Migalhas de Peso

As taxas de juros reais negativas, os investimentos e os contratos

- Admirável mundo financeiro novo! Será?

2/10/2019

De algum tempo a esta parte tomaram destaque na economia os chamados juros negativos, resultantes das recentes decisões dos bancos centrais de alguns países, como feito também pelo Banco Centra Europeu (BCE) em reduzir as taxas de juros abaixo das expectativas inflacionárias. Por exemplo, recentemente os rendimentos reais dos papéis italianos foram cotados a -0,758% a.a., os alemães a -0,64%, os EUA a -0,517%. Por sua vez a referência de juros na zona do euro esteve na casa de -0,4%1.

Em bom vernáculo isso quer dizer que se alguém comprar tais títulos a R$1,00, ao final de um ano os resgatará por menos do que pagou, e termos reais, o que parece ser uma insanidade completa por parte do investidor, merecedor de uma medida judicial de interdição.

A medida acima se coloca no plano do exercício da política monetária, mediante a utilização do chamado relaxamento quantitativo (QE, “quantitative easing”)2, por meio do qual o BCE a partir do próximo mês de novembro comprará, mensalmente, ativos financeiros junto ao mercado, no montante de 20 bilhões de euros, buscando reduzir as taxas de juros no âmbito da União Europeia até que essas taxas se fixem dentro de parâmetros que forem julgados aceitáveis para a economia daquela região, assim considerado quando chegar um pouco abaixo de 2% a.a. Trata-se, como se percebe, de uma irrigação de moeda no mercado, aumentando a sua oferta, do que se espera sejam reduzidos os juros das operações de crédito.

Diante de tal cenário os investidores compraram títulos de países pertencentes à zona do Euro e, em troca, reforçaram as suas carteiras com ações de companhias abertas. Espera-se que a “perda” inicial venha a ser compensada no futuro por dividendos pagos pelas companhias em patamares suficientes para superá-la. É claro que se trata de operações de risco, pois os títulos adquiridos valerão menos do que por eles foi pago na sua compra, em termos reais, ao mesmo tempo em que os dividendos pagos pelas companhias venham a ser muito baixos, ou até mesmo inexistentes em situações de crise dos mercados em que atuam.

Tenha-se em conta que a opção dos investidores na forma acima referida admite a existência de riscos elevados na zona do Euro, que podem deitar a perder investimentos em geral, sendo nesse cenário preferível receber menos pelos títulos dos seus bancos centrais do que muito menos ainda, ou nada, dos devedores privados. É a crise, estúpido, diria alguém.

Como tudo em economia, o recurso ao QE não é unanimidade, pois existe o perigo de uma recessão e o receio de que a política monetária por si só não seja capaz de reverter o quadro, vindo a se tornar necessária uma colaboração da política fiscal, com todos os senões políticos a esta vinculados3. Isto porque, afirma-se, quanto mais o QE é utilizado, menor será o ganho marginal das medidas adotadas em sua resposta. No sentido acima os grandes bancos europeus reclamam do ambiente de juros reais negativos, que afetariam o seu balanço, do que decorreria o surgimento de um efeito contracionista do crédito, precisamente o contrário do desejado com a utilização da política do QE. Este cenário assemelha-se, em muito, ao exemplo de livro texto da teoria keynesiana acerca da efetividade da política monetária na circunstância em que as expectativas de mercados apontam para uma trajetória de armadilha da liquidez4.

Expliquemos. Nos balanços as contas dos bancos que venderam euros no mercado e aplicaram os recursos correspondentes em títulos com juros reais negativos e/ou em ações, apresentaram de um lado perdas ao final do exercício. Ao mesmo tempo as ações que foram adquiridas podem ter pago dividendos inferiores (ou não ter pago nada) aos esperados para a formação de um equilíbrio, acrescidos do necessário lucro, própria de operações de bancos no mercado. Se é assim, falharia o estímulo para o aumento de operações de crédito a juros mais baixos dos que até então praticados.

O nível dos juros reais negativos praticados nas economias europeias e pelo BCE chegou a patamares tão baixos, que se afirma não terem mais as autoridades monetárias das regiões correspondentes alguma oportunidade para exercerem política monetária efetiva ou, até mesmo, qualquer política monetária, pois teriam comido a toda a carne e chegado ao osso5. Apenas o FED e o BCB ainda disporiam de espaço para o exercício de estímulos segundo a política monetária clássica, o que se efetivou recentemente pela redução de suas taxas básicas de juros. Mas um dia o gás acaba.

E agora, José, o que acontecerá com os investimentos e os contratos?

Vamos falar do Brasil, que nos interessa de perto, pois é aqui que vivemos e nos movemos, deixando para lá os americanos com as suas mazelas. Para nós bastam as que temos por aqui, que são inúmeras.

Investimento é um termo que tem alguns significados diferentes no jargão utilizado fora da ciência econômica. Pode ser um depósito a prazo ou a compra de títulos (públicos ou privados), nas chamadas operações de renda fixa. Também se trata de aplicações em valores mobiliários de companhias abertas (ações ou debêntures). As ações pagam dividendos, como se sabe, e as debêntures pagam juros, podendo estas, conforme a emissão, serem convertidas em ações.

Diante de juros reais negativos (e até mesmo de juros nominais muito baixos) fica reduzido o atrativo para o investidor. Isto não quer dizer que ele migre automaticamente para as ações porque há inúmeros fatores que dificultam essa escolha, especialmente entre nós, que temos uma tradição fundada na exploração da propriedade imobiliária e no rentismo. Neste último caso, mesmo com a inflação e os juros de renda fixa em queda, geralmente não gostamos de assumir riscos desconhecidos (o esperado lucro de uma companhia aberta), preferindo-se o pouco certo do que o muito duvidoso.

E quando o investidor é um empresário, em termos de investimento ele é obrigado a pensar no seu fluxo de caixa, fator que opera contra operações no mercado de ações (que, em geral, dão lucro, mas sempre dentro de um horizonte de prazo mais longo). Ou seja, o empresário abre o capital de sua empresa com o fim de obter recursos tão somente com o objetivo de aplicação nos fundamentos da atividade, não servindo esse dinheiro para o dia-a-dia dos seus negócios, em relação aos quais o prazo é muito curto.

No último sentido acima continua a preferência para aplicações de renda fixa que permitam um resgate imediato ou dentro de um prazo bastante reduzido, de forma a que o fluxo de caixa não venha a ficar prejudicado. Isto se dá tanto quando a rentabilidade está alta, como quando está muito baixa, ou até mesmo negativa, em termos reais. Nunca devemos nos esquecer de que em nossa economia, dadas as idiossincrasias próprias, seis meses é um período de tempo considerado de longo prazo.

Por outro lado, o elevado índice de inadimplência dos clientes dos empresários conta como outro fator favorável a investimentos de renda fixa de curto prazo, seja qual forem os juros das aplicações de preservação do capital de giro. Assim sendo, aqui também, não importa o rendimento das aplicações, alto, médio ou mínimo. Assim, é melhor receber menos do que nada.

Além disto, o inefável Judiciário, autor de sentenças esdrúxulas em matéria empresarial, contribui de forma bastante ponderável em detrimento da segurança e certeza dos negócios, contribuindo sem saber para a afetação negativa da política monetária, uma vez que se constitui em barreira quase intransponível no sentido da mudança de comportamentos econômicos e históricos, quase mesmo da idade da pedra lascada.

E os contratos empresariais, como ficam nesse cenário?

Quanto mais baixa for a taxa de juros ou até mesmo quando for negativa em termos reais, esse fato não afeta o apetite do empresário de fazer o equilíbrio das suas entradas e saídas de caixa (o que é natural) e o viés de correção monetária dos seus créditos se mantém intacto (isto sem falar do lucro). A correção monetária faz parte do DNA empresarial brasileiro, que, se reconhece, nasceu de um gene defeituoso chamado inflação, cuja extirpação é uma das missões impossíveis da economia, havendo quem diga que um pouco de inflação é um bem aceitável, pois estimularia a economia. Costuma-se dizer que não existe meia gravidez, nem meia inflação, pois qualquer nível de inflação no limite é maléfico, especialmente no longo prazo.

Dado que existe uma inflação persistente entre nós, ainda que baixa e em rota decrescente, o seu efeito nos contratos de longa duração é sensível quanto à afetação negativa do lucro pretendido em operações empresariais. Isso resulta, conforme acenado acima, na busca pelo empresário da correção do valor da moeda a ser recebida quando do pagamento correspondente, o que pode ser feito por meio da transposição da inflação para o preço, a ser realizada preventivamente (o que representa risco de avaliação, tanto maior quanto mais duradouro for o contrato no tempo), ou posteriormente, pela aplicação de algum índice de correção monetária quando permitido por lei.

No tocante aos empresários comuns (não instituições financeiras), o regime legal em vigor permite correção monetária tão somente para as obrigações de prazo igual ou superior a um ano, aplicáveis índices de preços gerais, setoriais, ou que reflitam a variação dos custos de produção ou de insumos (lei 10.192/01, art. 2º, Plano Real).

Explica-se. Quanto aos pagamentos em dinheiro vigora o princípio do nominalismo, conforme o art. 315 do CC/02: “As dívidas em dinheiro deverão ser pagas no vencimento, em moeda corrente e pelo valor nominal, salvo o disposto nos artigos subsequentes”.

Portanto, no mundo das taxas de juros reais negativas os empresários são limitados na busca do escape aos efeitos da inflação remanescente da economia aos mecanismos acima referidos, inexistindo outros, não tendo neste artigo havido preocupação com a existência de eventuais situações de anomalias fáticas ou jurídicas, tais como a inadimplência, a imprevisão, o desequilíbrio econômico das prestações posterior ao contrato etc.

Por todo o exposto, concluímos que os empresários pátrios podem continuar com a sua vida costumeira, mudando as taxas de juros reais negativas tão somente o horizonte da rentabilidade ou nada mudando quando os bens oferecidos no mercado forem de demanda elástica (muito sensível a alterações nos preços) e oferta inelástica (sensibilidade reduzida às alterações nos preços), o melhor dos mundos como percebemos.

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1 - Cf. de Gabriel Roca, André Mizutani e Lucas Hirata, “BCE corta juro em nova tentativa de estimular a economia”, in Valor Econômico de 13.09.2019.

2 - Que foi aplicado nos EUA quando da crise financeira internacional de 2008/2009.

3 - Nesse sentido, já se viu que para a adoção de uma política fiscal eficazmente restritiva teria que se combinar com os gringos (isto é, deputados e senadores), da mesma forma como foi sugerido no passado em relação ao futebol.

4 - A armadilha de liquidez, segundo KEYNES (1964), surge quando a taxa de juros nominal atinge um patamar muito baixo, próximo à nulidade e a política monetária perde efetividade. Cf. John Maynard Keynes “The general theory of employment, interest and money”, New York: HBJ Book, 1964.

5 - Cf. de Luiz Eduardo Portella, “Os bancos centrais chegaram ao limite?”, in Valor Econômico de 31.07.2019.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio de Duclerc Verçosa Advogados Associados.

*Milton Barossi Filho é professor do departamento de economia da FEA-RP/USP.

 

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