No Brasil há leis que pegam e leis que não pegam. Partindo dessa premissa cultural, decidi pesquisar se também há precedentes obrigatórios, entendido como sendo temas repetitivos julgados pelo STJ, que não são respeitados pelos Tribunais: precedentes que “não pegam”.
Não foi difícil comprovar a suspeita. A 2ª Câmara de Direito Público do TJ/SC, mesmo reconhecendo existência de tema repetitivo já julgado no STJ (TEMA 701), não aplica o precedente porque não concorda com as suas conclusões, conforme se vê do acórdão abaixo transcrito:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. INDISPONIBILIDADE DE BENS. DETERMINADA REANÁLISE DA PRESENÇA DO FUMUS BONI JURIS PELO STJ. AUSÊNCIA DE INDÍCIOS DA PRÁTICA DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PROVA TESTEMUNHAL E DOCUMENTAL FRÁGEIS NO SENTIDO DE DEMONSTRAR QUE OS SERVIDORES UTILIZAVAM DO CARRO DO DITRAN PARA USO PARTICULAR. REQUISITO NÃO PREENCHIDO. PERICULUM IN MORA. ORIENTAÇÃO FIRMADA PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, EM REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA, NO SENTIDO DE QUE A MEDIDA FIGURA COMO UMA TUTELA DE EVIDÊNCIA E DISPENSA A COMPROVAÇÃO DO PERIGO DA DEMORA (RESP 1.366.712). TESE REJEITADA POR ENTENDER QUE A INDISPONIBILIDADE DE BENS SE CARACTERIZA COMO UMA TUTELA DE URGÊNCIA, SENDO IMPRESCINDÍVEL A COMPROVAÇÃO NÃO SÓ DO FUMUS BONI JURIS, MAS TAMBÉM DA DILAPIDAÇÃO, ONERAÇÃO OU ALIENAÇÃO DOS BENS, PARA SER DECRETADA. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO E PROVIDO. Em que pese a clara opção feita pelo Colendo STJ, em julgamento de representativo da controvérsia, no sentido de que a medida de indisponibilidade de bens caracteriza-se numa tutela de evidência, fico com a tese contrária, qual seja, aquela que entende se tratar de tutela de urgência, o que acarreta a necessidade de demonstração não só do fumus boni juris, mas também do periculum in mora. Afinal, não vejo como emprestar caráter absoluto ao pedido formulado pelo autor da ação, que é onde resultará finalmente a adoção do entendimento exposto no REsp 1.366.721. Como dito pelo Ministro Napoleão Munes Maia Filho, em seu voto vencido no mencionado precedente, "Essa medida constritiva, pela sua natureza claramente cautelar, pressupõe que estejam evidenciados veementes indícios de responsabilidade do agente, pela prática do ato de improbidade (fumus boni juris), e também elementos indicadores do fundado receio de frustração do ressarcimento futuro, caso venha a ocorrer, tais como alienação, oneração ou dilapidação dos bens do acionado (periculum in mora), ou a sua tentativa" (REsp 1.366.721/BA, p. 7). (TJ/SC, Agravo de Instrumento 0035437-06.2016.8.24.0000, de Gaspar, rel. Des. Francisco Oliveira Neto, Segunda Câmara de Direito Público, j. 2/7/19).
No mesmo sentido: (TJ/SC, Agravo de Instrumento 0025439-14.2016.8.24.0000, de Itá, rel. Des. Francisco Oliveira Neto, Segunda Câmara de Direito Público, j. 2/7/19). (TJ/SC, Agravo de Instrumento 0025101-40.2016.8.24.0000, de Gaspar, rel. Des. Francisco Oliveira Neto, Segunda Câmara de Direito Público, j. 25/6/19).
Nota-se claramente que o acórdão do TJ/SC afirma conhecer o precedente obrigatório, contudo decide em sentido flagrantemente contrário por não concordar com o que ele determina.
Pior do que um cidadão comum violar o texto legal porque não concorda com a lei promulgada, é o próprio Poder Judiciário violar a norma jurídica estabelecida pela Corte de Precedentes.
Quando o próprio Estado, mediante os órgãos incumbidos de aplicar o direito, não aplica a norma (precedente obrigatório) porque não concorda com ela, torna-se impossível desenvolver uma consciência social pautada no sentimento de responsabilidade ou no respeito ao direito. Isso passa a seguinte mensagem para a população: só sigo a lei se eu concordar com o que ela determina.
“Não há dúvida que o direito perde autoridade na proporção direta da sua indeterminação”. MARINONI1.
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1 Respeito ao Direito, Corte de Precedentes e Responsabilidade Pessoal, Luiz Guilherme Marinoni, disponível aqui, acessado em 15/8/19.
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*Guilherme Veiga Chaves é advogado do escritório Gamborgi, Bruno e Camisão Associados Advocacia.