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Falências fraudulentas e cooperação jurídica internacional: uma reflexão sobre a real natureza do problema

Diante de tantos casos de sucesso, salta aos olhos que as falências fraudulentas ainda ocorram com tanta frequência. Isto posto, questiona-se: por que um problema ainda sem solução

26/8/2019

As fraudes contra credores e as falências maliciosamente orquestradas são problemas que, apesar de seculares, permanecem sem solução.

Considerando o modo clandestino como tudo isso ocorre, é extremamente difícil calcular com precisão os prejuízos causados aos credores, dada a escassez de dados objetivos.

No ano de 2007, a operação Castelhana deflagrou uma organização criminosa que teria causado quase 1 bilhão de reais em prejuízo ao erário, por meio de remessa de ativos ao exterior, notadamente em locais com baixo nível de compliance, sigilo societário e isenção fiscal para a integralização de capital social1. Recentemente, a fraude executada pelo Grupo Oboé causou prejuízos ao Sistema Financeiro na ordem de 200 milhões de reais, tendo sido apontada pelo Banco Central como a “maior fraude da história do sistema financeiro nacional2.

Engana-se, no entanto, quem afirma que o problema se resume à falta de mecanismos jurídicos para a recuperação dos valores desviados para o exterior, especialmente em localidades conhecidas como paraísos fiscais.

Tendo em vista que o direito tende a acompanhar as mudanças da sociedade, o crescente grau de globalização e a sofisticação das estruturas societárias modernas impulsionou o surgimento de louváveis mecanismos de cooperação internacional.

Na falência da TRANSBRASIL S/A LINHAS AÉREAS, o STJ firmou um interessante posicionamento, permitindo a instauração de um incidente de investigação em segredo de justiça, para que o administrador judicial pudesse requerer diligências ao juízo falimentar sem o prévio conhecimento do falido3. Neste mesmo caso, o juízo norte-americano concordou em cooperar com as autoridades brasileiras e considerou legítima a confidencialidade das investigações, uma vez que “a velocidade das comunicações atuais permite operações financeiras em questão de minutos4.

Até mesmo países historicamente conhecidos por abrigarem empresas não operacionais, constituídas para sonegação fiscal e lavagem de dinheiro (offshores), têm se mostrado cooperativos no que tange à apreensão de valores ilegalmente desviados para as suas fronteiras.

Desde 2008, as Ilhas Cayman possuem normas disciplinando o requerimento de cooperação internacional e a abertura de uma falência auxiliar pelo administrador judicial estrangeiro junto às cortes locais5. A Suíça, por sua vez, desempenhou um papel fundamental para o êxito da Operação Lava Jato, atendendo aos pedidos do Ministério da Justiça brasileiro6. A par da midiática constrição de U$ 2,4 milhões nas contas do então deputado federal Eduardo Cunha7, estima-se que as apreensões relacionadas ao esquema totalizam R$ 3,5 bilhões8.

Diante de tantos casos de sucesso, salta aos olhos que as falências fraudulentas ainda ocorram com tanta frequência. Isto posto, questiona-se: por que um problema ainda sem solução? É que a cooperação internacional só ganha espaço caso o estratagema seja constatado e desvendado. Neste contexto, a fraude contra credores se revela não como um problema de apreensão, mas de localização.

Dentre os modos mais populares de desvio de bens, destacam-se (i) a manutenção de folha de pagamento para “funcionários fantasmas”, (ii) o registro de desfalques patrimoniais inexistentes junto à contabilidade da empresa, sob as mais variadas e criativas justificativas, (iii) a simulação de negócios jurídicos sem qualquer conteúdo patrimonial, tais como a contratação de serviços de consultoria inexistentes, e (iv) a constituição de sociedades em nome de “laranjas”, isto é, pessoas que sequer têm conhecimento do registro feito em seu nome9.

Na operação Monte Éden, a Polícia Federal investigou um esquema suspeito de desviar 150 milhões para offshores no Uruguai. Na época, o país permitia a constituição de sociedades na forma de emissão de títulos ao portador, o que dificultava o rastreamento dos bens dissipados, visto que mantinha o anonimato dos titulares da empresa, que assim se caracterizam pela mera apresentação dos papéis representativos da sociedade10. Posteriormente, os acusados foram inocentados por ausência de provas11.

Em todos os casos, o objetivo da manobra é a “alocação fraudulenta (por vezes criminosa) dos bens do devedor em nome de terceiros para que, assim, não pudesse, ser alcançados pelos processos executórios movidos por seus credores”12.

Sopesados os recentes avanços jurídicos em matéria de cooperação internacional com os desafios ainda remanescentes, impõe-se concluir que a essência do problema é operacional. Considerando a fluidez e mobilidade do capital nos tempos modernos, o professor Jay Westbrook adverte que a insolvência transfronteiriça pode ser comparada ao jogo das cadeiras: os credores nunca conseguem saber de antemão onde os ativos vão estar quando a música parar13.

Diante da dificuldade em recuperar ativos ilegalmente desviados, parece-nos que o problema deve ser prevenido pelo constante monitoramento da situação patrimonial dos parceiros comerciais, para que o credor evite transações ruinosas, requeira a falência do devedor antes mesmo da conclusão do estratagema e, em última instância, forneça subsídio para que o administrador judicial e o Ministério Público procedam à persecução dos bens dissipados.

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1 Operação Castelhana: MPF denuncia organização criminosa que causou prejuízo de mais de um bilhão de reais aos cofres públicos

2 Dono de corretora é condenado a 32 anos de prisão em ‘maior fraude da história do SFN’

3 REsp 1446201/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 07/08/2014, DJe 09/09/2014.

4 United States Bankruptcy Court, S.D. Florida. TRANSBRASIL S.A. LINHAS AÉREAS, 557 B.R. 240 (2016).

5 The Foreign Bankruptcy Proceedings (International Cooperation) Rules 2008. Disponível em <_https3a_ _www.judicial.ky2f_wp-content2f_uploads2f_foreign-bankruptcy-proceedings-international-cooperation-rules-2008.pdf="">. Acesso em 04.11.2018.

6 Acordo da "lava jato" na Suíça resulta em bloqueio de US$ 44 milhões

7 Suíça bloqueou US$ 2,4 milhões em supostas contas de Cunha

8  https://www.valor.com.br/politica/5470509/lava-jato-tem-cerca-de-100-processos-investigados-na-suica

9 Wells, Joseph T. Corporate fraud handbook: prevention and detection / Joseph T. Wells. – 3rd ed. P. 47

10 MAMEDE, Gladston; MAMEDE, Eduarda Cotta. Blindagem patrimonial e planejamento jurídico. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2011. pp. 1-3.

11 TRF 3ª Região. Ação penal 0003664-57.2007.4.03.6181

HC 149.008/PR, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, Rel. p/ Acórdão Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 17/06/2010, DJe 09/08/2010

12 MAMEDE, Gladston; MAMEDE, Eduarda Cotta. Blindagem patrimonial e planejamento jurídico. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2011. pp. 26-27.

13 A Global Solution to Multinational Default

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*Pedro Francisco da Silva Almeida é advogado. 

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