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Novos delineamentos do instituto da desconsideração da personalidade jurídica - MP 881/19 - alteração substancial do texto do art. 50 do Código Civil

Numa primeira análise do texto que inova na ordem jurídica por força da MP 881/19, pode-se apreender que agora para a aplicação no caso concreto da desconsideração reclamará a prática de ato doloso que gere confusão patrimonial ou desvio de finalidade da pessoa jurídica.

1/10/2019

I-) Introdução

Com a sanção presidencial da Medida Provisória de 881/19 1, conhecida popularmente como “MP da Liberdade Econômica”, a redação anterior do art. 50 do Código Civil2, que trata sobre a desconsideração da personalidade jurídica, consolidou importantes mudanças acerca de relevante tema.

De início, impende tracejar algumas linhas gerais sobre o referido instituto civilista, bem como suas notas típicas decorrentes da estrutura do sistema passado.

Leciona o prof. Flávio Tartuce: “tal instituto permite ao juiz não mais considerar os efeitos da personificação da sociedade para atingir e vincular responsabilidades dos sócios, com intuito de impedir a consumação de fraudes e abusos por eles cometidos, desde que causem prejuízos e danos a terceiros, principalmente a credores da empresa. Dessa forma, os bens particulares dos sócios podem responder pelos danos causados a terceiros. Em suma, o escudo, no caso da pessoa jurídica, é retirado para atingir quem está atrás dele, o sócio ou administrador. Bens da empresa também poderão responder por dívidas dos sócios, por meio do que se denomina como desconsideração inversa ou invertida.” (Manual de Direito Civil, 5ª ed., Rio de Janeiro: Método, 2015,p. 153-154).

Complementa-se ao conceito acima invocado, que no panorama normativo anterior, aplicava-se a desconsideração da personalidade jurídica pelo abuso desviante do objeto social do ente ou decorrente da confusão patrimonial entre a empresa e seus sócios, a admitir uma interpretação jurisdicional objetiva, a ser desnecessário para alguns o intento de lesar terceiros, para ter-se cabimento a desconsideração da personalidade jurídica.

Vale anotar que no regime pretérito, uma vez afastada a personalidade jurídica da empresa, a responsabilidade patrimonial poderia recair indistintamente a todos os sócios, independemente de se percrustar qual sócio praticou o ato abusivo ou dele tenha se beneficiado.

Também cumpre se atentar que por omissão legal, parcela da jurisprudência entende que a simples insolvência de uma empresa pertencente à um grupo econômico ou mesmo a mera situação de existência desse, autorizava a extender a responsabilidade patrimonial para os demais integrantes do grupo de empresas, por via da despersonificação episódica.

II-) Novo regime jurídico

Numa primeira análise do texto que inova na ordem jurídica por força da MP 881/193, pode-se apreender que agora para a aplicação no caso concreto da desconsideração reclamará a prática de ato doloso que gere confusão patrimonial ou desvio de finalidade da pessoa jurídica. Assim, será requisito essencial a demonstração concreta do intuito de fraudar terceiros, conforme a jurisprudência majoritária do STJ exigia (cf. Resp. 1.572655/RJ4).

Outra alteração de grande relevo é que a desconsideração da personalidade do ente empresarial para responsabilizar o sócio, somente atingirá àquele que tenha se beneficiado direta ou indiretamente do abuso da personalidade jurídica, independentemente se o sócio tenha praticado em si o ato desviante.

Quanto à confusão patrimonial, o novel texto trouxe um rol exemplificativo de situações tipo no §2º do art. 50 do CC, porém indicativo do espírito desse ato abusivo, disposição essa que não havia na redação anterior do dispositivo em debate, a ser antes um conceito jurídico indeterminado, assim a dar margem interpretativa não raras vezes a leituras muito dilatadas, a conferir melhor desenho e segurança jurídica nesse aspecto.

Ademais, pela letra expressa do § 5º do art. 50 do CC, não pode mais ser considerado como desvio de finalidade na órbita da desconsideração a mera expansão ou alteração do objeto primitivo da atividade econômica da pessoa jurídica, plasmado por oportunidade do assentamento do contrato social no órgão competente.

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1 clique aqui 

2 Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

3  Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. (Redação dada pela MP  881, de 2019)

§ 1º Para fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.(Incluído pela MP  881, de 2019)

§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: (Incluído pela MP 881, de 2019)

I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; (Incluído pela MP 881, de 2019)

II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto o de valor proporcionalmente insignificante; e (Incluído pela MP 881, de 2019)

III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. (Incluído pela MP 881, de 2019)

§ 3º O disposto no caput e nos § 1º e § 2º também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica. (Incluído pela MP 881, de 2019)

§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.(Incluído pela MP 881, de 2019)

§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. (Incluído pela MP, de 2019)

4 Recurso especial. civil. processual civil. execução de título extrajudicial. desconsideração da personalidade jurídica. decretação incidental. possibilidade. embargos à execução. ação autônoma. cognição ampla. ilegitimidade passiva. alegação. possibilidade. coisa julgada. Art.472 do CPC/1973. não configuração preclusão. Art. 473 do CPC/1973. não ocorrência. Art. 50 do CC/2002. requisitos. comprovação. necessidade. cerceamento de defesa. configuração.

1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos  2 e 3/STJ).

2. O ato que determina a desconsideração da personalidade jurídica em caráter incidental no curso de processo de execução não faz coisa julgada, por possuir natureza de decisão interlocutória. Decisões interlocutórias sujeitam-se à preclusão, o que impede a rediscussão da matéria no mesmo processo, pelas mesmas partes (Art. 473 do CPC/1973). Precedentes.

3. O trânsito em julgado da decisão que desconsidera a personalidade jurídica torna a matéria preclusa apenas com relação às partes que integravam aquela relação processual, não sendo possível estender os mesmos efeitos aos sócios, que apenas posteriormente foram citados para responderem pelo débito.

4. A jurisprudência do STJ admite a desconsideração da personalidade jurídica de forma incidental no âmbito de execução, dispensando a citação prévia dos sócios, tendo em vista que estes poderão exercer seus direitos ao contraditório e à ampla defesa posteriormente, por meio dos instrumentos processuais adequados (embargos à execução, impugnação ao cumprimento de sentença ou exceção de pré-executividade). Precedentes.

5. Para aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica (art. 50 do CC/02), exige-se a comprovação de abuso, caracterizado pelo desvio de finalidade (ato intencional dos sócios com intuito de fraudar terceiros) ou confusão patrimonial, requisitos que não se presumem mesmo em casos de dissolução irregular ou de insolvência da sociedade empresária.precedentes.

6. Afastada a preclusão indevidamente aplicada na origem, deve ser garantida aos sócios a possibilidade de produzirem prova apta, ao menos em tese, a demonstrar a ausência de conduta abusiva ou fraudulenta no uso da personalidade jurídica, sob pena de indevido cerceamento de defesa.

7. Recurso especial provido. (REsp 1572655/RJ, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/3/18, DJe 26/3/18.

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*André Riolo Tedesco é advogado - OAB/SP. Ex-assessor de desembargador federal. Ex-chefe de gabinete de desembargador federal.

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