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Processo Civil na prática: é possível suscitar fato novo perante os tribunais superiores?

A possibilidade de alegação de fato novo (ou superveniente) é há muito consagrada no ordenamento processual, tendo sua presença inicialmente mencionada, na atual legislação, no artigo 342 do Código de Processo Civil de 2015, ao indicar que é lícito ao réu, após a contestação, deduzir novas alegações quando relativas a direito ou fato superveniente.

17/10/2019

Não raras vezes os operadores de direito se deparam com a necessidade de alegar um fato novo (superveniente) durante a tramitação de um processo; e ainda que seja lógico o raciocínio de sua possibilidade, como podemos concluir de forma segura se o julgador será competente para apreciá-lo? O Superior Tribunal de Justiça, mesmo com diversos critérios de admissibilidade recursal, teria a competência necessária para julgar um fato novo? Como têm sido o entendido a respeito do tema?

A possibilidade de alegação de fato novo (ou superveniente) é há muito consagrada no ordenamento processual, tendo sua presença inicialmente mencionada, na atual legislação, no artigo 342 do Código de Processo Civil de 2015¹, ao indicar que é lícito ao réu, após a contestação, deduzir novas alegações quando relativas a direito ou fato superveniente.

Tal premissa é norteada pela ideia já sedimentada na jurisprudência pátria que a prestação jurisdicional deve ser concedida de acordo com a situação dos fatos no momento da decisão, sendo nítido que a intenção do legislador neste tocante é a de garantir que a parte não seja prejudicada pelo procedimento processual quando existir fato relevante que possua o condão de influenciar o julgamento da demanda (direito material postulado ou defendido).

Sob este prisma, e o que não merece maior elucubração, o julgador em sede de cognição exauriente deve aplicar o direito analisando todos os fatos e provas apresentadas no processo naquele momento, inclusive as supervenientes, tal como prevê também o artigo 493², em contraponto com o artigo 933³, ambos do CPC/15.

A interpretação restrita da lei nestas hipóteses levava à conclusão de que a apreciação do fato novo seria de responsabilidade somente do julgador em primeira instância, no entanto, ainda na vigência do CPC/73 o STJ já entendia que o disposto no artigo correlato (Art. 4624) seria aplicável também às demais instâncias, sob a premissa de que a prestação jurisdicional deve corresponder a realidade dos fatos no momento da resolução da lide.

Assim inclusive é como lecionam os ilustres professores Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery5: “A jurisprudência do STJ já entendia, na vigência do CPC/73, que o disposto no CPC/73 462 (atual CPC 493) não se aplica apenas às instâncias ordinárias, mas também à instância especial. O atual CPC traz, portanto, uma adaptação do CPC 493 para a fase recursal”.

É de fácil conclusão, assim, que os demais órgãos julgadores, independentemente da instância, são competentes para analisar os fatos e provas supervenientes (após a interposição do recurso, diga-se de passagem), sendo até mesmo uma determinação do ordenamento jurídico, considerando a importância da prestação jurisdicional adequada ao momento do julgamento da lide.

No entanto, não obstante os pontos apresentados acima, é realmente adequada a ideia de que o STJ, por exemplo, seja competente para o julgamento de fato novo quando a questão não foi decidida pelo Tribunal a quo? Não estaríamos diante de um óbice de conhecimento do recurso, pela ausência do indispensável pré-questionamento6?

Sobre este tema a Corte Superior entendia (alguns anos atrás) que não seria cabível o Recurso Especial sob a alegação de fato novo, sob o argumento de que a matéria não tinha sido anteriormente debatida pela instância inferior, valendo-se como ilustração mencionar trecho do Acórdão proferido no AgRg no Ag 781.622/MG7, in verbis:

(…) Não há possibilidade de se viabilizar o acesso às Instâncias Superiores se não ocorreu debate acerca do preceito legal dito violado. No caso dos autos, ainda não estava em vigência a LC 118/05 por ocasião da prolação dos acórdãos impugnados mediante recurso especial. Da mesma forma, não há que se alegar violação do artigo 535 do CPC por tal motivo. 2. Apenas no recurso especial é que a Fazenda agravante veio fazer referência à LC 118/05 buscando beneficiar-se da modificação legislativa por ela introduzida posteriormente à prolação dos arestos recorridos, acenando com fato novo antes não debatido. Outrossim, o fato de terem sido colacionados precedentes jurisprudenciais deste Sodalício, onde se tratava da LC 118/05, não supre a ausência de prequestionamento constatada. 3. Agravo regimental não-provido.

Entretanto, em julgados mais recentes o STJ tem se posicionado que o fato superveniente é matéria relevante e deve, sim, ser apreciado no Recurso Especial, voltando-se à aplicação de princípios como ofensa à coisa julgada e segurança jurídica, conforme solução dada aos julgados cujo trecho da ementa destaca-se abaixo.

(…) No caso dos autos, o fato superveniente – consubstanciado na coisa julgada produzida em lide (ação declaratória) que tramitava paralelamente ao processo de execução que deu origem aos presentes autos – é tema relevante e deve guiar a solução do presente recurso especial sob pena ofensa à coisa julgada. (…). (REsp 911.932/RJ8).

(…) É lícito concluir que a presente lide acha-se fulminada pela irrecusável força da coisa julgada material, de modo que se impõe tomar em conta este relevante fato superveniente (arts. 462 do CPC/73 e 493 do CPC/15). (…). (EDcl nos EDcl no AREsp 262.900/SP9).

Não seria por motivo diverso que o próprio Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, no artigo 141¹º, prevê que mesmo após recebidos os autos pelo Tribunal (ad quem), será admitida a juntada de documentos como prova de fatos supervenientes, mencionando expressamente decisões de processos conexos que possam de algum modo influenciar na resolução da matéria discutida.

Aliás, o mesmo raciocínio também norteia uma das possiblidades de ingresso da ação rescisória, conforme redação dada ao artigo 966, IV do CPC/15¹¹, sendo claro na legislação processual vigente que a prova nova tem o condão de pôr em xeque uma sentença transitada em julgado, sendo suficiente inclusive para rescindi-la. Neste aspecto, se torna até mesmo ilógica a ideia de que os dos Tribunais Superiores não possam apreciar o fato novo, sob pena de infringir o princípio da economia processual.

Sob este foco, concluímos que a alegação de fato novo ou prova superveniente deve ser apresentada diretamente ao julgador do processo na instância em que se encontra, inclusive no STJ ou STF, sendo certo que, seja lá qual for o grau de jurisdição, observar-se-á sempre o contraditório e aplicar-se-á o direito da forma mais adequada possível, valendo-se de todos os elementos necessários para apreciação do direito material discutido, independentemente do procedimento processual aplicável.

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1 Art. 342. Depois da contestação, só é lícito ao réu deduzir novas alegações quando:

I – Relativas a direito ou a fato superveniente;

2 Art. 493. Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento do mérito, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a decisão.

3 Art. 933. Se o relator constatar a ocorrência de fato superveniente à decisão recorrida ou a existência de questão apreciável de ofício ainda não examinada que devam ser considerados no julgamento do recurso, intimará as partes para que se manifestem no prazo de 5 (cinco) dias.

4 Art. 462, CPC/73. Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento da lide, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a sentença.

5 Comentários ao Código de Processo Civil, NOVO CPC, Editora Revista dos Tribunais, 2015. Pág. 1854.

6 CF/88, artigo 105 III – julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: (…)

7 Rel. Ministro JOSÉ DELGADO. PRIMEIRA TURMA, julgado em 07 de agosto de 2007, DJe 27/08/2007.

8 Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/03/2013, DJe 25/03/2013.

9 Rel. Ministro LÁZARO GUIMARÃES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO), QUARTA TURMA, julgado em 07/08/2018, DJe 17/09/2018.

10 Art. 141. Nos recursos interpostos na instância inferior, não se admitirá juntada de documentos, após recebidos os autos no Tribunal, salvo: II – para prova de fatos supervenientes, inclusive decisão em processo conexo, os quais possam influenciar nos direitos postulados;

11 Art. 966. A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: VII – obtiver o autor, posteriormente ao trânsito em julgado, prova nova cuja existência ignorava ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável;

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*Lucas Fernando Dal Bosco é auxiliar jurídico do escritório Vialle Advogados Associados.

*Rodrigo Carlesso Moraes é sócio do escritório Vialle Advogados Associados.

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