“Há esperanças, só não para nós”, assim disse Franz Kafka. Não bastassem os vários atropelos legislativos dos últimos dias, em 15/8/19, a Câmara dos Deputados aprovou o texto do PL 7.596/17, que dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade, seguindo, agora, para a sanção presidencial.
Reproduz, entre outros aspectos, mais um atentado à democracia, com efeitos deletérios para as presentes e futuras gerações, já que tende a esvaziar a garantia constitucional de um Poder Judiciário independente (art. 2º da CF/88), livre de intimidações, conspirações e ameaças de toda e qualquer ordem. Não se está a defender a imunidade do órgão julgador, mas eventuais excessos, acaso praticados, devem ser reprimidos pelas instâncias superiores, não sob a temor da baioneta, com risco de persecução penal, enquadrados em ilícitos de generosa largueza.
Esse tipo de ameaça viola cláusula pétrea que constitui o núcleo duro e imutável da Constituição, para o qual não pode haver lei nem tampouco emenda constitucional tendente a lhe abolir. “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: ... III – a separação dos Poderes” (art. 60, §4º, III, da Constituição), restando proibida não apenas uma revogação explícita de clausula pétrea, mas sim qualquer norma que lhe diminua, esvazie, tangencie, como é o caso da “Lei do Abuso de Autoridade”.
Dentre os inúmeros dispositivos pensados para amordaçar o corpo de juízes brasileiros, há um, em especial, que tem o condão de impactar diretamente no trâmite do processo do trabalho, notadamente na fase de cumprimento de sentença. Está-se a falar do art. 36, no qual se criminaliza a determinação de indisponibilidade de ativos financeiros “em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la”.
Tamanha é a abertura do tipo penal que uma miríade de questionamentos pode ser suscitada: qual seria o valor exato para se enquadrar na expressão “exacerbadamente”? E se o juiz discordar do devedor quanto à alegação de “excessividade”? Poderá, ainda assim, sofrer persecução penal? Quantos juízes vão se esforçar para promover a execução do crédito ante a insegurança de ser processado criminalmente, com base em tipos penas tão imprecisos? A quem interessa a intimidação dos juízes?
Aliás, foi justamente para atender aos reclamos da sociedade por maior eficiência e celeridade do Poder Judiciário que várias alterações foram promovidas no Código de Processo Civil de 1973 e maturadas no de 2015, ampliando-se os poderes do juiz, com vistas a garantir o cumprimento das decisões e a satisfação integral do crédito, com destaque para o art. 139. De seu lado, no âmbito do processo do trabalho, o art. 765 da CLT sempre conferiu ao órgão julgador ampla liberdade na condução e direção da marcha processual, atento à especialidade do crédito trabalhista, de natureza essencialmente alimentar.
Em sentido diametralmente oposto, todavia, navega o PL 7.596/17, visando a esvaziar a força normativa de tais dispositivos, a ponto de, uma vez sancionado, comprometer não só a independência funcional do órgão julgador, como também a própria efetividade da Justiça.
E assim se afirma porque os recursos coercitivos a que tem o Poder Judiciário acesso e o dever de instrumentalizar são essenciais para se garantir o acesso integral à Justiça, bem como para garantir-lhe algum resultado útil, em tempo razoável, entregando o bem da vida vindicado. Aí, diga-se de passagem, está o gargalo do processo do trabalho: a execução. Nesta fase, em especial, o uso dos recursos tecnológicos (BacenJud; RenaJud; InfoJud; CNIB; SIMBA) são a correia de transmissão essencial para o movimento das engrenagens rumo à satisfação do crédito exequendo. Não fosse sua existência, de ato de império passaria a sentença ser concebida como ato babilônico: rebuscada de um vernáculo erudito, mas sem força necessária para o atingimento de seus fins.
Por isso, merece especial atenção o tipo penal elencado no art. 36. De saída, registre-se que uma das mais
Nessa mesma linha de raciocínio, por “excessividade da medida” há de se considerar não a ordem de indisponibilidade em si, mas a tal extrapolação exacerbada na constrição judicial de ativos financeiros.
De se apontar ainda que, mesmo na hipótese de questionamento quanto à eventual excessividade do bloqueio, a incidência da penalidade fica prejudicada quando, em decisão fundamentada, o juiz mantiver a indisponibilidade, após a provocação da parte, entendendo inexistir o alegado excesso, já que o próprio projeto, em seu art. 1º, §2º, exclui a ilicitude da “divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas”.
Por outro lado, também não se pode olvidar que o mesmo projeto, em seu art. 1º, §1º, exige a comprovação do dolo com a “finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”.
Finalmente, em se tratando de ações coletivas, nas quais não se há possibilidade de determinar, de imediato, o valor exequendo, mas uma estimativa do quantum devido, não há como criminalizar a conduta judicial de manutenção do bloqueio, em valor superior, já que se está a garantir a satisfação integral do crédito. Esse mesmo raciocínio se aplica nas hipóteses de tutela provisória de natureza acautelatória, quando não se tem a liquidação dos valores devidos, mas cujo bloqueio é necessário para se evitar o eclipsamento do direito e garantir a efetividade do provimento jurisdicional. Tudo, por óbvio, levado a efeito mediante decisão fundamentada, com a exposição das razões da indisponibilidade e de sua manutenção como vitais para a garantia da efetividade do provimento jurisdicional.
O processo, já se sabe, não é um fim em si mesmo, mas, em essência, instrumento para garantia de direitos fundamentais e tutela de valores constitucionais, ou seja, expediente pautado pela ética, pelo compromisso com o Estado Democrático de Direito, pelos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal e, claro, da efetividade. De nada vale o processo se minada sua força coercitiva. De nada vale o direito se comprometida a independência funcional dos juízes. Ainda se está em tempo de vetá-la, porque flagrantemente inconstitucional. Mas se sancionada, espera-se que seja invalidada em sede de controle difuso de constitucionalidade, por qualquer órgão do Poder Judiciário, ou em controle concentrado, a ser levado a cabo pelo Supremo Tribunal Federal. Como bem fala Franz Kafka, “se estou condenado, não estou somente condenado à morte, mas também a defender-me até a morte”. A defesa, no caso, é da própria Constituição e do Estado Democrático de Direito por ela inagurado.
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*Cesar Zucatti Pritsch é juiz do trabalho pelo TRT 4ª Região.
*Fernanda Antunes Marques Junqueira é juíza do trabalho pelo TRT da 14ª Região.
*Ney Maranhão é juiz do trabalho pelo TRT da 8ª Região.