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Produtor rural individual e recuperação judicial

Admitir a legitimidade da atividade empresarial sem registro e a faculdade de fazê-lo, põe termo a qualquer dúvida sobre a exigibilidade dos dois anos de exercício de empresa com registro na junta comercial.

19/8/2019

Um debate que tem aquecido o meio jurídico é a possibilidade ou não do produtor rural individual se submeter à recuperação judicial. Hoje, tal modalidade empresarial representa no cenário mundial números elevados de tão importante nicho de nossa economia. Em razão dessa expressividade, surge um questionamento que vem dividindo o judiciário do país sobre a necessidade do registro prévio do produtor rural como empresário na respectiva Junta Comercial Estadual pelo prazo mínimo de dois anos, como exigido para os demais empresários, nos termos da lei 11.101/05.

Antecipamos não se tratar de resposta simples, uma vez que a interpretação do referido tema exige uma leitura harmônica do Código Civil, lei geral sobre questões de cunho empresarial, bem como da legislação específica, Lei de Recuperação Judicial e Falência, que disciplina o procedimento de registro e habilitação dos empresários no país.

Nos parece acertada a opção do legislador quando, no art. 971 do Código Civil de 2002 fez constar de maneira expressa e objetiva que: “Art. 971. O empresário, cuja atividade rural constitua sua principal profissão, pode, observadas as formalidades de que tratam o art. 968 e seus parágrafos, requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro.

Observa-se que, diferente dos demais regimes empresariais, ao empresário rural, foi concedida a faculdade do registro para constituição da empresa, e não sua obrigatoriedade. Digo isso porque a simples leitura do dispositivo nos apresenta a primeira ideia sobre a natureza do registro - declaratória, bem como sua distinção das sociedades irregulares, conhecidas por inexistência do mesmo registro.

Se a lei faculta o registro, em dispositivo próprio com clara distinção aos demais tipos de empresários, a primeira conclusão que podemos chegar é a de que o empresário rural exerce atividade empresarial independente da formalização. Se assim não fosse, o próprio dispositivo não o denominaria empresário, tão pouco permitiria a formalização no Registro Público de Empresas Mercantis, após reconhecimento do exercício anterior da mesma atividade. Quando o empresário rural faz seu registro na junta comercial está, portanto, declarando sua atividade lícita e regular, nos termos da lei.

O Código Civil conceitua ainda como empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. No caso do empresário rural individual, é inequívoca a existência do elemento da empresa necessário ao exercício empresarial, já que a lei conferiu tratamento diferenciado para essa categoria específica, razão pela qual nos parece mais acertada a conclusão que chegou a corrente doutrinária que apoia a natureza declaratória do registro.

É sabido ainda que tal concessão legislativa se deu por razões de política pública de fomentação do agronegócio, já que os registros comprovaram crescimento acelerado no setor, e a informalidade com que tais empresários constituíam suas empresas, seja por falta de estrutura pública dos municípios no país, seja pelo desconhecimento legal da categoria, em razão das especificidades do setor, não podendo ainda sim ficaram desamparadas pela lei.

Mas o cerne principal da questão, gira em torno da exigibilidade, ou não, do exercício da atividade pelo período de 2 anos após o registro na junta, para que seja possível sua submissão à recuperação judicial. Isso porque o art. 48 da lei 11.101/05 faz menção expressa de que poderá requerer recuperação judicial o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos.

E aqui, com a devida vênia dos entendimentos contrários, o comando é objetivo no sentido do exercício da atividade há mais de 2 (dois) anos, e não do registro na junta comercial há mais de 2 (dois) anos. Em outras palavras, considerada a faculdade que o Código Civil concedeu ao empresário rural para registrar-se ou não na junta comercial, não há se falar em extensão do comando legal como verdadeira cláusula de barreira para utilização do instituto.

E se analisarmos os objetivos da recuperação judicial, qualquer outra leitura afastaria por completo as chances de soerguimento do empresário rural individual. Isso porque, não se pode deixar de observar o efeito patrimonial dessa categoria empresarial, posto trata-se de patrimônio único, empresário e empresa. Se tal distinção fosse possível, não haveria sequer patrimônio a se submeter a recuperação, uma vez que, em regra, as dívidas anteriores ao registro não integram o pedido, comprometendo por completo a viabilidade do plano.

Outra não foi a conclusão que se chegou na Jornada de Direito Comercial, realizado pelo Conselho da Justiça Federal em 7/6/19, com aprovação dos seguintes enunciados sobre o tema:

“ENUNCIADO 96 – A recuperação judicial do empresário rural, pessoa natural ou jurídica, sujeita todos os créditos existentes na data do pedido, inclusive os anteriores à data da inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis.

ENUNCIADO 97 – O produtor rural, pessoa natural ou jurídica, na ocasião do pedido de recuperação judicial, não precisa estar inscrito há mais de dois anos no Registro Público de Empresas Mercantis, bastando a demonstração de exercício de atividade rural por esse período e a comprovação da inscrição anterior ao pedido”.

Admitir a legitimidade da atividade empresarial sem registro e a faculdade de fazê-lo, põe termo a qualquer dúvida sobre a exigibilidade dos dois anos de exercício de empresa com registro na junta comercial. Deve, portanto, ser reconhecidamente válido o período de atividade anterior ao registro, bem como a possibilidade de submissão do empresário rural individual a recuperação judicial e, para efeitos patrimoniais, a inclusão das dívidas contraídas nesse período no plano de recuperação judicial.

Outra conclusão levaria a negativa do benefício legal concedido ao empresário rural pelo Código Civil, bem como a negativa de vigência a Lei de Recuperação Judicial que não exclui nenhuma espécie de empresário e traz, expressamente, o requisito objetivo para o pedido.

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*Joana D’arc Amaral Bortone é sócia do escritório Trindade & Reis Advogados Associados.

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