, alínea “d” da Consolidação das Leis do Trabalho, que estabelece uma lista de critérios que autorizam o empregador a demitir o empregado por justa causa, modalidade de demissão que por si só já macula a vida profissional de um profissional.
“Art. 482 - Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador:
(...)
d) condenação criminal do empregado, passada em julgado, caso não tenha havido suspensão da execução da pena.”
É de fácil constatação que na alínea “d” do artigo 482, não há menção sobre quais os tipos de condenação criminal que justifiquem a demissão por justa causa. Pode ser uma contravenção penal ou um crime hediondo. A interpretação é ampla e subjetiva e poderá ficar a critério do empregador analisar se aquela condenação é ou não motivo para uma demissão por justa causa ou mesmo do próprio julgador trabalhista em uma eventual reclamatória.
A demissão por justa causa, além de jogar a classe trabalhadora na lista de desempregados e desalentados, a coloca em situação de absoluta indignidade, pois não lhe possibilita o recebimento de verbas rescisórias, habilitação no seguro desemprego e saque do FGTS, que lhes permite o sustento até uma nova colocação no mercado de trabalho.
Ou seja: é submeter o trabalhador e a trabalhadora à fome e à miséria, além do alijamento da possibilidade de novo trabalho, pois terá a marca inapagável da demissão por justa causa por uma condenação criminal.
E as empresas serão implacáveis. Não contratarão. Ainda que a sentença penal não tenha transitado em julgado ou que haja uma ação trabalhista que derrube a justa causa aplicada, as marcas estarão cravadas em seu histórico de vida pregressa profissional que impossibilitará sua recolocação no mercado de trabalho.
Um registro que não pode ficar alijado desta reflexão são os casos de trabalhadores e trabalhadoras afastados em decorrência de acidente de trabalho ou doença ocupacional. Empregados e empregadas estáveis, que não podem ser demitidos, salvo por justa causa, após o término do benefício previdenciário. É de um ano a estabilidade após o aviso de volta ao trabalho, expedido pela autarquia.
Bingo!
Uma “excelente” oportunidade para que maus empregadores “se livrem” daqueles empregados estáveis, que porventura tiverem um processo penal em curso, sem nada lhes pagar.
Ou seja: se prevalecer a tese de que poderá haver execução provisória de uma pena antes do trânsito em julgado de decisão penal condenatória, significa não só um aumento substancial da população carcerária como também uma multiplicação em larga escala de trabalhadores e trabalhadoras no índice de desemprego e na miséria o que poderá, ainda que em tese, aumentar o índice de criminalidade no país e mais abarrotamento nas prisões, em um círculo cruel e absolutamente antissocial.
O valor social do trabalho é tábula rígida na Constituição Federal e dialoga com o princípio da presunção de inocência, para que impeça arbítrios cometidos por maus empregadores que não se intimidam em macular a vida profissional de um Ser Humano trabalhador que produz e que se sustenta e que sustenta outras vidas humanas.
Ao se riscar do texto constitucional a presunção de inocência estar-se-á banindo por consequência o respeito aos valores sociais do trabalho, a dignidade da pessoa humana e com o núcleo medular do princípio fundamental da República Federativa do Brasil da prevalência dos direitos humanos.
A possibilidade de execução provisória da pena atingirá a coluna vertebral do direito do trabalho que é o fator protetivo. Com isso, dentre os trabalhadores e trabalhadoras desempregadas, estar-se-á nutrindo a possibilidade de demissões de trabalhadores estáveis.
A consequência?
O caos social
Um caos social que não poderá ser contido pelas entidades sindicais, pois já existe hoje uma asfixia, com alta intensidade, do movimento sindical, que vitimiza o espaço democrático, porque reduz ou anula até o poder reivindicatório indispensável para o avanço social.
E a justificativa é simples.
A grande maioria de dirigentes sindicais no país possui algum processo penal em curso por causa de greves e movimentos que lideram. Tudo isso dentro das inúmeras tentativas de criminalização dos movimentos através de um sistema de instalação do medo entre as categorias e seus líderes para que não se movimentem.
As legislações que vêm sendo criadas desde a malfadada reforma trabalhista que tramitou na Casa Legislativa sem o devido diálogo social e de forma açodada, até a atual PEC que pretende realizar a reforma sindical alterando o artigo 8º da Carta Cidadã, possuem como mote a desestruturação dos sindicatos, baluartes de defesa democrática e da classe trabalhadora.
Não é necessário um esforço hercúleo para imaginar quais as consequências para os dirigentes sindicais, nessa hipótese de desrespeito à presunção de inocência. Demissão por justa causa (única hipótese de demissão de dirigente sindical e ainda com ajuizamento de inquérito para apuração de falta grave).
Alguns podem imaginar que o judiciário trabalhista poderá reverter essas demissões e garantir a estabilidade.
Quem poderá dar essa certeza?
Há uma insegurança jurídica que permeia todas as searas do Direito, nesta quadra que se vive de simulacro democrático, onde as próprias instituições são utilizadas para instalação de repressões e arbítrios sob a falsa argumentação de que tudo se faz em nome do povo, para o povo e pela vontade do povo.
É preciso estar atento.
A Constituição Cidadã deu relevo especial ao trabalho, reconhecendo-o como direito social fundamental e seus valores possuem preponderância na configuração da ordem econômica e em relação aos demais valores da economia de mercado, sendo proibido qualquer fator de retrocesso, que vem consubstanciado no artigo 7° da Carta Constitucional, que é retórica na defesa dos direitos fundamentais da classe trabalhadora, exprimindo textualmente a obrigatoriedade de melhoria da condição social.
Normas internacionais, das quais o Brasil é signatário, estabelecem compromissos de garantia de avanços no mundo do trabalho e proibição de retrocessos, normas essas abarcadas no conjunto constitucional, no título destinado a direitos e garantias fundamentais.
O Estado Democrático de Direito tem como fundamentos, dentre outros, o valor social do trabalho e a dignidade da pessoa humana que estarão absolutamente comprometidos caso não haja desrespeito ao que consta no capítulo de direitos e garantias fundamentais de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
O ministro presidente do STF, Dias Toffoli em brilhante voto nos autos da ADC 43, derivado de seu absoluto compromisso com o Estado Democrático de Direito, que perpassa obrigatoriamente pelo respeito às normas da Constituição Federal, fundamenta que:
“Logo, se não for hipótese de prisão em flagrante ou de prisão cautelar, não se admitirá a prisão antes do trânsito em julgado da condenação, vale dizer, antes que se forme a coisa julgada penal. Coisa julgada penal é um termo inequívoco: imutabilidade dos efeitos da sentença penal condenatória. Trânsito em julgado, portanto, significa que se tornaram imutáveis os efeitos da sentença condenatória, pela preclusão ou pelo exaurimento do legítimo exercício do direito à interposição dos recursos cabíveis – sublinhe-se “legítimo”, para bem estremá-lo do ilegítimo, enquanto abusivo ou procrastinatório.
Nesse contexto, a execução provisória da pena, por tratar o imputado como culpado e configurar punição antecipada, violaria a presunção de inocência como “norma de tratamento”, bem como a expressa disposição do art. 283 do Código de Processo Penal.
Em sua interpretação literal, a presunção de inocência exige que o réu seja tratado como inocente não apenas até o exaurimento dos recursos ordinários, mas sim até o trânsito em julgado da condenação, o que é bem diverso. Daí porque interpretar trânsito em julgado como mero exaurimento dos recursos ordinários subverteria o texto legal, haja vista que não se concebe a existência do trânsito em julgado provisório: ou se exaure a legítima possibilidade de recorrer, e a pena pode ser executada, ou não se exaure, e a execução da pena é vedada.
Analogamente, o eabratntendimento de que, após o julgamento dos recursos ordinários, a presunção de inocência se convolaria em presunção de culpabilidade colide frontalmente com o texto do art. 5º, LVII, da Constituição Federal.
Com efeito, a presunção de inocência, por expressa disposição constitucional, subsiste íntegra até o trânsito em julgado.”
Qualquer decisão da Suprema Corte que não observe este princípio, golpeará a Constituição Federal em todos os elementos que garantem a igualdade, a liberdade, a dignidade e a democracia e certamente o Supremo Tribunal Federal não carregará essa mácula antidemocrática e inconstitucional.
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*Alessandra Camarano Martins é presidente da Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas – ABRAT.
*Fabiano Silva dos Santos é advogado, professor universitário, doutorando em Direito pela PUC/SP e membro do Grupo Prerrogativas