Não é por falta de MPs que o governo atual vai passar despercebido. Fora as surpresas de todos os dias, em todas as áreas, o presidente da República editou até o momento (ainda não terminou o dia) 27 MPs. Algumas delas não tiveram sucesso, outras o alcançaram de forma relativa e poucas passaram pela marca da vitória sem contratempos.
Observe-se a desobediência sistemática ao comando constitucional que determina como condições para a edição de MPs, cumulativamente, a sua relevância e urgência, fatores que superariam o trâmite regular pelo Legislativo de leis ordinárias. No caso concreto podemos pensar que esteja presente a relevância, mas jamais a urgência.
Outro ponto a comentar está na odisseia das MPs pelo Congresso Nacional, em sua análise. Sabe-se como ela entra, mas nunca se sabe como ela sai, as vezes sendo deixada morrer por inércia. E não é raro que o texto ressurja eivado de jabuticabas, convenientes aos jardineiros que as implantaram no galho da MP, mas inconvenientes para o fim proposto.
Passarei a fazer o exame metodológico do texto na forma de um exercício progressivo. De início eu o atacarei (sem interpretações viesadas, por favor) como um operador do direito que não tem muito conhecimento dessa área (vai ver que não tenho mesmo) e utilizará o seu cabedal jurídico em uma primeira leitura, com a apresentação das minhas dúvidas. Em seguida farei o cotejo das minhas impressões com a exposição de motivos para tirar algumas conclusões e dúvidas, sabendo que a interpretação autêntica do criador da lei não vincula o intérprete, seja ele juiz ou árbitro. Finalmente eu tecerei considerações conclusivas sobre as dúvidas que restarem, trazendo os comentários finais pertinentes.
Vamos lá.
O Fundo de Aval Fraterno – FAF terá por finalidade garantir de forma subsidiária dívidas de produtores rurais, entre as quais as resultantes da consolidação de dívidas. Significa dizer que a sua utilização se coloca como uma cobertura secundária em relação a outras garantias oferecidos pelos devedores. Dessa forma essa característica implica em uma ordem obrigatória a ser seguida pelos credores (ou a um benefício de ordem em favor dos devedores).
A designação desse fundo me parece um tanto jocosa e juridicamente imprópria. Isto porque no ramo dos negócios cada um cuida dos seus próprios interesses (o ser humano e as empresas de que participam têm uma natureza intrinsecamente egoísta, como nos ensinaram os filósofos e os economistas)1. Essa tal fraternidade mais teria a ver com o abraço do afogado, que se agarra fortemente a quem busca salvá-lo. Ou ele é salvo ou os dois vão juntos para o fundo das águas.
O FAF é constituído por (i) no mínimo dois e, no máximo dez devedores; (II) pela instituição financeira credora; ou pelos credores originais (no caso de consolidação de dívidas), incluídos os não financeiros; e (iii) pela instituição garantidora, se houver.
A norma não especifica, mas esses credores originais devem ser, necessariamente, instituições financeiras, respeitado o caput do seu art. 1º.
Por sua vez, os recursos que formarão o FAF serão integralizados por meio de uma estrut
Já que se trata de porcentuais mínimos os interessados deverão estrutura a integralização do restante do FAF conforme suas possibilidades e interesses.
O que se verificará na prática será o problema de serem encontrados bens dos devedores que ainda estejam livres de quaisquer obrigações ou garantias, não se podendo pensar em um FAF do tipo hipotecário, ou seja, formado por garantias que vão do subsolo até a estratosfera.
Os critérios para a consolidação das dívidas são os seguintes: (I) a instituição financeira consolidadora poderá exigir a transferência das garantias oferecidas nas operações originais para a operação de consolidação; e (II) os percentuais mínimos acima referidos incidirão sobre os valores que vierem a ser consolidados.
O que interessa é saber como a instituição financeira credora ou aquela que se tornou consolidadora buscará satisfazer-se no patrimônio do FAF. Em primeiro lugar, sendo este fundo de natureza subsidiária, os credores deverão esgotar inicialmente as garantias reais ou pessoais oferecidas pelo devedor individual. Em seguida passar-se-á à utilização dos recursos do FAF de acordo com a seguinte ordem obrigatória:
I - cota primária;
II - cota secundária; e
III - cota terciária.
Essa estrutura de alguma forma e em algum nível acarretará uma perda para as instituições financeiras participantes, segundo o valor de suas respectivas participações, a partir do esgotamento dos valores que compõem a cota primária.
Uma vez quitadas todas as dívidas garantidas pelo FAF ou dado o exaurimento dos seus recursos ele será extinto, devolvendo-se os valores eventualmente remanescentes de forma proporcional à sua contribuição originária, hipótese que deverá ser muito rara, a ser feita na ordem inversa, ou seja, da cota terciária para a primária. Essa solução corresponde ao legitimo interesse da instituição financeira garantidora e da consolidadora.
Diante desse cenário pergunta-se a respeito da necessidade de se criar legalmente um mecanismo especial para o fim do estímulo ao financiamento rural. Em que medida as próprias instituições financeiras poderiam ter adotado uma iniciativa em tal sentido, lembrando-se de que no passado os institutos de direito mercantil – e os de direito bancário entre eles – nasceram da prática dos comerciantes e dos banqueiros, tendo o legislador progressivamente os incorporado ao corpo de leis correspondentes. A impressão que fica é que os empresários e banqueiros perderam o timing e a essência de suas iniciativas, necessitando que o legislador (no caso o governo) desperte-os de sua inércia para o fim de dar nascimento a um veículo próprio para o desenvolvimento adequado de suas atividades. Outra hipótese é a da presença do Estado todo poderoso, condutor por si próprio dos caminhos econômicos – no caso – que direciona a economia para os seus interesses e supre as necessidades não atendidas pela sistemática presente. Nada impede que as duas explicações coexistam.
No sentido acima nada impediria que os banqueiros isoladamente ou em conjunto organizassem esquemas de consolidação de dívidas com os seus devedores, no universo da constituição das garantias adequadas, fazendo para tanto um aporte de recursos com o concurso dos devedores. O que não está ao alcance daqueles, por ser privilégio da lei, é a constituição de um patrimônio de afetação e a criação de de títulos de crédito, como se dá quanto à Cédula Imobiliária Rural, um a mais a se acrescer ao rol bastante extenso dos já existentes na mesma área do agronegócio.
Além do que já se disse no parágrafo anterior, não poderiam os particulares, evidentemente, constituir subvenções econômicas para empresas cerealistas com recursos do inefável e aparentemente inesgotável BNDES, a par da equalização das taxas de juros para as instituições financeiras privadas.
Explica a Exposição de Motivos que a subvenção econômica já prevista na lei 8.427, de 27/5/92 seria realizada neste caso por meio de uma equalização das taxas de juros aplicáveis às operações assim favorecidas mediante o pagamento pelo Tesouro Nacional da diferença entre o custo de captação dos recursos necessários, somado aos custos administrativos da instituição financeira beneficiara, e a taxa de juros cobrada do tomador do crédito rural, que teria condições de fazer operações de crédito segundo taxas de juros mais acessíveis, com o resultado do desenvolvimento das atividades agropecuárias em nosso país.
A exposição de motivos afirma, ainda, que a proposta da subvenção vertente não implicaria em custos adicionais para a União, mas que promoveria o aumento da concorrência entre instituições que integram o Sistema Nacional de Crédito Rural, com impacto positivo na redução dos custos para os tomadores de crédito. Em primeiro lugar eu lembro que os recursos do BNDES são originados fundamentalmente da União, de forma que não se revela verdadeira a asserção acima referida. Tal custo é dela diretamente e dos nossos bolsos, indiretamente.
Por outro lado, para mim está presente o perigo do desvio do aumento da concorrência entre as instituições financeiras na concessão de crédito a taxas mais baratas em beneficio. Ao contrário, poderá ocorrer a sua elevação, já que a diferença em favor do tomador de crédito ficará a cargo do BNDES. Dessa forma o incentivo da MP ora comentada seria em certa medida negativo e não positivo.
Quanto às taxas de juros, a intenção de vê-las mais baixas do que seria o “normal” encontra um óbice econômico natural, dado que a formação do FAF se dará com devedores assim reconhecidos e que já esgotaram a sua capacidade de outorgarem garantias de melhor qualidade. Ora, sabe-se que entre os elementos do spread bancário está o risco de inadimplência, mais acentuado na situação desse instituto. Neste sentido a exposição de motivos afirma que tem havido esforços para a mitigação de riscos vinculados aos financiamentos rurais, entre os quais subvenção (mais uma vez) ao prêmio do seguro rural, por meio da garantia de riscos climáticos e fitossanitários, a par de crédito de custeio rural ao amparo do PROAGRO. Claro que isto ajuda, mas o efeito sobre as taxas de juros é parcial.
Em acréscimo, a exposição de motivos indica que o reforço das garantias de que trata essa MP permitirá ao produtor rural obter financiamento para quitar suas dívidas de curto prazo, com isso ganhando fôlego para reestruturar o seu negócio, o que se revela, em tais termos, uma missão impossível. Isto porque é sabido que a atividade rural não tem maturidade de curto prazo. Quando muito será de médio prazo (seis meses a um ano) e principalmente de longo prazo (mais de um ano). Assim sendo, financiamentos de curto prazo formarão uma fileira bastante significativa para o fim de sustentar-se a atividade rural, revelando-se, portanto ineficazes e com um custo em cascata bastante elevado.
Considere-se, ainda, que a formação prevista pela MP para a constituição do FAF é baseada em cotas mínimas que, somadas, atingem apenas 10% (dez por cento) do valor a ser avalizado, não tendo havido a preocupação de se explicar como serão integralizados os restantes 90% (noventa por cento). Nesta situação é impossível avaliar qual o interesse das instituições financeiras em realizar contribuição com tal nível de participação, considerando-se que as garantias fornecidas são de natureza subsidiária, constituídas por devedores já problemáticos.
Por enquanto interrompo aqui as minhas considerações, pretendendo com este texto fazer o mesmo que costuma ocorrer com pesquisadores de universidades americanas e europeias, no sentido de que uma versão preliminar é apresentada para discussão pública e, uma vez colhidos os comentários da comunidade interessada, chega-se ao texto definitivo. É o que eu espero que aconteça.
Os demais temas dessa MP ficam para o próximo número.
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1 - O motor principal e fundamental no homem, bem como nos animais, é o egoísmo, ou seja, o impulso à existência e ao bem-estar (...), conforme Arthur Schopenhauer. Thomas Hobbes foi mais pesado em seu julgamento, ao afirmar que o homem é um lobo egoísta e interesseiro, sempre desejoso de saciar o seu apetite. Por sua vez, Kenneth Arrow (Nobel de economia em 1972) afirmou que não existe alguma coisa que se possa chamar de interesse coletivo, dado que todos os interesses são individuais.
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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio de Duclerc Verçosa Advogados Associados.