Quatro pessoas foram presas temporariamente no fim de julho por crime cibernético e organização criminosa ao, supostamente, terem se unido para invadir celulares de servidores públicos e autoridades, com objetivos ainda incertos, salvo pelo interesse em divulgar conversas entre integrantes da força-tarefa Lava Jato. O recipiente do conteúdo foi o Intercept, site do jornalista Glenn Greenwald. Com o desenrolar das investigações, noticiou-se que um dos hackers teria invadido o celular da ex-deputada Manuela D’Ávila, com quem teriam mantido contado, e quem teria intermediado o contato com Greenwald. Também circulou a notícia de que o ministro Moro teria entrado em contato com parte das autoridades interceptadas, comunicando que o material apreendido seria destruído. Houve reações públicas diversas, inclusive com ajuizamento de pedidos ao Judiciário para evitar esse desfecho.
Mas afinal, quais crimes poderiam ter sido cometidos por esses personagens do que chamarei aqui de AraraquaraGate?
A lei Carolina Dieckmann introduziu no Código Penal o artigo 154-A, que criminaliza a invasão de dispositivo informático alheio, mediante violação indevida de mecanismo de segurança, desde que presente a finalidade de obter dados ou informações sem autorização do titular do dispositivo.
Assim, os hackers incidiriam, em tese, no artigo mencionado, que prevê pena de detenção de três meses a um ano, e multa. Essa figura é crime de menor potencial ofensivo, e autoriza composição civil, transação penal e suspensão condicional do processo, e não autoriza prisão cautelar, nem temporária, tampouco preventiva.
Há, no mesmo artigo, uma forma qualificada para a hipótese de a invasão resultar em obtenção de conteúdo de comunicações eletrônicas privadas. Nesse caso, a pena passa a ser de reclusão, de seis meses a dois anos, e multa. Continua sendo um crime de menor potencial ofensivo, e admite todas as figuras alternativas ao processo e à prisão mencionadas acima.
Mas, aumenta-se a pena de 1/3 a 2/3 se houver transmissão a terceiro dos dados ou informações obtidas. A outra causa de aumento de pena relevante – a se confirmar a invasão do celular do presidente da República – é de 1/3 a 1/2, pela condição do invadido.
Assim, a maior pena mínima possível é de 1 ano e 1 mês – descartada a suspensão condicional do processo – e a pena máxima possível é de 4 anos e 4 meses.
Saber a pena máxima dos crimes é decisivo para a próxima questão: pode-se falar em organização criminosa?
O tipo de organização criminosa tem definição legal própria: é preciso haver a associação ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, de 4 ou mais pessoas, com o objetivo de obter vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 anos.
Não basta que a organização buscasse cometer 1 ou 2 crimes específicos, pré-determinados, porém um número incerto de delitos, no plural. Isso tem relação com a natureza organizada e expectativa de durabilidade das organizações.
Parece razoável supor que o grupo dos Araraquarahackers buscasse cometer delitos vários, na forma qualificada, e até mesmo com a causa de aumento de pena atinente à divulgação a terceiros. Mas seria possível dizer que cometiam crimes de invasão de dispositivo informático do presidente ou de outros servidores públicos protegidos de maneira especial pela norma penal?
A preponderar a centralidade do bem jurídico na compreensão da tipicidade, em sua dimensão material, então a gravidade dos delitos-fim do agir estruturado da organização há de ser compreendida de maneira substantiva, e não incidental.
Há outro ângulo a ser considerado: o STJ é firme na compreensão de que às causas de aumento de pena não se aplica apenas o critério objetivo, aritmético: “o aumento na terceira fase de aplicação da pena no crime de roubo circunstanciado exige fundamentação concreta, não sendo suficiente para a sua exasperação a mera indicação do número de majorantes.1
Restaria, por certo, o artigo 288 do CP, já chamado de formação de quadrilha, e rebatizado de associação criminosa. Aqui surge um certo paradoxo criado pela jurisprudência.
A lista de crimes que autoriza a prisão temporária contém a associação criminosa, mas não o crime de organização criminosa. Esse argumento foi usado pelo ministro Gilmar Mendes ao conceder habeas corpus ao ex-governador do Paraná Beto Richa em setembro de 2018.
O paradoxo seria o seguinte: se enquadrada, provisoriamente, a conduta como organização criminosa, a temporária não teria lugar, porém as sanções são mais severas; do contrário, desclassificada para “mera” associação criminosa, menos grave, a temporária seria, em tese, cabível.
Há, porém, delitos que não guardam adequação aos fatos até aqui descritos.
Não se trata do art. 10 da lei 9.296/96, já que nada aponta que tenha havido interceptação de comunicações, o que pressuporia apreensão de conteúdo em tempo real, de informações ou dados em trânsito, porém de obtenção de mensagens já armazenadas nos dispositivos informáticos.
E muito menos há que se falar em terrorismo ou figuras da lei de Segurança Nacional. A lei 13.260/16 demanda dois componentes para que uma ação se entenda como terrorista, ausentes no caso: a) razões de xenofobia ou discriminação; e b) finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.
Tal lei tem um único tipo que poderia se aproximar do evento: “art. 13 - Comunicar, entregar ou permitir a comunicação ou a entrega, a governo ou grupo estrangeiro, ou a organização ou grupo de existência ilegal, de dados, documentos ou cópias de documentos, planos, códigos, cifras ou assuntos que, no interesse do Estado brasileiro, são classificados como sigilosos.” Nos fatos em apuração não se encontram a) presença de governo ou grupo estrangeiro, ou grupo de existência ilegal; b) dados ou informações sigilosas no interesse do Estado brasileiro, ambos no marco da ideologia da segurança nacional.
Assim, os Araraquarahackers, a se confirmarem os elementos até agora conhecidos, terão incorrido, em tese, no tipo do art. 154-A, na forma qualificada, com aumentos de pena. Se tiver havido coordenação efetiva e divisão de tarefas, pode-se falar em associação criminosa, mas não vislumbro os elementos fortes de uma organização criminosa.
Gleen e os jornalistas
Agora, analisemos a conduta dos outros personagens do AraraquaGate. Comete crime aquele que recebe as informações obtidas nos celulares ilegalmente invadidos pelos Araraquaquarahackers?
Imaginemos – e tudo aponta que tenha sido mesmo assim – que tal produto tenha sido recebido gratuitamente pelo Intercept.
O artigo 154-A não criminaliza o recebimento do conteúdo hackeado; o CP criminaliza, em síntese, dois grupos de hipóteses de “recebimento”: de vantagem indevida por funcionário público (tipos contra a administração pública) e de produtos do crime.
Cometeu Glenn Greenwald o referido delito? A resposta é negativa.
O delito de receptação tem como bem jurídico protegido o patrimônio. Analisando bem, essa modalidade do crime de receptação criminaliza um fato que, a rigor, não seria punido pelas regras gerais do CP. Explico: quando aquele que ilicitamente obteve uma coisa (pela via do furto, do roubo etc.) o bem jurídico patrimônio já foi lesionado; a disposição posterior da coisa seria exaurimento ou, genericamente, um pós fato não punível.
Coisa, para fins de delitos patrimoniais, é qualquer bem revestido de significado econômico. Informações, conversas, são coisas?
Um bom modo de buscar uma resposta está no delito antecedente: sofreu lesão patrimonial o invadido pelos hackers?
A resposta é negativa. O tipo do artigo 154-A tutela a inviolabilidade dos segredos. Do ponto de vista da tipicidade objetiva, portanto, não vislumbro receptação na ação do Intercept.
O Código Penal pune a divulgação de documento particular ou correspondência confidencial (artigo 153), de que é destinatário ou detentor, figuras que não se aplicam aos jornalistas do Intercept. Também o artigo 154 incrimina a violação de segredo profissional, tipo especial que demanda que o segredo tenha chegado ao conhecimento do autor em razão de função, ministério, ofício ou profissão. Igualmente não é o caso; os interceptados, por óbvio, não levaram ao conhecimento dos conteúdos ao Glenn e seus colegas, muito menos por causa do papel que ocupam.2
As figuras dos artigos 153 e 154, além disso, demandam que a divulgação tenha se dado sem justa causa. Como ponderar a liberdade de imprensa, de estatura constitucional, com esse tipo?
Sob a ótica da tipicidade conglobante – de que são principais defensores Nilo Batista e Eugenio Raul Zaffaroni – a eventual vedação típica deveria ser avaliada em conjunto (daí o conglobante) com o ordenamento jurídico como um todo. A rigor, nessa posição, só haveria um aparente conflito de sinais normativos; a liberdade de imprensa preponderaria sobre a proibição típica, dissolvendo o conflito, por ausência de pragma.
Questão mais instigante nasceria se os jornalistas tivessem pago pela fonte.
Se o pagamento se desse para que os celulares fossem interceptados, parece simples concluir pela autoria mediata do crime. Assim, os jornalistas se tornariam responsáveis pelo artigo 154-A, ao lado dos Araraquarahackers.
E se, todavia, tivessem comprado as informações depois das interceptações? Prepondera no jornalismo não ser ética a prática de remunerar uma fonte.
Qual a relevância penal dessa infração ética?
Curiosamente, as informações passam a ter dimensão econômica e, assim, podem se aproximar do elemento típico “coisa”. De outro lado, não se observa, mesmo nessa hipótese, uma lesão ao patrimônio dos interceptados.
Assim, em que pese maior proximidade ao delito de interceptação, quando comparada à obtenção gratuita da fonte, ainda não se vislumbra, mesmo mediante remuneração, lesão ao bem jurídico patrimônio.
Pode-se arguir que isso estimularia a interceptação de aparelhos informáticos; em que pese a razoabilidade do argumento e da infração ética, do ponto de vista penal, não vislumbro maiores diferenças da obtenção gratuita de fonte jornalística.
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1 - HC 508700/RJ, Rel. Ribeiro Dantas, j. 11.6.2019
2 - Para evitar enfado do leitor, lembro que o crime de violação de sigilo funcional é próprio de funcionário público e, embora os jornalistas pudessem ser extranei a esse delito, não há notícia de que qualquer funcionário público (intraneus) tenha de qualquer forma participado da invasão dos aparelhos, ou da posterior divulgação. Ainda, há outras figuras que incriminam a divulgação de determinados conteúdos proibidos: cena de estupro e outras violadoras da liberdade sexual (art. 218-C do CP), daqueles sigilosos em concursos público e outros processos seletivos listados no tipo (art. 311-A do CP), de informação caluniosa (art. 138 do CP) ou de conteúdo de comunicação telegráfica ou radioelétrica dirigida a terceiro (art. 151 do CP). Nenhuma hipótese aplicável aos fatos até aqui conhecidos do AraraquaraGate.
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