Como se sabe, em se tratando de comércio exterior, o Brasil é signatário do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comercio, em inglês, General Agreement on Tarrifs anda Trade (GATT/1947).
No entanto, em virtude da criação tardia da OMC1 (Organização Mundial do Comércio) em 1994, seus textos acabaram sendo republicados, dando origem ao GATT/1994.
Entre as disposições do GATT está a previsão contida em seu artigo VII que busca combater e evitar o uso de bases de cálculos fictícias ou artificiais para tributação dos produtos importados de outras nações, fazendo assim com que fosse cumprida a intenção de derrubar as barreiras protecionistas dos países desde o Pós-Segunda Guerra.
Para tanto, em conjunto com o mencionado tratado, foi assinado também o acordo sobre a Implementação do art. VII do Acordo Geral sobre Tarifas e Comercio de 1994.
Nesse acordo, foram estabelecidos os critérios para criação de uma base de cálculo comum para todos os produtos, denominada de Valor Aduaneiro.
Dessa forma, pela redação do referido acordo, ficou estabelecido que o mencionado valor aduaneiro2 seria o valor da transação, isto é, o preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias em uma venda para exportação para o país de importação.
Todavia, o que se pretende com o presente texto não é propriamente discutir o conceito de valor aduaneiro estabelecido pelo mencionado acordo de implementação, mas sim o impacto trazido pelo Artigo 8, §2º junto à legislação aduaneira brasileira, que trata especificamente dos ajustes que os países signatários podem fazer ao valor aduaneiro.
Isso porque, a redação do Artigo 8º e de seu §§ 2º assim dispõe:
Artigo 8
1. Na determinação do valor aduaneiro, segundo as disposições do artigo 1, deverão ser acrescentados ao preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias importadas:
(...)
2. Ao elaborar sua legislação, cada membro deverá prever a inclusão ou a exclusão, no valor aduaneiro, no todo ou em parte, dos seguintes elementos:
carga
(a) - o custo de transporte das mercadorias importadas até o porto ou local de importação;
(b) - os gastos relativos ao carregamento descarregamento e manuseio associados ao transporte das mercadorias importadas até o porto ou local de importação; e
(c) - o custo do seguro
Trata-se, pois, de autorização para que o país signatário do acordo possa incluir no valor aduaneiro da mercadoria os valores decorrentes do custo com o transporte das mercadorias até o porto de destino (frete internacional) e os custos com o seguro da carga até a chegada nesse porto de destino.
No Brasil, o mencionado acordo foi internacionalizado pelo Decreto Legislativo 30/1994 e posteriormente regulamentado pelo Decreto 6.759/09 (Regulamento Aduaneiro).
No tocante à regulamentação do § 2º do Artigo 8 do citado Acordo de Implementação, assim dispôs o Regulamento Aduaneiro, em seu artigo 77.
Art. 77. Integram o valor aduaneiro, independentemente do método de valoração utilizado (Acordo de Valoração Aduaneira, Artigo 8, parágrafos 1 e 2, aprovado pelo Decreto Legislativo 30, de 1994, e promulgado pelo 1.355, de 1994; e Norma de Aplicação sobre a Valoração Aduaneira de Mercadorias, Artigo 7°, aprovado pela Decisão CMC 13, de 2007, internalizada pelo Decreto 6.870, de 4 de junho de 2009):(Redação dada pelo Decreto 7.213, de 2010).
I - o custo de transporte da mercadoria importada até o porto ou o aeroporto alfandegado de descarga ou o ponto de fronteira alfandegado onde devam ser cumpridas as formalidades de entrada no território aduaneiro;
II - os gastos relativos à carga, à descarga e ao manuseio, associados ao transporte da mercadoria importada, até a chegada aos locais referidos no inciso I; e
III - o custo do seguro da mercadoria durante as operações referidas nos incisos I e II.
Ocorre que, conforme será adiante analisado, referido ajuste no valor aduaneiro das mercadorias importadas carece de uma análise mais profunda quanto à sua legalidade e aplicação no sistema jurídico brasileiro, devido ao seu impacto na base de cálculo dos tributos aduaneiros, como por exemplo, do Imposto de Importação (II).
Isso porque, no ordenamento jurídico brasileiro, somente a lei é instrumento normativo hábil para instituir ou aumentar tributo, conforme dispõe o art. 150, I da Constituição Federal de 1988 .
Nesse ponto, cumpre destacarmos que por lei, entende-se o instrumento normativo aprovado e votado pelo poder constitucionalmente estabelecido para esse fim, isto é, instrumento normativo decorrente da atividade do Poder Legislativo, aqui representado pela vontade soberana do povo.
Também nesse sentido é a redação do art. 97 do Código Tributário Nacional:
Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:
I - a instituição de tributos, ou a sua extinção;
II - a majoração de tributos, ou sua redução, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;
III - a definição do fato gerador da obrigação tributária principal, ressalvado o disposto no inciso I do § 3º do artigo 52, e do seu sujeito passivo;
IV - a fixação de alíquota do tributo e da sua base de cálculo, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;
Dessa forma, a inovação legislativa pretendida pelo art. 77 do Regulamento Aduaneiro (inclusão do frete e do seguro no valor aduaneiro e, consequentemente, na base de cálculo dos tributos aduaneiros) está eivada pelo vício da inconstitucionalidade, uma vez que violou o Princípio da Legalidade em matéria tributária.
Isso porque, sua inclusão no ordenamento jurídico brasileiro se deu por via incorreta para inovação na ordem jurídica (decreto presidencial), além de constituir modalidade indireta de aumento de tributo, uma vez que aumentado o valor aduaneiro da mercadoria, aumenta-se a base de cálculo dos tributos aduaneiros, ocasionando numa cobrança indevida dos contribuintes/importadores brasileiros, que acabam sendo onerados excessiva e ilegalmente em suas atividades.
Portanto, como realizado com as despesas com a capatazia, cabe ao Judiciário brasileiro, por meio de nossa Corte Superior, reconhecer a inconstitucionalidade perpetrada pelo art. 77 do Regulamento Aduaneiro, afastando a inclusão do Frete e do Seguro Internacional do Valor Aduaneiro das mercadorias importadas e, consequentemente, da base de cálculo dos tributos aduaneiros.
Inclusive, referido posicionamento já vem sendo adotado por alguns juízes de primeira instância, mas ainda carece de um posicionamento mais claro de nossos tribunais para dar ao contribuinte importador mais segurança nas suas operações, além de possibilitar uma redução nos seus custos tributários, que muitas vezes chega a inviabilizar determinadas operações.
Por fim, entendemos que a inclusão do frete e do seguro internacional no valor aduaneiro das mercadorias importadas atenta flagrantemente contra o sistema jurídico brasileiro, de modo que os contribuintes importadores devem socorrer-se do judiciário para afastar o aludido aumento e seu consequente impacto na base de cálculo dos tributos aduaneiros.
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1 LUZ, Rodrigo. Comercio Internacional e Legislação Aduaneira. 7ª ed. revista, ampliada e atualizada. Ed. Jus Podivm, 2018. Págs. 471 e 472
2 PARTE I - NORMAS SOBRE VALORAÇÃO ADUANEIRA - Artigo 1
1. O valor aduaneiro de mercadorias importadas será o valor de transação, isto é, o preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias em uma venda para exportação para o país de importação, ajustado de acordo com as disposições do Artigo 8, desde que:
3 Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;
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*Renato Sales dos Santos é advogado. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e especialista em Direito Tributário e Processual Tributário pela Escola Paulista de Direito (EPD).