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Impactos trabalhistas da lei de abuso de autoridade?

De nada vale o processo se minada sua força coercitiva. De nada vale o direito se comprometida a independência funcional dos juízes. Ainda se está em tempo de vetá-la, porque flagrantemente inconstitucional.

21/8/2019

Há esperanças, só não para nós”, assim disse Franz Kafka. Não bastassem os vários atropelos legislativos dos últimos dias, em 15/8/19, a Câmara dos Deputados aprovou o texto do PL 7.596/17, que dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade, seguindo, agora, para a sanção presidencial.

Reproduz, entre outros aspectos, mais um atentado à democracia, com efeitos deletérios para as presentes e futuras gerações, já que tende a esvaziar a garantia constitucional de um Poder Judiciário independente (art. 2º da CF/88), livre de intimidações, conspirações e ameaças de toda e qualquer ordem.  Não se está a defender a imunidade do órgão julgador, mas eventuais excessos, acaso praticados, devem ser reprimidos pelas instâncias superiores, não sob a temor da baioneta, com risco de persecução penal, enquadrados em ilícitos de generosa largueza.

Esse tipo de ameaça viola cláusula pétrea que constitui o núcleo duro e imutável da Constituição, para o qual não pode haver lei nem tampouco emenda constitucional tendente a lhe abolir. “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: ... III – a separação dos Poderes” (art. 60, §4º, III, da Constituição), restando proibida não apenas uma revogação explícita de clausula pétrea, mas sim qualquer norma que lhe diminua, esvazie, tangencie, como é o caso da “Lei do Abuso de Autoridade”.

Dentre os inúmeros dispositivos pensados para amordaçar o corpo de juízes brasileiros, há um, em especial, que tem o condão de impactar diretamente no trâmite do processo do trabalho, notadamente na fase de cumprimento de sentença. Está-se a falar do art. 36, no qual se criminaliza a determinação de indisponibilidade de ativos financeiros “em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la”.

Tamanha é a abertura do tipo penal que uma miríade de questionamentos pode ser suscitada: qual seria o valor exato para se enquadrar na expressão “exacerbadamente”? E se o juiz discordar do devedor quanto à alegação de “excessividade”? Poderá, ainda assim, sofrer persecução penal? Quantos juízes vão se esforçar para promover a execução do crédito ante a insegurança de ser processado criminalmente, com base em tipos penas tão imprecisos? A quem interessa a intimidação dos juízes?

Aliás, foi justamente para atender aos reclamos da sociedade por maior eficiência e celeridade do Poder Judiciário que várias alterações foram promovidas no Código de Processo Civil de 1973 e maturadas no de 2015, ampliando-se os poderes do juiz, com vistas a garantir o cumprimento das decisões e a satisfação integral do crédito, com destaque para o art. 139. De seu lado, no âmbito do processo do trabalho, o art. 765 da CLT sempre conferiu ao órgão julgador ampla liberdade na condução e direção da marcha processual, atento à especialidade do crédito trabalhista, de natureza essencialmente alimentar.  

Em sentido diametralmente oposto, todavia, navega o PL 7.596/17, visando a esvaziar a força normativa de tais dispositivos, a ponto de, uma vez sancionado, comprometer não só a independência funcional do órgão julgador, como também a própria efetividade da Justiça.

E assim se afirma porque os recursos coercitivos a que tem o Poder Judiciário acesso e o dever de instrumentalizar são essenciais para se garantir o acesso integral à Justiça, bem como para garantir-lhe algum resultado útil, em tempo razoável, entregando o bem da vida vindicado. Aí, diga-se de passagem, está o gargalo do processo do trabalho: a execução. Nesta fase, em especial, o uso dos recursos tecnológicos (BacenJud; RenaJud; InfoJud; CNIB; SIMBA) são a correia de transmissão essencial para o movimento das engrenagens rumo à satisfação do crédito exequendo. Não fosse sua existência, de ato de império passaria a sentença ser concebida como ato babilônico: rebuscada de um vernáculo erudito, mas sem força necessária para o atingimento de seus fins.

Por isso, merece especial atenção o tipo penal elencado no art. 36. De saída, registre-se que uma das mais elementares regras da hermenêutica estabelece que os enunciados normativos que encerram restrição de direitos ou, então, imputam penalidades não comportam interpretação extensiva. Nesse sentido, ao mencionar a expressão indisponibilidade de ativos financeiros, deve-se ater ao bloqueio de dinheiro (pelo sistema BacenJud ou outra forma de constrição). Isso significa que não estão abrangidos os atos de indisponibilidade de imóveis, veículos ou outros bens materiais.

Nessa mesma linha de raciocínio, por “excessividade da medida” há de se considerar não a ordem de indisponibilidade em si, mas a tal extrapolação exacerbada na constrição judicial de ativos financeiros.

De se apontar ainda que, mesmo na hipótese de questionamento quanto à eventual excessividade do bloqueio, a incidência da penalidade fica prejudicada quando, em decisão fundamentada, o juiz mantiver a indisponibilidade, após a provocação da parte, entendendo inexistir o alegado excesso, já que o próprio projeto, em seu art. 1º, §2º, exclui a ilicitude da “divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas”.

Por outro lado, também não se pode olvidar que o mesmo projeto, em seu art. 1º, §1º, exige a comprovação do dolo com a “finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”.

Finalmente, em se tratando de ações coletivas, nas quais não se há possibilidade de determinar, de imediato, o valor exequendo, mas uma estimativa do quantum devido, não há como criminalizar a conduta judicial de manutenção do bloqueio, em valor superior, já que se está a garantir a satisfação integral do crédito.  Esse mesmo raciocínio se aplica nas hipóteses de tutela provisória de natureza acautelatória, quando não se tem a liquidação dos valores devidos, mas cujo bloqueio é necessário para se evitar o eclipsamento do direito e garantir a efetividade do provimento jurisdicional. Tudo, por óbvio, levado a efeito mediante decisão fundamentada, com a exposição das razões da indisponibilidade e de sua manutenção como vitais para a garantia da efetividade do provimento jurisdicional.

O processo, já se sabe, não é um fim em si mesmo, mas, em essência, instrumento para garantia de direitos fundamentais e tutela de valores constitucionais, ou seja, expediente pautado pela ética, pelo compromisso com o Estado Democrático de Direito, pelos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal e, claro, da efetividade. De nada vale o processo se minada sua força coercitiva. De nada vale o direito se comprometida a independência funcional dos juízes. Ainda se está em tempo de vetá-la, porque flagrantemente inconstitucional. Mas se sancionada, espera-se que seja invalidada em sede de controle difuso de constitucionalidade, por qualquer órgão do Poder Judiciário, ou em controle concentrado, a ser levado a cabo pelo Supremo Tribunal Federal. Como bem fala Franz Kafka, “se estou condenado, não estou somente condenado à morte, mas também a defender-me até a morte”. A defesa, no caso, é da própria Constituição e do Estado Democrático de Direito por ela inagurado.

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*Cesar Zucatti Pritsch é juiz do trabalho pelo TRT 4ª Região.

*Fernanda Antunes Marques Junqueira é juíza do trabalho pelo TRT da 14ª Região.

*Ney Maranhão é juiz do trabalho pelo TRT da 8ª Região.

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