A medicina, pela sua própria natureza e a constante necessidade de atrelar seu desenvolvimento às pesquisas in anima nobili, vai buscando inovações nas mais alucinantes tecnologias, visando proporcionar ao homem uma salutar longevidade, acompanhada de uma qualidade de vida cada vez mais aperfeiçoada. Preparar o homem nas diversas etapas da sua vida para chegar a uma velhice de exaurimento e atingir a finitude com a mais recomendável dignidade.
Basta notar e não se vão longos anos para tanto. Inicialmente a medicina de massa cuidava de avaliar o paciente pelos exames disponíveis. Após, elaborava um diagnóstico seguindo um protocolo de conduta para todos os pacientes que apresentassem sintomas semelhantes, conferindo a mesma resposta terapêutica da ars curandi.
Mas é inquestionável que nem sempre a mesma prescrição médica iria atender e conseguir bons resultados com relação a todos os pacientes atendidos. Apesar das doenças apresentarem sintomas semelhantes, o organismo de cada um carrega mutações genéticas diferenciadas, fazendo ver que o tratamento, além de não ter a eficácia desejada, muitas vezes causava até danos ao doente. Quer dizer, o mesmo medicamento já não é mais apropriado para pacientes com semelhantes sintomas.
A medicina, então, percebendo que não atingia resultados satisfatórios com relação a um grande número de pacientes, avançou para uma medicina de precisão, na qual pretendia atingir maior êxito em suas tentativas. A Medicina Personalizada ingressa neste vácuo e assume uma proposta mais condizente com a realidade científica após a decifração do DNA. O homem, primeiramente, é avaliado de acordo com seu perfil genético, aquele que irá indicar as predisposições para as doenças, procurando, desta forma, o mais adequado medicamento de acordo com suas características genéticas. Tal resultado pode ser obtido em exames farmacogênicos.
Trata-se, sem dúvidas, de um grande avanço. É ajustar a pessoa nos limites e no âmbito do seu mundo genético. Pode-se até dizer que é a realização da profecia feita no Oráculo de Delphos: nosce te ipsum. Se cada um conhecer sua divisão genética fica mais fácil para aplacar seus males. Se a identidade externa é conhecida e reproduzida nos documentos pessoais, agora chegou a vez da identidade interna, muito mais complexa e com enormes dificuldades para o domínio completo. Tornou-se conhecida a célebre frase de Sir Willian Olser, tido por muitos como o pai da medicina moderna, no sentido de que “é mais importante conhecer o paciente acometido por uma doença do que a doença que acometeu o paciente”.
Mas todo avanço científico relevante deve corresponder a um dividendo de ganho para a humanidade. A jovem ciência genética vem produzindo inúmeras linhas de pesquisa, principalmente as que envolvem as células-tronco e o homem passa a ser o destinatário de tamanho benefício. Apesar do silêncio hospitalar e da família, foi noticiado que Michael Schumacher, heptacampeão da Fórmula 1, provavelmente submeteu-se a um procedimento para receber injeções de células-tronco para uma ação anti-inflamatória sistêmica, voltado para todo o organismo. Se vingar o procedimento, todo esforço exitoso que for benéfico a uma pessoa deverá, em razão da isonomia e da justiça distributiva, servir aos demais pacientes que se encontrarem em idêntica situação.
O que se pode concluir com tantos novos caminhos diagnósticos é que, com a precisão cada vez mais exata da parafernália tecnológica, deixará de existir o homem sadio. Isto porque a mais tênue diferença constatada em um exame de rotina fará com que o paciente, assim como será designado doravante, sinta-se um doente em potencial e daí por diante irá iniciar a peregrinação pelos consultórios de vários especialistas. Observando que saúde, para a Organização Mundial de Saúde, é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não, simplesmente, a ausência de doenças ou enfermidades. Cabe aqui perfeitamente a constatação de Bobbio: “Tem-se a impressão de que a saúde pode ser conquistada somente por um estado de enfermidade perene. É melhor flagelar-se com medicamentos, dietas, controles, exercícios e renúncias na esperança de obter um benefício, mesmo sabendo que dificilmente nossos esforços reduzirão o risco de contrairmos uma doença e distanciarão o momento da morte?1
Pode-se, finalmente, afirmar que, pelo avanço incontido das terapias de suporte, em se tratando de pacientes in extremis, não existindo qualquer outro recurso terapêutico com resultado satisfatório, o fato de evitar a morte com a prescrição do que é medicamente inútil, ultrapassando os limites de cura da medicina moderna, constitui não só uma afronta à dignidade do doente, mas também a falta de humanização em não amenizar sua dor e proporcionar seu encaminhamento para a morte.
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1 Bobbio, Marco. O doente imaginado: os riscos de uma medicina sem limites. Tradução Mônica Gonçalves. São Paulo: Bamboo Editorial, 2014, p.29.
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