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Por que tenho medo dos juízes e a MP 881/19?

O que se percebe é receio (rectius: medo) de parcela do Legislativo — e também do Executivo (por que não?) do Poder Judiciário, nomeadamente do que se refere a aplicação (interpretação) do direito posto.

7/8/2019

“Isso não significa, contudo, esteja eu a afirmar seja aético o direito moderno, senão que a sua é a ética da legalidade.”1

Adianta-se o final: Eros Roberto Grau, ministro aposentado do STF, na obra “Por que tenho medo dos juízes”, conclui que esse medo consiste na interpretação (aplicação) do direito, em procedimento por meio do qual os juízes buscam fazer justiça não raras vezes a despeito do legislado. Arremata, ao final do citado livro, a dizer que essa onda de ativismos, de usos exacerbados de princípios jurídicos em desfavor do pactuado, talvez acabe quando começarem a comprometer a fluência da circulação mercantil, a calculabilidade e a previsibilidade indispensáveis ao funcionamento do mercado2. Profético3, não?

Pois bem: em abril deste ano, foi adotada a MP 881, por meio da qual instituiu-se a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica no Brasil. O prazo final para conversão dessa MP em lei vence no próximo dia 28 de agosto.

De modo geral, os defensores de sua conversão acreditam que a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica no Brasil destravará a economia brasileira4, dará maior segurança jurídica aos investimentos no mercado, irá desburocratizar atividades empresariais, além de criar cerca de 4 milhões de empregos em até 15 anos e aumentar o PIB per capita em 0,7% por ano.5

Por outro viés, estudiosos e partidários advogam que essa MP é inconstitucional em diversos aspectos — material e formal, notadamente por cuidar de disciplinas atinentes a relações de consumo6 (ainda que haja menção expressa a afirmar, a priori, o contrário), para além de alegações de minirreforma no âmbito do direito do trabalho7 e de não haver urgência, conforme preleciona o artigo 62 da Constituição Federal, que justifique mudanças no Código Civil por meio de medida provisória.8

Importa a este estudo, com mais vagar, essa mensagem que parece querer dar a MP ao mercado e aos operadores do direito, por meio dos princípios constitucionais que informam a Ordem Econômica Brasileira, artigo 170 da Constituição Federal de 1988.9 Necessária é a ressalva, mesmo não sendo objeto de estudo deste estudo, de se saber se pode uma MP vedar interpretações dispostas na Carta de 1988.

Referente às alterações, procederam os redatores da MP da Liberdade Econômica, naquilo que aqui interessa, primeiramente a afirmar que é direito de toda pessoa, observado o disposto no artigo 170 da Carta da República, gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica (artigo 3.°, V, MP 881/19).

Registrou-se que havendo dúvida quanto à análise de direito civil, empresarial, econômico e urbanístico prevalecerá a autonomia da vontade, exceto se existir disposição legal a dizer o oposto. Ora, aí nada mais se está a fazer do que atestar a máxima de que a boa-fé se presume a má-fé se prova, amplamente aceita pelos tribunais brasileiros, notadamente pelo STJ em recurso repetitivo.10

No mesmo sentido de conceder direito à autonomia da vontade contratual, garantiu, no inciso VIII do citado artigo 3.°, que os negócios jurídicos empresariais serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes. É de se perguntar: seria possível, na linha da jurisprudência do STJ, decisões como a que reduz equitativamente (artigo 413 do Código Civil, v.g.), sem parâmetros mínimos (até mesmo por se está a referir a um conceito aberto), a incidência de cláusula penal em contratos interempresariais? Avante.

Seguindo na análise das alterações adotadas pela MP no campo dos contratos em geral, verificou-se mudança (ou intenção inócua, conforme Anderson Schreiber, por exemplo11) no artigo 421, caput, do Código Civil, que cuida da função social dos contratos.

Diz o artigo com a roupagem dada pela MP que a liberdade de contratar será exercida em consonância com a função social do contrato, e observado o disposto na Declaração de Liberdade Econômica.

Por ser esse conceito vago, impreciso, típico da espécie normativa dos princípios jurídicos, parece mesmo que a preocupação do redator da MP foi com a limitação de interpretações que não prestigiem, pelo Poder Judiciário, os princípios da livre iniciativa e do exercício de atividades econômicas.

Também em similar esteira foi o acréscimo do parágrafo único ao artigo 421 do CC, tendo instaurado, ao fim e ao cabo, o princípio da intervenção mínima do Estado na atividade econômica.

No artigo 423 do Código Civil, de sua vez, foi preceituado que, a despeito da posição que ocupe no contrato de adesão, o aderente sempre terá posição de prevalência interpretativa. Essa interpretação pró-aderente em contratos que não são de consumo (para estes existe a previsão normativa do artigo 54 do CDC) o coloca em posição privilegiada em contratos como, por exemplo, de franquia, de locação empresarial, de seguro empresarial e de transporte de cargas. Aplauso igual não mereceu a redação do artigo parágrafo único do artigo 423 do Código Civil, que consignou que, nos contratos não atingidos pelo caput (de adesão?), exceto se houver disposição de maneira distinta prevista em lei, a dúvida na interpretação beneficiará a parte que não redigiu a cláusula controvertida. Como assim?

Sobre esse confuso texto normativo, pode-se chegar a pensar na situação prática de escritórios de advocacia, em defesa de interesses de seus clientes no que diz respeito a minutas de contratos empresariais, terem receio de redigirem as cláusulas nesse sentido, sempre a preferirem, por óbvio, que a outra parte o faça. E mais: haverá preocupação em guardar, e.g., o e-mail que a parte (ou o seu patrocinador) recebeu com a minuta: precaução para o caso de futuramente ter de discutir tal cláusula de contrato no Poder Judiciário.

Por fim, mas não menos importante, houve inserção, no Código Civil, dos artigos 480-A e 480-B, atinentes, como bem se sabe, ao regime de possibilidade (dever) de revisão dos contratos (o capítulo do Código Civil cuida, a bem da verdade, de extinção dos contratos na seção resolução por onerosidade excessiva).

O artigo 480-A versou ser lícito as partes contratantes estabelecerem parâmetros objetivos para a interpretação de requisitos ou de resolução do pacto contratual. É de se perguntar, de bate-pronto, se não já era possível, sob a égide do Código Civil vigente, traçar tais critérios objetivos.

O que seriam os considerandos de um contrato senão técnica de exposição do contexto em que ele foi elaborado, somado a instrumento de interpretação, que deverá guiar, evidentemente, os seus hermeneutas?

Já o 480-B prescreveu que nas relações interempresariais deve-se presumir a simetria dos contratantes e observar a alocação de riscos por eles definida. Ora, se o animus do enunciado normativo é reduzir hipótese de revisão de contrato, de participação do Poder Judiciário quase que como um órgão regulador: por que da expressão alocação de riscos, afim dos estudiosos da law and economics?

Demais disso: existiria mesmo a necessidade de dizer que nas relações interempresariais (ora, não são relações jurídicas de consumo, permita-se a insistência) deve-se presumir a igualdade dos contratantes?

Em linhas conclusivas, portanto, o que se percebe é receio (rectius: medo) de parcela do Legislativo — e também do Executivo (por que não?) do Poder Judiciário, nomeadamente do que se refere a aplicação (interpretação) do direito posto.

Por conseguinte, por meio dessa interferência é que se tem visto, por parte dos membros do Poder Judiciário, movimentos como o de ativismo judicial e, ademais, de dirigismo contratual em contratos notadamente entabulados entre empresas plenamente capazes dos pontos de vista econômico, informacional e jurídico. É precipuamente aí que reside o medo.

Veja: se a intenção com a adoção desta MP é tão somente de desburocratizar repartições a fim de permitir caminho livre para o desenvolvimento econômico do Brasil, geração de empregos, aumento do PIB com o empoderamento dos micro e pequenos empresários, o que se fez por meio, em grande medida, da vedação ao leque de interpretações que não privilegiam os comandos de livre iniciativa e exercício da atividade econômica, é de se festejar, com muita cautela, os resultados projetados pelo Ministério da Economia (acima exposto).

E que não se perca de vista, no campo hermenêutico, como ensina o jurista e poeta alemão Peter Häberle, que se a poesia é o campo da abertura no que é pertinente as possibilidades interpretativas, o direito, muito ao revés, deve respeito a opção do legislador e, por corolário, à moldura posta12. Por ser assim, roga-se, no que tange às pretensões desta MP, que não mexa — ainda que só interpretativamente — com os vulneráveis13 e com os hipervulneráveis14 das relações jurídicas de consumo e de trabalho, pois em um país sério a força do povo é medida pelo bem-estar dos fracos15.

___________

1 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes (a interpretação/aplicação do direito e os princípios). 6. ed., São Paulo: Malheiros Editores. 2013, p. 18.

2 Idem, p. 139.

3 “Só os profetas enxergam o óbvio”. In: RODRIGUES, Nelson: O gênio óbvio. Disponível aqui. Acesso em 3 de agosto de 2019.

4 Governo estima 3,7 milhões de empregos com nova MP da Liberdade Econômica. Disponível aqui. Acesso em 2 de agosto de 2019.

5 SPE divulga estudo sobre o impacto potencial da MP da Liberdade Econômica. Disponível aqui. Acesso em 2 de agosto de 2019.

6 Nesse sentido: LÔBO, Paulo Luiz Netto. Inconstitucionalidades da MP da "liberdade econômica" e o Direito Civil. Disponível aqui. Acesso em 2 de agosto de 2019.

7 Jabuti contrabandeia minirreforma trabalhista na MP da liberdade econômica. Disponível aqui. Acesso em 2 de agosto de 2019.

8 Nesse sentido: TARTUCE, Flávio. A MP 881/19 (liberdade econômica) e as alterações do Código Civil. Primeira parte. Disponível aqui. Acesso em 2 de agosto de 2019.

9 Ivo Gico Júnior afirma não haver nenhuma criação ou edição de institutos jurídicos com a edição da MP 881/19: houve tão somente, no entender dele, vedação de interpretações aventureiras (protecionistas) por parte do Poder Judiciário no intuito de ser regulador de contratos. In: MP da Liberdade Econômica: Avanço ou Retrocesso? Disponível aqui. Acesso em 2 de agosto de 2019.

10 STJ. Recurso Repetitivo. Tema 243. (REsp 956.943/PR, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Rel. p/ Acórdão Ministro João Otávio de Noronha, Corte Especial, julgado em 20/8/14, DJe 1/12/14).

11 Assim: "Alterações da MP 881 ao Código Civil - Parte I. Disponível aqui. Acesso em 2 de agosto de 2019.

12 HABERLE, Peter. Um diálogo entre poesia e direito constitucional. Peter Haberle e Héctor López Bofill; tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. — São Paulo: Saraiva, 2017 (Série IDP: linha direito comparado), p. 24.

13 MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Código de Defesa do Consumidor: o princípio da vulnerabilidade no contrato, na publicidade e nas demais práticas comerciais. Porto Alegre: Síntese, 1999. Ainda: MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.

14 SCHMITT, Cristiano Heineck. Consumidores hipervulneráveis: a proteção do idoso no mercado de consumo. São Paulo: Atlas, 2014.

15 Idem, p. 16.

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*Jonas Sales Fernandes é diretor secretário-geral da Comissão de Contratos e Responsabilidade Civil da OAB/DF. Advogado sócio da Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados.

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