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Os softwares já engoliram o mundo! E agora? – Os mecanismos jurídicos de garantia à inovação e o papel do sandbox regulatório

A lei é um avanço sem igual para nosso país e absolutamente é um passo importante para o desenvolvimento do Brasil na inovação de tecnologias, produtos e serviços, onde o modelo do sandbox regulatório vem agregar.

8/10/2019

Oito anos após o famoso artigo de Marc Andreesen “Why software is eating the world” ter sido publicado no The Wall Street Journal, não há contestações sobre o fato de que vivemos em mundo de economia digital, onde o conceito de que toda empresa deve ser uma empresa de software não é mais uma novidade e que “inovação disruptiva” passou a ser um termo comum utilizado no meio empresarial.

A ruptura dos padrões e modelos de mercado vem acontecendo, diariamente, pela inovação tecnológica adotada pelas empresas, principalmente as startups, que invadiram o mundo, agitaram o Vale do Silício e desmoronaram a velha economia na mesma velocidade que os usuários aposentaram o CD-ROM e passaram a armazenar seus dados em nuvens.

De acordo com matéria publicada na revista Exame em 4/2/19, o investimento em tecnologia somará USD 3 trilhões no ano de 20191. É um caminho sem volta? Absolutamente! Inimaginável pensar que as empresas terão qualquer futuro se não investirem em tecnologia e em meios de prestar os seus serviços de forma on line.

A utilização de serviços por meio de software está tão intrínseca nas nossas vidas que é difícil perceber como os softwares estão comandando nossa atual realidade.

Se pensarmos que em um passado não tão distante a comunicação era feita somente por telefones fixos ou cartas e que os serviços de logística eram baseados em mapas, conseguimos entender o efeito que os softwares causaram no mundo. O acesso quase que imediato às informações e a conexão on line forçaram muitos mercados a se reinventarem para evitar o final não tão feliz que tiveram as locadoras de vídeo ou a crise em que se encontra o mercado de vendas de livros.

O desenvolvimento da economia baseada em softwares tornou possível a contratação imediata de serviços, o acesso direto à produtos e serviços pelos consumidores e o feedback quase que imediato da prestação destes serviços.

Os softwares realmente comeram o mundo, e já o engoliram! E o direito parece estar muito atrás da realidade em que temos vivido.

É muito claro e um tanto quanto óbvio que o direito não consegue e jamais conseguirá caminhar na mesma velocidade que o desenvolvimento da tecnologia e, em consequência deste fato, muitos serviços são oferecidos aos consumidores sem que haja uma regulamentação especifica em razão do caráter inovador que possuem.

Por exemplo, a lei que regula o transporte remunerado privado individual de passageiros foi publicada após dois anos do lançamento do Uber no Brasil; as criptomoedas não possuem, com exceção da IN RFB 1.888, qualquer tipo de regulamentação no Brasil, ainda que já passados 10 anos da criação do bitcoin. E, não obstante as diversas categorias de fintechs, apenas a sociedade de crédito direto (SDC) e a sociedade de empréstimo entre pessoas (SEP) foram reguladas pelo BACEN.

A ausência de regulamentação gera uma insegurança jurídica muito grande para as empresas detentoras dessas tecnologias, assim como para os seus investidores ou potenciais investidores. A mudança do cenário juridico que pode ocorrer após anos de pesquisa em tecnologia gera um desconforto enorme para o desenvolvimento e implementação da inovação.

Em matéria publicada em sua página pessoal e no jornal Washington Post em 30/3/19, Mark Zuckerberg solicitou aos governos e legisladores maior regulamentação para o Facebook a fim de que o desenvolvimento da empresa tenha parâmetros mínimos para aquilo que é proibido, a fim de preservar o melhor desenvolvimento da empresa, a liberdade das pessoas e o seu direito de privacidade.

Não é papel do direito frear a economia. Pelo contrário, é preceito constitucional o incentivo do desenvolvimento tecnológico e da inovação, mas também é papel do Estado garantir a proteção dos cidadãos, a sua privacidade, integridade física e segurança.

Neste contexto, os operadores do direito têm tido uma dificuldade relevante em regulamentar certas atividades e empresas que parecem possuir multifunções.

Como enquadrar as diversas formas de fintechs em nosso sistema bancário? Se tratam de instituições financeiras propriamente ditas ou prestadores de serviços de intermediação?

E empresas como o Uber? Os serviços estão abrangidos pela regulamentação para aplicativos de transporte? E quando a mesma empresa passa a prestar serviço de entrega de alimentos, tour por vinícolas e aluguel de helicóptero?

Enfim, as respostas não são simples, assim como igualmente não é simples a decisão dessas empresas em arriscar implementar suas atividades dentro de um sistema juridico não definido. A solução da insegurança jurídica pode ser o diferencial entre o sucesso de um “unicórnio” ou o fracasso de mais uma ideia que não saiu do papel.

E é justamente neste cenário que surge o modelo do sandbox regulatório. “Sandbox” é um conceito vindo da informática, que se refere a um ambiente isolado e controlado para que programas ou arquivos de computador possam ser testados sem afetar o sistema ou plataforma em que são inseridos.

A palavra ainda remete à metáfora de manter uma criança brincando dentro de uma caixa de areia, um ambiente controlado e limitado onde a criança é livre para brincar, e é esta exatamente a ideia do sandbox regulatório, a criação de um ambiente regulatório experimental que visa permitir que empresas de tecnologias inovadoras tenham licenças provisórias e normas mais simplificadas e flexíveis para testar suas tecnologias em ambientes controlados.

No período de teste encontramos uma situação “ganha ganha”, no qual as empresas possuem espaço para desenvolver suas tecnologias e as autoridades reguladoras passam a aprender sobre tais tecnologias, ganhando mais tempo e experiência para criar uma regulamentação própria e minimizar eventuais impactos e riscos aos consumidores.

O modelo já é praticado pela FCA (Financial Conduct Authority) britânica desde junho de 2016 e é considerado um sucesso, sendo reportado no Regulatory Sandboxe Lessons Learned Report publicado em outubro de 2017 que “o acesso à experiência em regulamentação que o sandbox oferece reduziu o tempo e custo para obter ideias inovadoras ao mercado” além de “criar salvaguardas de proteção do consumidor em novos produtos e serviços”.

O departamento do Tesouro dos EUA inseriu a “facilitação ao desenvolvimento de sandbox regulatórios para a promoção da inovação” como premissa a ser adotada quando da publicação dos relatórios de 2018 sobre a regulação do país.

Em junho deste ano, o governo brasileiro informou que a Secretaria Especial de Fazenda do Ministério da Economia, o Banco Central, a Superintendência de Seguros Privados (Susep) e a CVM pretendem implantar o sandbox regulatório no Brasil.

Em 28/8/19 a CVM apresentou em audiência pública o edital para apresentação de manifestações sobre opções regulatórias relacionadas às regras para constituição e funcionamento do sandbox regulatório. A Susep, por sua vez, abrirá consulta pública sobre o tema.

A intenção da criação do modelo sandbox no Brasil está em linha com a recém aprovada lei 13.874/19, a lei da liberdade econômica. Referida lei estabelece normas de proteção à livre iniciativa e livre exercício da atividade econômica, trazendo uma série de medidas de desburocratização para o desenvolvimento da atividade econômica brasileira e tendo como princípio a intervenção subsidiária e excepcional do Estado no exercício destas atividades.

Em mais de um artigo, a mencionada lei prevê a limitação do papel do Estado no que se refere a sua intervenção à livre formação de sociedades empresariais ou de atividades econômicas ou, ainda, às práticas que retardem a inovação e a adoção de novas tecnologias. O motivo? Geanluca Lorenzon, diretor de desburocratização da Secretaria de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia responde: “Hoje a maior parte das pessoas que têm que começar um novo negócio e uma startup não conseguem dar conta de passar da fase inicial, porque os custos burocráticos são muito grandes. Na fase de testar a gente já cobra um monte de burocracia, como alvará de funcionamento, registros. Mas tem carga que outros países não enfrentam”.2

A lei é um avanço sem igual para nosso país e absolutamente é um passo importante para o desenvolvimento do Brasil na inovação de tecnologias, produtos e serviços, onde o modelo do sandbox regulatório vem agregar. Espera-se que a implantação deste modelo, não somente na área financeira, venha promover o progresso do Brasil na competitividade mundial nas áreas de tecnologia e inovação.

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1 - Investimento em tecnologia somará US$ 3 trilhões em 2019 e põe foco no empoderamento.

2 - MP da liberdade econômica impõe limites à ação do estado no dia a dia dos empreendedores brasileiros

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*Nicole Katarivas é sócia da área de direito societário e M&A do escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri Advogados.

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