Migalhas de Peso

O Coaf no divã do psiquiatra

Essa matéria é fruto da invasão do computador do Dr. Ken Soul?, conhecido psiquiatra da capital do Estado de São Paulo.

27/8/2019

Que me perdoem os puristas do direito, mas essa matéria é fruto da invasão do computador do Dr. Ken Soul?, conhecido psiquiatra da capital do Estado de São Paulo. Não, não fui eu quem hackeou aquele digno facultativo. Alguém o fez e, sabendo do meu interesse pelo assunto, me mandou tudo o que ele conseguiu, não tendo eu pago nada, é bom esclarecer. Havendo aberto os arquivos recebidos, verifiquei que se trata do prontuário do paciente Sr. Coaf, que desde alguns meses procurou o Dr. Ken Soul? porque está passando por uma grave crise de identidade. Em vista do extremo interesse atual pelo assunto vou reportar má fase do Sr. Coaf na forma do relato abaixo, com os elementos tirados do seu prontuário.

A situação é muito séria, porque, ao chegar ao consultório do Dr. Ken Soul?, muito abatido, o seu paciente parecia ser duas pessoas ao mesmo tempo, com tendência para assumir uma terceira personalidade, então ainda fugidia.

Em primeiro lugar o Sr. Coaf esclareceu que o seu nome completo era Conselho de Controle de Atividades Financeiras, parido pela lei 9.613, de 3/3/98 (que passou por cirurgia plástica nos termos da lei 12.683, de 2012), tendo aquela ficado conhecida como Lei dos Crimes Financeiros. Ela tem, entre os seus objetivos, identificar e punir os chamados crimes de ocultação e de lavagem de dinheiro. Esta, evidentemente, não feita em máquinas de lavar roupa, mas por meio da utilização de mecanismos simples ou sofisticados destinados a disfarçar a origem ilícita de recursos, praticados por quem participou da realização do crime estabelecido no art. 1º daquele diploma legal, em situação mais simplificada do que a do seu nascimento:

Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.       

A maternidade do Sr. Coaf foi o Ministério da Fazenda e logo de cara, mal desmamado, foi-lhe dada a incumbência de disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas previstas nesta lei, sem prejuízo da competência de outros órgãos e entidades, cabendo-lhe, entre outras tarefas, comunicar às autoridades competentes para a instauração dos procedimentos cabíveis, quando concluir pela existência de crimes previstos nesta lei, de fundados indícios de sua prática, ou de qualquer outro ilícito. (arts. 14 e 15).

Nosso menino entendeu que a comunicação de que se trata acima era uma obrigação legal e não mera faculdade. Presentes os pressupostos daquele mandamento impunha-se prestar a informação a quem de direito.

Diante de tanta responsabilidade, o corpo físico do menino Coaf foi formado por diversos membros, escolhidos dentro da sua maternidade entre por servidores do Banco Central do Brasil – BCB, da Comissão de Valores Mobiliários – CVM, da Superintendência dos Seguros Privados, da Procuradoria Geral da Fazendo Nacional da Receita Federal, de órgão de inteligência do Poder Executivo, do Departamento de Polícia Federal e do Ministério das Relações Exteriores. Nestes três últimos casos, a indicação era feita pelos respectivos Ministros de Estado.

Veja-se que havia uma garantia de não interferência externa naquela criança, pois os seus membros gozavam de estabilidade no exercício de suas funções nos órgãos originais, que levaram consigo para o Coaf. Trata-se de elemento fundamental, determinado com o fim de se evitar interferências externas, especialmente a sua captura por quem possa ser afetado pela sua atividade. Isto levaria à ineficiência dos serviços prestados, do que resultam perdas para a toda a sociedade, pois os recursos ocultos ou lavados na realização de diversos crimes serão apropriados pelos autores, distantes de qualquer investigação proporcionada a partir dos dados fornecidos pelo Coaf.

Aquele garoto cresceu, tendo completado vinte e um anos de idade e parecia que a sua vida continuaria no ritmo normal estabelecida desde o seu nascimento quando foi ferido por uma medida provisória de número 870, de 1/1/19, logo no primeiro dia do novo governo1. Aquele jovem foi arrancado da sua casa, onde vivera desde a sua vinda ao mundo, e transferido ad nutum para o Ministério da Justiça e da Segurança Pública, tendo lhe sido dito que ali ele poderia viver melhor e mais eficazmente exercer o seu papel. Acontece, conforme se sabe a partir dos campos de futebol, que se quem manda não manda tanto, antes de resolver trilhar um novo caminho, é preciso combinar com os gringos. E os gringos não gostaram da medida, a rejeitaram, e a criança, depois de curtos cinco meses, voltou para a sua primeira casa, conforme o mandamento da medida provisória 886, de 18/6/19.

É claro que o resultado não poderia ser outro senão uma crise de identidade instalada naquele rapaz, que passou para os cuidados do Dr. Ken Soul? Mas sua odisseia não parou por aí. Passados curtos dois meses do seu retorno ao lar, outra medida provisória, de número 893, de 19/8/19 mudou o seu rumo e o seu nome, tendo passado a se chamar Unidade de Inteligência Financeira – UIF. Foi um enorme transtorno para o nosso rapaz, que ainda está sob o efeito de fortes sedativos receitados pelo Dr. Ken Soul? E não foi só isto, ele também mudou de casa, tendo se transferido para o Banco Central do Brasil – BCB. O fundamento dessa alteração foi explicado como tendo sido relativo à necessidade de se estabelecer a sua autonomia plena, para fora do âmbito de alguma eventual captura. A velhinha de Taubaté acreditou na explicação.

 - Ah, bom! Assim disse nosso Coaf/UIF. Mas ele não entendeu bem a sua nova maneira de viver.

Ele foi vinculado administrativamente ao BCB, com autonomia técnica e operacional. Dessa forma não está dentro daquela Autoridade Monetária, mais parecendo que se trata de um puxadinho que àquela foi agregado[2]. E ele pode engordar muito porque na nova estrutura, além do Presidente (escolhido, por sua vez, pelo Presidente do BCB), é formada por, no mínimo, oito e por, no máximo, catorze conselheiros.

Não sei se o BCB gostou dessa história porque essa mistura de funções não combina com sua competência que é relativa à estabilidade da moeda, não se preocupando com a sua origem e com o fato de saber se está limpa ou suja. Uma coisa era ter servidores seus a serviço do Sr. Coaf, juntamente com outros, outra bem diferente é colocá-lo sob a sua égide, uma vez que passou a ter atribuições diretas na sua gestão, como a da fixação do número de conselheiros e as indicações correspondentes (Presidente e Conselheiros).

Fica uma dúvida a respeito de quem serão os Conselheiros, porque os critérios da MP deixam margem a interpretações subjetivas: apresentar reputação ilibada e reconhecidos conhecimentos em matéria de prevenção e combate à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo ou ao financiamento da proliferação de armas de destruição em massa. Nosso Coaf/Uif acha que não será muito fácil achar em nossas plagas pessoas conhecedoras em profundidade das formas de financiamento ao terrorismo ou à proliferação de armas de destruição em massa, não se tratando neste último caso de gulosos comedores de macarrão, porque se trata em massa e não de massas.

Grande preocupação também se coloca está na escolha das pessoas que comporão o quadro técnico-administrativo do Coaf/UIF, segundo forma que, pelo visto, permitirá a presença de gente estranha aos órgãos da administração pública, como se dava anteriormente. E aí, adeus autonomia! Vejamos:

Art. 7º  O Quadro Técnico-Administrativo é composto pela Secretaria-Executiva e pelas Diretorias Especializadas previstas no regimento interno da Unidade de Inteligência Financeira e é integrado por:

I - ocupantes de cargos em comissão e funções de confiança;

II - servidores, militares e empregados cedidos ou requisitados; e

III - servidores efetivos.

De onde eles virão? Será que quanto às funções de confiança, os titulares não poderão ser pessoas não concursadas e, portanto, escolhidas por meio de critérios subjetivos/políticos para os órgãos nos quais se encontram em serviço? Nesse sentido é sintomático que o item III refere-se expressamente a servidores efetivos, significando que nos outros dois itens poderão estar presentes servidores não efetivos. Mesmo porque entre eles está a referência a empregados. De quem serão estes?

Ao ler esse dispositivo a crise de ansiedade do Coaf/Coinf aumentou muito e o Dr. Ken Soul? dobrou-lhe a dose de lexotan e de ansitec.

Outra coisa intrigou bastante o Coaf/UIF. Os conselheiros não serão remunerados, pois estarão atuando na prestação de serviço público relevante. Ora, ou eles são ricos o suficiente para assumirem essa função sem qualquer ganho, ou serão servidores que trabalham em outras áreas e dessa forma se dividirão entre duas funções, em claro prejuízo se sua eficiência.

Mais ainda, esses conselheiros estarão sujeitos a um eventual processo administrativo sancionador, que poderá leva-los a serem condenados por ilícitos praticados em sua gestão. Cuida-se, portanto, de uma boa razão para que alguém, convidado para ser Conselheiro do Coaf/UIF recuse-se a ganhar esse tremendo presente de grego.

Uma coisa é certa, nosso Coaf/UIF continuará enfrentando sua seríssima crise de identidade, até que a tal da MP 893/19 seja apreciada pelo Legislativo. Enquanto isto, sujeitemo-nos com ele às negras chuvas que estão vindo da Amazônia, por culpa de algumas ONGs irresponsáveis. E se isto é terrorismo que tal começar a nova vida por elas, investigando quem as financia? Não precisa muito. Basta verificar a quem aproveita destruir o nosso país como fonte produtora de alimentos para o resto do mundo...

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1 Nos permitimos ao leitor explicar que medida provisória está inserida na nossa Constituição na categoria permanente de lei provisória. Permanente porque os governantes passaram a usá-la o tempo todo, no mais das vezes sem que haja urgência ou relevância quanto ao seu objeto. Provisória porque só valerá de vez se for aprovada, o que parece ser esquecido por quem a edita.

2 E esse puxadinho tem cara de inconstitucional porque a MP que o criou mexe com lei do BCB (Lei 4.595/1964) que foi recebida pela Constituição Federal como lei complementar.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio de Duclerc Verçosa Advogados Associados.

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