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Direito do capital

Sabe-se que o direito do trabalho, enquanto conjunto orgânico e consistente de garantias mínimas da classe trabalhadora, começou a ser formado a partir da 2ª metade do século XIX, na Europa Ocidental, atingindo sua maturidade nas primeiras décadas do século XX. Sua gênese derivou de múltiplos fatores, com destaque para a pressão exercida pelas coletividades de trabalhadores explorados, e para a doutrina social da Igreja, estampada na célebre encíclica Rerum Novarum.

6/10/2006


Direito do capital

Manoel Carlos Toledo Filho*

 

Sabe-se que o direito do trabalho, enquanto conjunto orgânico e consistente de garantias mínimas da classe trabalhadora, começou a ser formado a partir da 2ª metade do século XIX, na Europa Ocidental, atingindo sua maturidade nas primeiras décadas do século XX.

 

Sua gênese derivou de múltiplos fatores, com destaque para a pressão exercida pelas coletividades de trabalhadores explorados, e para a doutrina social da Igreja, estampada na célebre encíclica Rerum Novarum.

 

Estes aspectos fazem com que, ordinariamente, se entenda o direito laboral como um fator de contraposição ao capital. Algo que, hoje, estaria ademais a travar o bom desenvolvimento da economia, a embaraçar a expansão de riquezas, a obstaculizar a criatividade empreendedora da classe empresarial; algo assim fora de época, fora de contexto. Algo a ser repensado, ou, pelo menos, intensamente flexibilizado, máxime em tempos de globalização. Aliás, existe quem sustente que o melhor mesmo seria eliminá-lo de uma vez, deixando ao mercado a tarefa de estabelecer o devido equilíbrio entre o capital e o trabalho. 

 

O objetivo deste artigo é recordar que o direito do trabalho serve principalmente aos interesses do capital, consubstanciando um eficaz mecanismo de defesa do patrimônio e dos interesses dos empregadores, ou, em outras palavras, um sólido escudo institucional dos empresários de todo o mundo. Mais: objetiva demonstrar que o direito processual do trabalho é um instrumento à disposição do sistema capitalista e que, por fim, os Juízes do Trabalho são parte integrante da linha de frente deste mesmo sistema.  

 

Assim, vejamos.

 

O advento da revolução industrial trouxe consigo o fenômeno do maquinismo, da produção em larga escala, da possibilidade de ganhos substanciais a curto prazo. A produção artesanal ficou ultrapassada e as tradicionais corporações de ofício foram extintas ou até mesmo colocadas fora da Lei, circunstância esta que, aliada ao término do regime de servidão no campo, concentrou nas cidades vultosas massas de proletários sem ocupação perene e, por conseguinte, sem fonte de subsistência regular.

 

Ao mesmo tempo, a revolução francesa disseminava seu ideário de liberdade, inclusive da liberdade de contratar, segundo a qual não poderia o Estado interferir no conteúdo das avenças firmadas pelos cidadãos, aí abrangido o contrato individual de trabalho.

 

Todavia, como o trabalhador não detinha condição alguma de negociar em pé de igualdade, o resultado deste sistema conjugado - produção em massa, falsa liberdade contratual – foi a completa preponderância da vontade patronal. Daí resultaram salários de fome, jornadas estafantes, exploração desmedida, que atingia inclusive crianças de tenra idade, miséria generalizada. A produção industrial em larga escala trouxe como efeito adjunto o sofrimento em larga escala. E do sofrimento, gradativamente advieram o inconformismo e a revolta.

 

Pouco se comenta a respeito de tal aspecto, mas a verdade é que, neste momento, o sistema econômico capitalista se colocou a poucos passos de ser engolido e destruído. Os operários eram, evidentemente, como de resto ainda é, esmagadora maioria. Se consolidassem plenamente sua consciência de classe e, a partir dela, articulassem uma rebelião organizada, não iriam deixar pedra sobre pedra. Os capitalistas acabariam supliciados em suas próprias linhas de produção.  E isto iria acontecer não fora o advento do direito do trabalho. 

 

O direito do trabalho fixou limites à possibilidade de exploração da classe proletária. Estabeleceu patamares básicos, peremptórios, de dignidade para o operariado: salários mínimos, jornadas máximas, idades mínimas, licenças obrigatórias, descansos periódicos, equipamentos de proteção, responsabilidade por acidentes. O trabalhador se sentiu minimamente protegido e, com isto, seu ímpeto revolucionário restou narcotizado. 

 

Eis aí, essencialmente, a genuína natureza histórica do direito do trabalho: uma eficiente e inteligente anestesia institucional. O sistema capitalista, através dele, abandonou alguns poucos anéis e, com isto, preservou todos os demais e, principalmente, não perdeu nenhum dedo.

 

Mas a anestesia não é auto-aplicável. Ela precisa de uma seringa, e quem faz este papel instrumental é o direito processual do trabalho. A seringa, a seu turno, necessita de um médico competente e especializado para manuseá-la, e é aqui que entra em cena o juiz do trabalho.  Direito, processo e Justiça do Trabalho constituem destarte o tripé estatal de análise e contenção da denominada questão social.

 

Se a anestesia for insuficiente (que é o que se dá quando o salário, garantido por lei, é todavia baixo demais), o paciente continua em estado de revolta; se a anestesia for adequada, mas a agulha da seringa estiver romba, o paciente vai ficar ainda mais nervoso do que estava a princípio (que é justamente o que ocorre quando o reclamante vence mas não consegue executar, ou seja, ganha mas não leva); se o médico for inepto ou desinteressado, o paciente irá perder completamente a fé naquele hospital, vale dizer, vai deixar o aparato estatal de lado e partir para a autotutela. 

 

Decorre daí que enfraquecer o direito do trabalho (mediante as tais técnicas de flexibilização) significa, em última análise, debilitar o sistema capitalista; embotar o direito processual do trabalho (pregando, por exemplo, o fim da penhora on line) assim como increpar a justiça do trabalho (pugnando por uma postura mais passiva desta magistratura especializada), implica empurrar o trabalhador para a triste e sangrenta seara da justiça de mão própria. 

 

Fortalecer o direito do trabalho, ao revés, significa robustecer a lógica do sistema capitalista, cultivando uma massa de trabalhadores minimamente satisfeitos, ademais de garantir um mercado consumidor consistente (pois, como é evidente, quem ganha um salário de fome não compra nada, nem comida). Reforçar o cabedal instrumental do processo trabalhista e as condições de labuta da Justiça Laboral, consubstancia a seu turno uma medida eficiente para diminuir a frustração social e, como corolário, incrementar a cidadania.

 

Como se vê, todo empresário consciente deveria levar em seu carro um adesivo com os dizeres “eu amo o direito, o processo e a Justiça do Trabalho”. Afinal, ele tem neste conjunto o seu anteparo institucional, o eixo de sua preservação econômica, a dedicada sentinela de seus haveres, garantindo que eles, se for o caso, sejam expungidos de modo pacífico, gradativo e com amplo direito de defesa.

 

De modo que os antagonistas do arcabouço estatal trabalhista devem pensar duas vezes antes de atacá-lo: se forem capitalistas, estarão, com toda a certeza e segurança, desfechando um tiro no próprio pé.

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*Bacharel, Mestre e Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professor nos cursos de graduação e pós-graduação em direito, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (Puccamp). Magistrado trabalhista desde 1990, exercendo atualmente o cargo de Juiz Titular da 10ª Vara do Trabalho de Campinas/SP (15ª Região)

 

 

 

 

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