A lei da declaração da liberdade econômica foi aprovada para demonstrar ao mercado, a partir da descrição de princípios e diretrizes que objetivam a garantia do livre exercício de atividades econômicas, a consistência do governo Federal com uma agenda econômica voltada à desburocratização e ao crescimento do país.
Apesar da exclusão da aplicação desses princípios e diretrizes ao direito tributário, a lei 13.874 traz alterações na legislação fiscal, com um claro objetivo de conferir segurança jurídica aos contribuintes e de reduzir litígios tributários.
Uma alteração bastante relevante refere-se a criação de um Comitê, formado por integrantes da Receita Federal do Brasil (RFB), da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), que editará súmulas da administração tributária federal (super súmulas) de observância obrigatória em atos administrativos, normativos e decisórios praticados pelos referidos órgãos.
Em linha com o objetivo de conferir segurança jurídica ao mercado e garantir a redução de litígios tributários, nos parece que a vinculação de atos administrativos e normativos às super súmulas seja uma boa medida, como forma de garantir que os contribuintes terão mais clareza quanto a determinadas matérias tributárias, evitando-se litígios desnecessários. E, do lado do Fisco, garantirá uma uniformidade na atuação da Administração, reduzindo as hipóteses de autuações fiscais com respeito a matérias que já tenham posicionamento pacificado.
Em um primeiro momento, poderíamos supor, em relação a atos decisórios, que as super súmulas também serviriam como pacificadoras de discussões tributárias. Contudo, a questão surge quando analisamos a regulamentação para a criação desse Comitê, da forma de edição dessas súmulas e dos seus efeitos.
O Comitê será formado exclusivamente por representantes do Fisco, já que, na sua composição, participará o presidente do Carf, o Secretário Especial da Receita Federal do Brasil e do Procurador-Chefe da Fazenda Nacional.
A aprovação do enunciado da súmula deve ser fundamentada em: (i) súmula ou resolução do Carf; e (ii) pelo menos três decisões firmadas por turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), em reuniões distintas.
Na primeira hipótese, a super súmula estará alinhada com o entendimento do Carf, perpetuando o entendimento manifestado por aquele Órgão Julgador, independentemente do posicionamento pró ou contra Fisco.
Ao se analisar a segunda hipótese, é possível verificar que a mera existência de entendimento manifestado três vezes por turma da CSRF pode levar à aprovação da super súmula. Para nós que atuamos no Carf, essa hipótese mostra-se muito preocupante. A existência de três decisões no mesmo sentido não cria necessariamente um posicionamento reiterado e pacífico do órgão sobre determinada matéria fiscal. Considerando a sistemática de desempate de julgamento prevista na legislação – voto de qualidade -, na qual, diante do empate na votação de uma matéria, a definição ocorre em razão de duplo voto proferido pelo presidente da turma Julgadora, é possível que se chegue ao absurdo de edição de uma super súmula sem que haja sequer entendimento majoritário do Carf sobre um determinado assunto.
Justamente para evitar situações como essa, o regimento interno do Carf, ao prever a possibilidade de edição de súmulas, de observância obrigatória pelos membros do Carf, ressalta que devem ser consubstanciadas em decisões reiteradas e uniformes do Carf e impõe um quórum mínimo para sua aprovação de 3/5 (três quintos) da totalidade dos conselheiros do respectivo colegiado. Sendo o Carf um órgão paritário, composto de representantes da Fazenda e dos contribuintes, a aprovação da súmula do Carf passa necessariamente por uma conciliação de entendimentos entre os conselheiros. Há representatividade tanto do Fisco como dos contribuintes na edição das súmulas do Carf, dada a necessidade de observância do quórum mínimo.
Essa sistemática de edição de súmulas pelo Carf perde sentido diante da alteração que está sendo proposta com as super súmulas, dado que estas poderão ser aprovadas exclusivamente por representantes do Fisco, havendo, ainda, um enorme risco de se poder tornar sem efeito súmula do Carf que disponha em sentido contrário.
Claramente haverá uma possibilidade de: (a) revogação, pelas super súmulas, de súmulas do Carf que não atendam aos interesses do Fisco; e (b) aprovação de súmulas sobre matérias que não tem posicionamento pacífico no Carf e que, por essa razão, até hoje não foram sumuladas. Tudo isso, obviamente, de vinculação obrigatória para atos decisórios no âmbito administrativo.
Restará aos contribuintes, então, unicamente recorrer ao Poder Judiciário.
As super súmulas poderão ter como efeito perverso, dada a forma como serão utilizadas, enfraquecer o Carf, que é um órgão técnico, eficiente e competente para solução fundamentada de litígios, levando a um incremento muito significativo da judicialização de matérias tributárias, como nunca se terá visto antes.
Não podemos esquecer, ainda, que o processo administrativo, como procedimento de revisão da legalidade do lançamento, permite ao contribuinte exercer com plenitude a sua defesa e o contraditório, sem que haja a necessidade de apresentação de qualquer garantia ou depósito, o que muitas vezes limita a defesa no âmbito judicial.
Ao final, não se terá atingido a pretensão de garantir a segurança jurídica ao contribuinte e de permitir redução de litígios tão almejada se o Carf for desprestigiado.
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