Migalhas de Peso

Sobre “modernização das relações de trabalho”, “altos estudos”, “pacotes” e o percurso consciente em direção à barbárie

O que devemos nos perguntar é se estamos mesmo dispostos a chegar ao fundo do poço, para só então começarmos a agir na direção de um recomeço, ou se estamos dispostos a frear essa queda, pois, diante de todos os fatos já vivenciados, não será mais possível dizer que não se sabia qual caminho estava sendo trilhado.

11/9/2019

Desde quando comecei a aprofundar estudos sobre o Direito do Trabalho, a partir de 1988, com as aulas do prof. Márcio Túlio Viana, em curso de especialização na faculdade de Direito do Sul de Minas e, depois, de 1989 em diante, quando ingressei no curso de especialização da faculdade de Direito da USP, ainda sob os cuidados de Amauri Mascaro Nascimento, Octavio Bueno Magano, Wagner Drdla Giglio, Pedro Vidal Neto, Anníbal Fernandes e Cássio de Mesquita Barros Jr, tenho lido textos e notícias expressando essa ladainha em torno da necessidade de se implementar uma “modernização das relações de trabalho no Brasil”. 

Bem antes disso, o argumento havia sido utilizado para impulsionar uma modificação completa na legislação trabalhista brasileira durante a década de 60.

Aliás, na década de 50, José Pinto Antunes, professor catedrático de Economia Política da faculdade de Direito da USP, na aula de abertura do ano letivo de 1957, intitulada “O Robô e as consequências econômico jurídicas de sua utilização”1, dizia que o Direito do Trabalho, que ainda engatinhava e que sequer possuía instrumentos minimamente eficazes para a sua aplicação, já havia causado vários danos à economia e que, diante dos avanços da robótica, estava fadado à extinção imediata.

Na década de 90, ficaram por conta de José Pastore as críticas mais severas aos direitos trabalhistas. Dizia ele: “Convenhamos: a CLT e a Justiça do Trabalho têm mais de 50 anos. Elas foram criadas para um mundo fechado e para uma economia protegida contra as agressões do processo competitivo.”2 Em 1997, preconizava, inclusive, que o emprego e, consequentemente, os direitos trabalhistas, acabariam em 10 anos:

“Já há sinais disso. O mundo do futuro está nascendo completamente diferente do atual. Tudo indica que, daqui a uns dez anos, a grande maioria das pessoas trabalhará não mais em empregos fixos, mas como autônomos, em projetos que têm começo, meio e fim.3

E como ficarão as licenças, férias e aposentadoria? Já nas primeiras décadas do próximo milênio, isso vai virar peça de museu porque, no novo mundo do trabalho, desaparecerá a relação de subordinação entre empregadores e empregados. Isso ocorrendo, desaparecerá quem conceda licenças, férias e aposentadoria.”4

Na linha do cenário apocalíptico5, chegou, inclusive, a sentenciar:

“Para você que é jovem e gosta de estudar, está aí um ‘kit de sobrevivência’ para enfrentar o desemprego estrutural. Ouça bem os sons do futuro. Eles já estão anunciando: trabalhadores do mundo, eduquem-se! Leis do mundo, flexibilizem-se.”6

Em agosto de 2019, o mesmo autor, em nítida tentativa de se redimir das previsões e proposições feitas, veio a público para, mesmo não se rendendo à declaração formal do vínculo de emprego, defender a aplicação de direitos sociais às 50 milhões de pessoas excluídas do trabalho formal, sem mencionar, é claro, que o processo de exclusão e de negação de toda e qualquer proteção social se deu, em grande medida, em razão das políticas pautadas pela mera adaptação do direito às novas tecnologias. Aliás, o autor se expressou de modo a desacreditar sua própria tese anterior, afirmando, expressamente, que o emprego não vai acabar7

Em 2016, quando se concebeu a cena política necessária para uma maior destruição dos direitos trabalhistas, o argumento utilizado para justificar midiaticamente o ataque foi, novamente, o da necessidade de “modernização das relações de trabalho”, apoiado, inclusive, na caduquice da CLT, que teria mais de 70 anos.

Em 2017, o estágio de ruptura democrática favoreceu a aprovação, sem respeito aos regulares trâmites do processo legislativo constitucional e a preceitos de convenções da OIT, em tempo recorde, da mais profunda alteração sofrida pela legislação trabalhista na história do país.

Foram mais de 200 alterações na CLT, modificando e acrescentando artigos, parágrafos, incisos e letras, de tal modo que se passou a ter uma CLT completamente nova a partir de novembro de 2017. O que passou a reger as relações de trabalho no Brasil foi um aparato normativo novíssimo: a Constituição de 1988, amparada pela "CLT de 2017".

E depois disso já se promoveram, inclusive, por meio da MP 881, novas alterações na CLT, o que foi feito em nítida afronta à Constituição, vez que Medidas Provisórias não podem ser utilizadas para esse fim.

Com todas essas modificações, não é que o governo federal anunciou a formação de um Grupo de Altos Estudos do Trabalho – GAET, formado por ministros, desembargadores e juízes do trabalho, que terá por tarefa tratar da “modernização das relações trabalhistas”, conforme esclarece o secretário especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, Rogério Marinho, que, ao que parece, só sabe dizer essa frase, desde quando foi escalado, enquanto deputado federal, como relator da “reforma” trabalhista?!

Não bastasse, o secretário especial de Produtividade, Emprego e Competitividade, Carlos da Costa, para defender publicamente a inexistência de responsabilidades trabalhistas das empresas proprietárias de aplicativos, disse que: “O mundo não pode mais e não suporta mais códigos como aqueles  que foram escritos 50, 60 ou 70 anos atrás, em que o cenário era diferente. O mundo moderno é do MEI (Microempreendedor Individual)”.8

Ou seja, mesmo com todas as modificações e atualizações operadas, para se passar por grande entendedor das coisas do Direito do Trabalho no Brasil, basta repetir o chavão de que a “legislação trabalhista brasileira é antiquada, retrógrada e que não atende as exigências do mercado, ditadas pelos avanços tecnológicos e os novos paradigmas da produção e dos serviços”. E essa fala continua valendo, para desespero da consciência, inclusive depois da “reforma” trabalhista.

O que resulta dessas frases feitas, vazias de conteúdo e grande efeito retórico, é o mero argumento supostamente matemático que se apega na redução de custo como pressuposto do lucro, sendo que a redução seria alcançada por meio da retirada de direitos. Por esse argumento simplista, menor custo é igual a maior lucro. Esse cálculo não fecha porque o lucro depende do consumo e sem mercado de trabalho sólido e estável não há consumo e, portanto, o menor custo é apenas menor custo e, se generalizado, ou seja, valendo para todos, serve apenas para diminuir o consumo e, consequentemente, o lucro, fazendo a roda do capital girar ao contrário.

Além disso, dentro de um contexto no qual os direitos trabalhistas já foram intensamente reduzidos, buscar a mesma solução equivale a colocar na mesa a eliminação completa de direitos, o que inclui a aniquilação dos sindicatos de trabalhadores e a extinção da Justiça do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho e da advocacia trabalhista.

Mas se já era inconcebível que se quisesse fazer acreditar que a mera redução de custos do trabalho por meio da redução de direitos fosse mecanismo eficiente para melhorar a economia e se já era desesperador ouvir os argumentos em torno da “velhice” da legislação trabalhista no Brasil, imagine-se agora, depois que a “reforma” trabalhista fez da CLT o “código” mais atualizado do Brasil e que é também o momento histórico em que os efeitos da “reforma” já podem (e devem) ser conhecidos e reconhecidos.

Para tentar evitar que ao menos não se alegue desconhecimento a respeito e, com base nisso, se continue apresentando “soluções” que não passariam do aumento da dose do mesmo remédio, o que, neste momento, nos conduziria a passos largos para a barbárie, cumpre deixar aqui registrados os fatos que, mês a mês, marcaram o pós-reforma trabalhista.

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1 - ANTUNES, José Pinto. O "Robot" e as consequências econômico jurídicas da sua utilização. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 52, p. 250-260, 1957. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 8 mar. 2016.

2 - PASTORE, José. Relações de trabalho numa economia que se abre. Palestra realizada no Congresso Brasileiro de Direito Coletivo do Trabalho, LTr, São Paulo, 4/11/96. In: PASTORE, José. A agonia do emprego. São Paulo: LTr, 1997, p. 93.

3 - PASTORE, José. O futuro do emprego. Artigo publicado no Jornal da Tarde, em 20/12/95. In: PASTORE, José. A agonia do emprego. São Paulo: LTr, 1997, p. 23.

4 - PASTORE, José. A morte do emprego. Artigo publicado no Jornal da Tarde, em 15/09/04. In: PASTORE, José. A agonia do emprego. São Paulo: LTr, 1997, p. 21.

5 - “Quem sobreviverá nesse novo mundo? Terão mais chances os que puderem continuar acompanhando o ritmo da revolução tecnológico-organizacional. Os que forem educados e não meramente adestrados. O novo mundo vai exigir capacidade de criar e transferir conhecimentos de um campo para outro. Será um tempo para quem souber se comunicar, trabalhar em grupo, aprender várias atividades, etc. Será a era da polivalência; da multifuncionalidade; das famílias de profissões.” (PASTORE, José. O futuro do emprego. Artigo publicado no Jornal da Tarde, em 20/12/95. In: PASTORE, José. A agonia do emprego. São Paulo: LTr, 1997, p. 25).

6 - PASTORE, José. O futuro do emprego. Artigo publicado no Jornal da Tarde, em 20/12/95. In: PASTORE, José. A agonia do emprego. São Paulo: LTr, 1997, p. 25.

7 - FRAGA, Érica. “Não dar seguro saúde e Previdência a terceirizado é escândalo, diz José Pastore”. Disponível em: clique aqui.

8 - Mundo não suporta mais código de trabalho feito há 70 anos, diz secretário.

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*Jorge Luiz Souto Maior é professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP. Desembargador no Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região.

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