No último dia 20 de agosto de 2019 noticiou-se, à exaustão, a conduta de um indivíduo que, imbuído de motivos ainda a serem esclarecidos, tomou à força o controle de um ônibus, quando este trafegava pelo ponto mais alto da Ponte Rio Niterói, e rendeu mais de trinta passageiros, incluindo o motorista do veículo. Em um momento de exposição oportuna, o indivíduo foi prontamente abatido, pelo atirador de elite do BOPE (Batalhão de Elite da Polícia Militar do Rio de Janeiro), com um tiro na perna. Em razão do calibre utilizado, os ferimentos foram de tamanha extensão que acabaram por causar a morte do agente “sequestrador”.
Pois bem. Não há como questionar a eficiente atitude do atirador do BOPE, que cumpre o dever de preservação da ordem pública, de acordo com o preceito constitucional. Dito isto, é insofismável a conclusão de que, atendendo ao referido dever, ao abater um indivíduo que coloca a vida de diversas pessoas em perigo concreto, com aparato de objetos incendiáveis espalhados pelo veículo, age o policial amparado por uma evidente excludente de ilicitude: o estrito cumprimento do dever legal (artigo 23, inciso III, do Código Penal).
Aos mais apressados, fica um alerta: o policial não está autorizado a agir de modo arbitrário e injustificável. Ao contrário. A lei, em situações excepcionais, deve ser interpretada restritivamente, uma vez que as excludentes de ilicitude tornam lícitos os fatos que, sem elas, poderiam infringir a lei penal.
Com isto se quer dizer que, acertadamente, o Código Penal disciplina o abuso que, porventura, possa ocorrer no caso concreto e, com base neste caso, implicar em responsabilização dolosa ou culposa do agente pelo resultado “excessivo” (artigo 23, parágrafo único, do Código Penal).
Então, a primeira conclusão a que se pode chegar é que o agente do BOPE fez cessar uma clara e evidente ameaça à vida coletiva com a qual se deparou, isto é, ponderou o fato de que preservar a vida do indivíduo “sequestrador” poderia implicar em relevante diminuição da chance de sobrevivência das vítimas e, assim, agiu à maneira do permissivo constitucional, preservando a ordem pública e a vida de cidadãos inocentes.
Mas a maior curiosidade penal reside em desfecho diverso, hipotético neste caso ora estudado e similar ao evento do Ônibus 174, também ocorrido no Rio de Janeiro: e se o atirador de elite da Polícia errasse o alvo, atingindo apenas uma vítima ou também o criminoso? Haveria a responsabilidade criminal? Dolo eventual ou culpa consciente do agente que, prevendo a ocorrência do resultado morte de algum refém que está próximo ou junto ao sequestrador, efetua o disparo da arma de fogo?
Em apertada síntese, a culpa consciente ocorre quando o agente prevê o resultado, mas acredita, sinceramente, que ele não ocorrerá. Assim sendo, o atirador de elite que tem um “tiro limpo”, com condições extremamente favoráveis - ao menos em tese, pois não se desconhecem as dificuldades práticas do tiro à distância -, altamente treinado, certamente tem a condição de buscar o alvo com precisão, ou seja, não assume o risco do erro, mas sim, verdadeiramente, crê que não irá acertar ninguém mais do que seu verdadeiro alvo: é a culpa consciente naturalmente demonstrada. Verdadeiro erro na execução.
De igual modo, um experiente caçador que se depara com o seu colega próximo ao animal caçado e, acreditando convictamente na precisão de seu tiro, efetua um disparo, que acaba atingindo o amigo, que vem a falecer.
Por outro lado, se o atirador de elite não possuísse visão “limpa”; constatasse ventos fortíssimos, luminosidade e reflexos adversos e, sem a devida ordem para tanto, optasse por arriscar o tiro, certamente agiria com indiferença quanto à ocorrência do resultado: agiria com dolo eventual.
Portanto, conclui-se que os institutos da culpa consciente e do dolo eventual possuem semelhanças e distinções peculiares, o que demanda uma especial atenção do intérprete. Com efeito, tanto na culpa consciente quanto no dolo eventual, o resultado naturalístico é inicialmente previsto pelo agente. Todavia, a grande distinção repousa na postura do agente em relação à possibilidade de produção do resultado: no dolo eventual, o agente atua com verdadeira indiferença, assumindo o risco de produzir o resultado naturalístico previsto.
Já na culpa consciente, há plena convicção do agente de que o resultado jamais ocorrerá, pois ele adota todas as cautelas necessárias para tanto. Em outras palavras, o agente jamais assume o risco da produção do resultado. Ele acredita, concretamente, que este jamais ocorrerá.
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