É bastante comum conhecermos alguém que se deparou com um ato de improbidade cometido por outras pessoas e, mesmo sabendo ser ilícito, preferiu manter o silencio como forma de auto preservação, seja para não “se queimar” com os colegas de trabalho, agentes da ilicitude, seja para não ter problemas futuros com explicações ou burocracias. Será mesmo que esta pessoa, mesmo não tendo agido diretamente com a ilicitude, está isenta de culpabilidade, tendo em vista sua ignorância consciente?
A teoria da cegueira deliberada, trazida pela doutrina da Suprema Corte Norte Americana como “Willful Blindness Doctrine”, e conhecida também por Teoria das Instruções do Avestruz, Evitação da Consciência ou Ato da Ignorância Consciente, vem sendo amplamente estudada e aplicada através das equipes de compliance das empresas, que visam (i) evitar que atos de improbidade empresarial aconteçam e, se acontecer, (ii) possa identificar com maior facilidade todos os partícipes através de delações, observando o elemento subjetivo, dolo ou culpa.
Sua aplicabilidade se dá a partir do momento em que um agente, sozinho ou em concurso, pratica um ato improbo, e
Nesse sentido, a jurisprudência entende que o terceiro, sabendo ou podendo saber da ilicitude, responde por apoiar o resultado útil do crime. Veja:
PENAL. CONTRABANDO. MEDICAMENTOS. SUFICIÊNCIA DE PROVAS. CONDENAÇÃO MANTIDA. DOLO. TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA. AJG. EXECUÇÃO.
1. O Acusado assumiu o risco do resultado delitivo, não podendo, por este motivo, ser afastada a sua responsabilidade criminal. 2. Todo o conjunto probatório leva a crer que o réu poderia prever e conscientemente criou o risco de produzir um resultado típico. Eventual ignorância voluntária quanto ao conteúdo da carga transportada não exime o réu da responsabilidade pela prática do delito, eis que anuiu na produção do resultado, o qual podia claramente prever. Nessa seara, pertinente a construção jurisprudencial e doutrinária do direito anglo-saxão no que se refere à teoria da cegueira deliberada (willfull blindness doctrine). (TRF-4 – ACR: 50107030820144047002 PR 5010703-08.2014.4.04.7002, desembargadora revisora Claudia Cristina Cristofani, data de julgamento 22/1/19, Sétima Turma)
APELAÇÃO CRIME. CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO. RECEPTAÇÃO QUALIFICADA. ART. 180, §§1º E 2º, DO CÓDIGO PENAL. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. ELEMENTO SUBJETIVO. PROVA. TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA. INCIDÊNCIA. CONDENAÇÃO MANTIDA. A demonstração acerca da prévia ciência da origem ilícita do objeto, imprescindível à caracterização do delito de receptação, pode ser obtida mediante a verificação de elementos circunstanciais que revestem o fato e o comportamento do agente. No caso dos autos, as provas colhidas durante a instrução demonstram a materialidade e a autoria do delito de receptação qualificada. Revelam que o réu expos à venda, no exercício de atividade comercial exercida em domicílio -, mercadoria que havia sido subtraída em momento anterior, tendo ciência a respeito de sua procedência espúria. Aplica-se, à espécie, a teoria da cegueira deliberada, na qual a intencional ignorância acerca da ilicitude e da gravidade do fato não pode elidir a responsabilidade penal do sujeito ativo. Presença do dolo eventual como elemento subjetivo do tipo, na medida em que, ainda que não almejasse diretamente a prática de receptação, certo é que agiu de modo a admitir a possibilidade concreta e muito provável, diante das circunstâncias que envolveram toda a conjuntura fática. Inviável, assim, o acolhimento do pleito absolutório. (...) APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação crime 70079622791, oitava Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, relator des. Ochoa Piazzeta, julgado em 30/1/19.)
De fato, a conduta criminosa não pode valer a pena, e o silencio, a cegueira deliberada de terceiros, corrobora para que o ato seja consumado em sua perfeição.
Sendo assim, as áreas de compliance possuem a missão de divulgar políticas para combater a errônea cultura do “não vou me meter para não sobrar para mim”, pois caso assim seja, na verdade vai sobrar. Ao invés de punir, é mais interessante evitar o ato delitivo.
Com isso, práticas de delação entre os próprios funcionários (incluídos os sócios e administradores) se torna mais factível, prevenindo ou ao menos dificultando a conduta criminosa, uma vez que o terceiro, que se cega deliberadamente, se torna culpável por coniver com o ato, o que por si só coíbe a ação ou omissão delitiva.
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*Diogo de Oliveira é advogado do escritório Rocha e Barcellos Advogados.