Constitui lugar comum a afirmação de que a carga tributária brasileira é excessiva. Quando se rebate, explicando-se que a nossa carga tributária é similar à da maioria dos países desenvolvidos, retruca-se dizendo que lá, nos países desenvolvidos, os serviços são bons, aqui, os serviços são péssimos.
Ao lado de todas essas afirmações aparentemente originais, contidas numa certa lógica, mas extremamente superficiais, há outro mantra, esse justificador da sonegação, baseado na alegação de que os tributos arrecadados são desviados pelo ralo da corrupção.
O argumento da corrupção como justificador de uma “sonegação legítima”, uma espécie de desobediência civil irresistível, não se sustenta, porque corrupção resolve-se de outra forma. Corrupção é caso de polícia e de justiça e vem sendo enfrentada no Brasil, de alguns anos para cá, com expressivo sucesso, em que pese alguns percalços procedimentais passíveis de críticas.
A derrota dessa mazela passa por investimento em educação, inclusive em educação moral e cívica nas escolas, como todos os países do mundo fizeram e fazem para extirpar ou, pelo menos, para controlar esse câncer que parece latente no DNA de todas as pessoas.
Na Alemanha dos anos 20, do século passado, em que a inflação chegou a milhares por cento ao ano, pondo a economia em desordem, a corrupção era regra de conduta normal na sociedade. Segundo Lionel Richard, em A República de Weimar,1 quem quer que frequentasse um restaurante haveria que, na entrada, deixar uma quantia em dinheiro, a título de depósito como garantia de que não furtaria os talheres. As cortinas dos trens eram levadas com frequência pelos usuários. As prostituições feminina e masculina eram a única alternativa entre os jovens mais carentes.
A Alemanha demorou para se reerguer. Ainda enfrentou sérios problemas nos anos 30 e 40, até o fim da 2ª Guerra Mundial. Destroçada, investiu em educação e hoje é o que é.
A Dinamarca, por conta dos investimentos em educação e instrução moral e cívica, cultiva a honestidade como valor social. O mesmo verifica-se nos demais países nórdicos. Mas não só os países nórdicos são os que têm esse padrão cultural. Outros procuram seguir, com sucesso, o mesmo exemplo. Tudo a partir do investimento em educação.
Dou realce a esses fatos, porque também é muito comum o brasileiro depreciar-se, com frases do tipo: “isso aqui não tem jeito”, “brasileiro é corrupto por natureza” e por aí vai. Tem jeito, sim. Quem quer que conheça um pouco da história universal, da história de alguns povos, chegará à conclusão de que o ser humano tem uma natureza corrupta. Nasce com tendência a ser corrupto, é perverso, cruel, por natureza, mas como é inteligente e tem uma necessidade emotiva extraordinária de viver em sociedade, é capaz de criar regras e observá-las de forma a tornar agradável e civilizada a convivência social.
É preciso que tenhamos coragem de admitir isso, reconhecer isso, ou seja, os defeitos atávicos do homem, que não são só dos brasileiros, são de todo homem, em qualquer lugar do planeta. Tendo consciência dessa realidade, seremos capazes de mudar, de pensar em investir em educação, até mesmo como forma de encontro com a felicidade. Afinal, felicidade passa pela ideia de tornar a vida mais fácil.
Devemos afastar de nós mesmos o complexo de vira-latas a que se referia Nelson Rodrigues, mas temos que ter consciência de que devemos nos livrar, proteger-nos das nossas fraquezas, como costuma pontuar o ministro Ayres Britto. Tudo isso passa por controles, que existem em toda sociedade democrática, civilizada.
Numa sociedade democrática, todos vigiam todos. Se a gente observar, somos vigiados desde que saímos de casa, no trânsito, pelas câmaras eletrônicas a nos impedir que cometamos infrações. Assim é em tudo. O ser humano é abusado por natureza, é infrator por instinto. Se ninguém fiscalizar, se as regras forem frouxas, ele abusa, todo mundo abusa, basta ter oportunidade. Cada um de nós é capaz de abusar, uns mais, outros menos, basta que a oportunidade apareça, sem que terceiro não tenha percebido.
Na medida em que se educa, os abusos vão deixando de ser cometidos. Primeiro, pelo receio da sanção, depois por internalização, no espírito de cada um, de que viver respeitando o direito dos outros é mais cômodo, muito mais prazeroso. Passa a ser uma esperteza do bem. Desse modo, tendemos a moldar a nossa índole originariamente ruim até nos tornarmos, no mínimo, pessoas razoáveis, construtores de uma sociedade equilibrada.
Temos uma Constituição exemplar no que diz respeito aos direitos individuais e sociais. Uma Constituição que agrega valores éticos ideais de qualquer povo civilizado. Uma Constituição que busca conciliar a ordem econômica com o respeito aos direitos sociais. Ainda me valendo do ministro Ayres Britto, uma “Constituição primeiro mundista”, em que nela encontram-se todas as soluções, todas as saídas.
Volto ao ponto inicial da denominada excessiva carga tributária brasileira versus qualidade dos serviços prestados, para demonstrar que o que há de errado com a nossa carga de tributos não é o peso geral em relação ao PIB, mas a sua má distribuição. O nosso sistema tributário é completamente cruel com certas categorias profissionais, com certos segmentos da economia, e extremamente generoso com outros. Esses outros são justamente os que mais reclamam e os que mais sonegam, porque o sistema facilita-lhe a sonegação.
Enquanto o assalariado paga um absurdo de IR, o ganho de capital, os pró-labores são tributados numa merreca. Tributa-se excessivamente o consumo de certos produtos e deixa-se de tributar as rendas altas. Os menores salários são atingidos, ano após ano, em aumento real de tributação, pelo simples fato de que se deixou de corrigir a tabela do IR. Isso tudo é uma iniquidade. Tunga-se o contribuinte sem que ele se dê conta disso.
Costuma-se dizer que o nosso sistema arrecadatório é um manicômio tributário, como se houvesse sido concebido por um bando de loucos. Nada disso, não tem nenhum doido entre os seus inspiradores. O que há é uma perversidade fiscal irresponsável, com escopo de garantir privilégios, esquecendo-se de que, com o tempo, tudo isso não terá como se sustentar. O que existe hoje, de fato, é uma relação aética entre o fisco e o contribuinte.
- Clique aqui para ver a íntegra do artigo.
_____________
1 - RICHARD, Lionel. A República de Weimar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.