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A controvertida questão sobre a fiança concedida em contrato de locação e a impenhorabilidade do bem de família

Até que se consolide um posicionamento definitivo sobre o assunto, fica o alerta aos contratantes e fiadores locatícios.

23/9/2019

É de senso comum que a residência familiar não pode responder por dívidas. Foi a lei 8.009, de março de 1990, que instituiu e disciplinou a conhecida impenhorabilidade do bem de família. Desde então, estabeleceu-se em nosso ordenamento jurídico que o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam” (art. 1º, da lei 8.009/90). 

Assim, caso um ente familiar contraia uma dívida, que venha a ser cobrada judicialmente, poderá sofrer constrição de valores em conta corrente, de automóveis, ou até mesmo de obras de arte e adornos suntuosos que guarneçam a residência. No entanto, “o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados” (art. 1º, parágrafo único, da lei 8.009/90), não poderão ser constritos.

Importante destacar que, para os efeitos da impenhorabilidade, a lei 8.009/90 considera residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente. Portanto, “na hipótese de o casal, ou entidade familiar, ser possuidor de vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor, salvo se outro tiver sido registrado, para esse fim, no registro de imóveis e na forma do art. 70 do CC” (art. 5º, parágrafo único da lei 8.009/90).

Pois bem. Uma vez compreendidas as condições necessárias para que seja possível opor a impenhorabilidade do bem de família em quaisquer processos de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, cabe apontar que essa regra contém exceções. Dentre essas exceções, a que será analisada neste artigo diz respeito à obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.

Segundo o art. 3º, inciso VII, da lei 8.009/90, a impenhorabilidade do bem de família não pode ser oposta pelo fiador, caso venha a ser demandado judicialmente pela dívida locatícia. O STJ, inclusive, editou a súmula 549, que dispõe: “é válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação”.

Portanto, da análise fria da lei, o fiador, demandado pela dívida locatícia por ele garantida, pode ver constrito seu único imóvel utilizado por sua entidade familiar para moradia permanente.

Tal interpretação, no entanto, nunca foi pacífica entre os operadores do Direito, tendo em vista que o direito à moradia constitui um direito social, expressamente garantido pelo art. 6º da CF.

Em junho de 2018, o STF, ao julgar RE 605.709/SP, voltando-se para essa corrente doutrinária, firmou entendimento no sentido de que, nos casos de contrato de locação comercial, a exceção prevista no art. 3º, inciso VII, da lei 8.009/90 não tem cabimento.

O fundamento que embasou esse posicionamento por parte da maioria dos ministros do STF foi exatamente o direito à moradia, à dignidade da pessoa humana e à proteção à família. Entendeu-se que, em contratos de locação comercial, não se pode sobrepor os interesses do locador de imóvel comercial ao do fiador, que, com sacrifício, conquistou uma moradia familiar. Igualmente, não se pode promover a livre iniciativa em detrimento de direito fundamental do fiador.

Para os ministros que votaram no sentido da corrente vencedora, permitir a penhora do bem de família do fiador em contrato de locação comercial significa colocar o fiador (garantidor da dívida), em situação mais gravosa do que a conferida ao devedor principal (afiançado), que, pela lei 8.009/90 não pode ver sua residência familiar responder pela dívida. Ao contrário do que ocorre nos casos de contrato de locação residencial, em que se promove, de forma pura, o direito fundamental à moradia, nos casos de locação comercial, promove-se a livre inciativa, devendo-se, nessas hipóteses, assegurar-se o mínimo existencial ao fiador do contrato locatício.

É certo que a decisão proferida no RE 605.709/SP ainda não transitou em julgado, pois foram opostos embargos de divergência. Além disso, referido recurso não está sendo julgado pela sistemática da repercussão geral, introduzida em nosso ordenamento jurídico somente em 2004, que promove a uniformidade de interpretação da Constituição em todo o território nacional, ao estabelecer, em última análise, que as decisões proferidas pelo STF devem ser observadas pelos demais órgãos do Poder Judiciário, hierarquicamente inferiores.

Portanto, a questão referente à penhorabilidade do bem de família do fiador em contrato de locação comercial ainda deve ser encarada com muito cuidado pelos operadores do Direito. Como a controvérsia ainda não está bem definida no âmbito do STF, os tribunais Estaduais podem decidir livremente sobre a questão, proferindo decisões díspares em todo o território nacional. Além disso, embora o tema não esteja absolutamente pacificado no STF, o posicionamento adotado no julgamento do RE 605.709/SP deve ser levado em consideração, pois deverá ser o entendimento que irá prevalecer naquela Corte Superior.

Até que se consolide um posicionamento definitivo sobre o assunto, fica o alerta aos contratantes e fiadores locatícios.

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*Lilian Regina Ioti Henrique Gaspar, advogada especialista e mestre em Direito Processual Civil, sócia do escritório Henrique & Gaspar Sociedade de Advogados.

 

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