É justo reconhecer que, na jurisdição constitucional do STF, o amicus curiae veio para ficar. Ganhou corpo, se robusteceu, mostrou-se influente e se cristalizou na construção dos grandes precedentes da Casa. Foi, viu e venceu.
Quando zelosa da excelência que precisa abraçar, a intervenção do amicus curiae se torna fundamental para o fornecimento de subsídios às decisões da Suprema Corte, revelando-se instrumento de diálogo direto com setores afetados pelas decisões em curso, além de interagir com as instituições, devendo, ainda, entregar ao Tribunal conhecimento especializado relacionado à matéria e não mero rebotalho jurídico já disponível à Corte.
Se é verdade que não há norma jurídica que não seja norma interpretada – a clássica afirmação de Peter Häberle -, e que não basta haver interação social na elaboração da norma constitucional, pois essa interação também deve estar presente na sua interpretação, então vale investigar primeiramente se o amicus curiae no Brasil não encontraria assento diretamente na Constituição, numa compreensão não reducionista do que é o devido processo legal constitucional no âmbito da Suprema Corte.
A Constituição de 1988, numa antevisão, também abriu caminho para o amparo normativo do hoje consolidado e bem acabado amicus curiae. Essa base normativa é anunciada pelo próprio Preâmbulo, quando nos reconhece como uma sociedade “pluralista”, pluralidade essa inegavelmente exortada quando se vindica direitos perante o Judiciário ou quando se sabe que uma dada decisão alcançará, direta ou indiretamente, um bem da vida juridicamente protegido e a você pertencente. Disposição, portanto, do Supremo Tribunal Federal em ouvir com pluralidade, em interagir pluralisticamente.
Além da pluralidade, a prática cotidiana do amicus ergue uma nova dimensão da cidadania, que é a cidadania judicial, fruto da interação de grupos da comunidade com esse que é um dos três poderes da União, o Poder Judiciário, ao qual faz alusão o art. 2º da Constituição. Cidadania reconhecida como um dos fundamentos da República (art. 1º, II).
Trata-se de uma atuação que confere ganhos de funcionalidade sistêmica ao direito de petição em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder (art. 5º, XXXIV, “a”) perante um Poder Judiciário que não excluirá de si a apreciação de lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV), e que o fará assegurando o devido processo legal (art. 5º, LIV), o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (art. 5º, LV). E “meios e recursos a ela inerentes” a serem lidos com amplitude, quando se trata da deliberação derradeira do Supremo Tribunal Federal em casos dotados de eficácia erga omnes ou eficácia vertical no Sistema de Justiça.
Toda essa perspectiva se eleva por se tratar da interpretação da Constituição, que é a vocação primeira do STF. Sob a perspectiva do constitucionalismo popular ao qual faz alusão o professor Miguel Godoy, a Constituição não deve ser compreendida como um documento técnico, objeto de análise somente de juristas ou representantes, mas algo vivo a ser compreendido por meio de uma participação popular direta e ativa.1 A Constituição de 1988 não seria um contrato feito por advogados para advogados. Ela é muito mais do que isso e a sua interpretação deve se permitir ouvir as potências públicas que realizam e sentem em suas peles a força normativa dessa mesma Constituição.
Tornou-se célebre a participação de terceiros não integrantes de ação direta de inconstitucionalidade a partir da ADIn 3.510, em 2007, que discutia a utilização de células-tronco de embriões para fins de pesquisa (art. 5º da Lei n. 11.105/05 – Lei da Biossegurança).
Na ocasião, o ministro Ayres Britto, relator, acatou o pedido de audiência pública formulado pela PGR, bem como deferiu o ingresso de cinco amici curiae.2 Foi quando anotou: “além de subsidiar os Ministros deste Supremo Tribunal Federal, também possibilitará uma maior participação da sociedade civil no enfrentamento da controvérsia constitucional, o que certamente legitimará ainda mais a decisão a ser tomada pelo Plenário desta nossa colenda Corte”.
Mais do que informar o STF sobre aspectos complexos dos fatos contemplados no caso, o amicus também tem calibrado relações processuais por vezes desiguais. Talvez por isso, o ministro Celso de Mello tenha anotado que os altos objetivos políticos, sociais e jurídicos do amicus justificam uma atuação não restrita à apresentação de memoriais.3
Acontece que a jurisprudência do STF estabeleceu uma linha temporal de corte para a admissão do amicus curiae, que é a liberação do caso, pelo relator, para inclusão em pauta de julgamento.4 Até esse momento, os pedidos são analisados e, se frutíferos à Corte, admitidos. Depois da liberação do caso para pauta, tudo fica mais difícil e o caminho natural é o indeferimento de plano.
A fixação de um marco temporal é fundamental para a organização do processo e das práxis do Supremo, considerando que o amicus curiae pode exercer determinados poderes processuais de impacto direto na dinâmica da Suprema Corte, como a realização de sustentação oral5 e a oposição de embargos de declaração, atualmente previsto no art. 138, §1º do CPC.
Ao se fixar uma linha de corte, o Supremo Tribunal disciplina os ingressos e cria um incentivo aos interessados para que se articulem com celeridade, não deixando para a undécima hora os seus requerimentos de admissão. É da essência da advocacia lidar com prazos. Tudo certo até aí.
Contudo, há um elemento novo nesse mosaico que precisa de alguma atenção dos ministros, ministras e seus respectivos gabinetes. É que diante da escassez de espaço na pauta do Plenário e da grande quantidade de processos na Suprema Corte, há situações em que, entre a liberação do processo para a inclusão em pauta e o efetivo julgamento, abre-se um longo intervalo de tempo, não raramente de anos, e, nesse período, alterações legislativas, mudanças fáticas ou episódios de grande impacto sobre o caso podem ocorrer, fazendo surgir o legítimo interesse de atores até então alheios ao caso. É a partir de uma disfuncionalidade – a longa fila para a pauta – que o grau de intolerância com os pedidos de amici curiae intempestivos precisa ganhar alguma temperança. É justo.
Imaginemos que uma ação direta de inconstitucionalidade ataca uma lei cujos efeitos recaem sobre o setor automobilístico. O caso é liberado para pauta, nascendo, aí, o deadline do pedido de ingresso de amicus. Anos se passam sem que o caso seja efetivamente pautado. Posteriormente, uma mudança na legislação ocorre, ou uma nova interpretação nasce na esfera estatal, ou uma prática negocial não adotada passou a ser empregada, e qualquer desses fatos novos faz com que o precedente a ser firmado pelo STF possa alcançar, também, o setor, por exemplo, de eletrônicos. Isso é comum em temas tributários. É legítimo que esse setor veja nascer um interesse em participar do caso já liberado para inclusão na pauta. Parece-nos ser hipótese clara de exceção à regra que condiciona a admissão do amicus curiae à formulação do pedido até a liberação do caso.
É como se o caso tivesse nascido com uma conformação factual-jurídica e a dificuldade de pauta fosse, ao longo do tempo, abrindo espaço para que a ele se adicionassem novos elementos que, quando aglutinados, despertam em outros grupos o legítimo interesse em participar do caso, a despeito de ele já ter sido liberado para pauta.
É importante assegurar que controvérsias constitucionais relevantes para os rumos da vida pública e coletiva não deixem de ter aporte técnico, democrático, especializado, dialógico ou popular. A jurisdição não perde com isso, ao contrário, ganha.
Caso recente se deu na ADIn 5.911, de relatoria do ministro Celso de Mello6, que admitiu, como amicus curiae, o CADIR – Centro Acadêmico de Direito da UnB. Junto à manifestação do CADIR, veio um detalhado parecer da enfermeira estadunidense Julie Taft, tratando do tema laqueadura à luz de sua experiência médica em muitos países. A expert não tem interesse em usar ela mesma a tribuna do Supremo – nem poderia -, muito menos de opor embargos futuros – o que igualmente não seria possível a ela. Busca apenas dar suporte técnico especializado a um amicus curiae formalmente admitido. Imaginemos que o caso já tivesse sido liberado para pauta. Estaria, a expert, peremptoriamente impedida de colaborar? Teriam, seus estudos, perdido o valor para a formação do precedente? É, o prazo impróprio construído pelo Supremo, elemento absolutamente impeditivo da contribuição de quem tem efetivos meios de contribuir?
Todas essas são hipóteses nas quais a liberação ou não do caso para inclusão em pauta é indiferente para o préstimo da contribuição. Não é sem razão que o ministro Gilmar Mendes, em mais de uma ocasião, admitiu o ingresso extemporâneo de entidades peticionantes em face da possibilidade de notória contribuição para apreciação de temas sensíveis como a “possibilidade de conversão de férias não gozadas em indenização pecuniária por servidores”7 e o “ressarcimento ao Sistema Único de Saúde – SUS das despesas com atendimento a beneficiários de planos privados de saúde.”8
Uma possibilidade alternativa já adotada pelo STF é no sentido de, ainda que haja o indeferimento do pedido de ingresso formal como amicus, a petição seja recebida como se memorial9 o fosse. Quanto maior a qualidade do memorial, maior a chance de ele tocar o julgador servindo para influenciar os debates do STF.
Há outras decisões redesenhando a postura inflexível do Tribunal em indeferir o pedido de ingresso como amicus em razão de sê-lo extemporâneo.
A ministra Cármen Lúcia, na ADIn 5.099, deferiu excepcionalmente o requerimento formulado pela da Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais Brasileiras – ABRASF, considerando que, entre a liberação para pauta e a data de avaliação do pedido de ingresso, passaram-se mais de 3 anos, não sobrevindo o julgamento da ação. Esse largo marco temporal entre a liberação e a efetiva inclusão em pauta do caso abre uma janela de oportunidade para que as forças interessadas em envidar esforços na construção do caso no STF possam postular o ingresso como amicus curiae.10
Em conclusão: seja porque o tempo entre a liberação e a efetiva inclusão em pauta foi por demais extenso, tendo surgido fatos novos que alcançam o interesse de grupos até então alheios à disputa; seja porque há certos tipos de contribuição que elevam o nível informacional da Suprema Corte sem que o postulante requeira direitos mais intensos à dinâmica do STF, como a sustentação oral ou a oposição de embargos de declaração; seja porque o prazo impróprio construído pela Corte como deadline do pedido de admissão não deveria privar a acolhida de quem notoriamente reúne, a qualquer tempo, boas condições de contribuir; o fato é que a flexibilização desse deadline ou a adoção de formas alternativas de contribuição são medidas compatíveis com a teleologia da figura do amicus curiae, que, como anotado, ganhou amparo normativo implícito da própria Constituição.
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1 GODOY. Miguel. “Devolver a Constituição ao Povo. Crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais”. Editora Fórum. Belo Horizonte. 2017. p. 98.
2 GODOY. Miguel. Op. Cit. p. 183.
3 RE 597.165.
4 Decisão no Agravo Regimental na ADIn 4.071, do Plenário: “o amicus curiae somente pode demandar a sua intervenção ate' a data em que o Relator liberar o processo para pauta” (min. Menezes Direito, Dj. 22.4.2009). Julgados recentes seguem a marcha: ADPF 449 AgR, min. Luiz Fux, Pleno, Dje 13.6.2018; e ACO-AgR-segundo 779, min. Dias Toffoli, Pleno, DJe 9.3.2017.
5 À luz do art. 131, §3º do RISTF, o ministro Celso de Mello enfatizou a importância da sustentação oral do amicus curiae no julgamento da ADI 2675: “Já me convencera da possibilidade dessa intervenção do amicus curiae, inclusive para o efeito de sustentar oralmente perante esta Corte as suas razões. Já expusera no dia 18 de outubro de 2001 essas razões salientando exatamente determinados valores básicos, como o princípio democrático, de um lado, e de outro, esta perspectiva pluralista, que objetiva conferir legitimidade às decisões do Supremo Tribunal Federal, notadamente em sede de fiscalização abstrata”.
6 A ADIn 5.911 foi proposta pelo PSB e tem por objeto a declaração de inconstitucionalidade do inciso I e do parágrafo 5º, do artigo 10 da Lei do Planejamento Familiar (Lei nº 9.263/96), que tipifica como crime a realização da laqueadura sem o preenchimento de requisitos como consentimento expresso de ambos os cônjuges e idade maior de 25 anos ou, pelo menos, dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico.
7 ARE 721.001. Tema n. 635 da repercussão geral: Direito de servidores públicos ativos à conversão de férias não gozadas em indenização pecuniária.
8 RE 597.064. Tema n. 345 da repercussão geral: Ressarcimento ao Sistema Único de Saúde - SUS das despesas com atendimento a beneficiários de planos privados de saúde.
9 A prática de indeferir o pedido de ingresso como amicus curiae, mas receber a manifestação como se memorial o fosse, encontra previsão legal no art. 7º, § 2º da Lei nº 9.868/1999, segundo o qual “o relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades”. Há decisões nesse sentido: ministra Cármen Lúcia (ADI 5991 ED, DJe 29/05/2019): “O indeferimento do pedido de intervenção não obsta que os interessados apresentem memoriais aos Ministros deste Supremo Tribunal Federal e que os dados apresentados sejam considerados no julgamento da causa”; ministro Dias Toffoli (Rcl 11275, DJe 4.9.2018); ministro Edson Fachin (RE 611.503, DJe 2.4.2019); ministro Luiz Fux, (RE 561836 ED, DJe 29.9.2015); ministro Roberto Barroso (RE 631240, DJe 3.9.2014); ministro Marco Aurélio (HC 82959, DJ 8.3.2006; ministro Ayres Britto (ADI 3510, DJ 11.5.2006).
10 Anotou a ministra Cármen Lúcia: “A presente ação direta de inconstitucionalidade foi liberada para pauta em 27.10.2015, sendo, portanto, intempestivo o pedido de ingresso na condição de amicus curiae. Entretanto, tratando-se de prazo impróprio e considerando-se que, nestes mais de três anos entre a liberação para pauta e a presente data de avaliação do pleito, não sobreveio o julgamento, defiro, excepcionalmente, o requerimento formulado”.
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* Saul Tourinho Leal e Luiza Mendonça da Silva Belo Santos integram a banca Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia.