Recentemente, o juízo da 10ª Vara Federal Criminal do Distrito Federal decretou a prisão temporária de quatro pessoas que seriam membros da “organização criminosa responsável pelas invasões realizadas na conta do aplicativo de comunicação Telegram vinculada ao celular utilizado pelo Exmo. Ministro da Justiça e Segurança Pública Senhor Sergio Fernando Moro” e de outras autoridades, cujas condutas configurariam “possível crime do art. 1º, § 1º cc. artigo 2º da lei 12.850/13 (integrar organização criminosa), 154-A caput do Código Penal (invasão de dispositivo informático) e artigo 10 da lei 9.296/96 (realização de interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei), deflagrando, assim, a operação Spoofing.
Não se questiona neste artigo que os autores deste crime deverão ser investigados, processados e, se condenados, punidos, na forma da lei. O que propomos, contudo, é uma reflexão jurídica sobre alguns aspectos da decisão, considerando, evidentemente, apenas aquilo que foi apurado até agora.
O primeiro deles diz respeito à questão do cabimento ou não da prisão temporária, medida cautelar instituída pela lei 7.960/89 para tutelar a liberdade de pessoas investigadas pela prática de determinados crimes previstos num rol taxativo (art. 1º, inciso III).
Há, já aqui, um primeiro problema: nenhum dos ilícitos penais indicados no decreto prisional está contemplado naquele rol.
Caberia então uma interpretação extensiva da lei para considerar que o delito de pertinência à organização criminosa equivalha ao de “quadrilha ou bando” (atualmente associação criminosa), disposto na alínea l) do aludido inciso III, para justificar a prisão? A resposta nos parece negativa. Afinal, quando quis o legislador alterar a lei da prisão temporária o fez expressamente, acrescentando, por exemplo, na sua restrita relação, os crimes da Lei de Terrorismo (Lei 13.260/16).
É bem verdade que isso acaba gerando uma desproporção jurídica, na medida em que a prisão temporária fica sendo possível ao crime menos grave (quadrilha ou bando/associação criminosa), mas, por outro lado, não pode valer para os que não se inserem naquela estrita relação, ainda que mais graves, como o de integrar organização criminosa e o de constituir ou integrar milícia privada (adicionado ao Código Penal pela lei 12.720/12 sem que promovesse alterações à lei da prisão temporária1).
Uma interpretação diferente, contudo, violaria, a nosso ver, o princípio da legalidade (CF, 5º, II). Daí porque o decreto de prisão temporária que se paute em crimes não previstos no rol do inciso III do art. 1º da aludida lei, tal qual o que aqui examinamos, “é completamente ilegal, devendo ser objeto de relaxamento”2.
A segunda reflexão que propomos diz respeito ao enquadramento, pelo decreto prisional, da conduta criminosa contemplada pelo tipo penal do art. 10 da lei de interceptação telefônica.
Quanto a isto, importante ressaltar que em 2012 ocorreu uma alteração ao Código Penal, promovida pela lei 12.737, que ficou conhecida nacionalmente como lei Carolina Dieckmann, que criou o art. 154-A (invasão de dispositivo informático) para punir a conduta de quem “Invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita”, que é exatamente o que se apura no bojo daquela investigação.
Mas, no fim das contas, partindo da premissa de que não poderia ocorrer punição por ambos os delitos, sob pena de violação ao princípio do non bis in idem (não punir mais de uma vez pelo mesmo fato), a ação dos hackers configuraria qual desses dois crimes?
Luiz Flávio Gomes e Silvio Maciel trazem uma reflexão interessante sobre a matéria. Para estes renomados autores, “se o infrator intercepta comunicação telefônica responde pelo delito do art. 10 da presente lei. Se, ao contrário, invade computador alheio e obtém acesso à conversa já realizada e armazenada no computador, comete o delito do art. 154-A e § 3º do CP. Com esse novo tipo penal, a lei agora protege expressamente tanto a comunicação que está acontecendo quanto a que já ocorreu e está armazenada em um computador”3.
Em outras palavras, nesta linha de pensamento, é o delito do art. 154-A do CP que resguarda os dados pretéritos armazenados no dispositivo informático alheio. Já o tipo do art. 10 da lei 9.296/96 visa a assegurar a integridade das comunicações telefônicas em tempo real.
De acordo com este entendimento, portanto, a conduta investigada somente infringiria a norma prevista no art. 154-A do CP, havendo, assim, uma inadequação típica para a punição de quem praticou estes fatos pelo crime da lei de interceptação telefônica.
Há, por fim, uma derradeira, mas não menos importante, reflexão. Os suspeitos poderiam responder pelo crime de integrar organização criminosa? Entendemos que não. É que, consoante o § 1º do art. 1º da lei 12.850/13, só se pune por pertinência à organização criminosa a associação de quatro ou mais pessoas para a prática “de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou sejam de caráter transnacional”.
Com efeito, nenhum dos crimes até aqui investigados na Operação Spoofing tem pena superior a 4 (quatro) anos (art. 154-A, §3º, c/c §4º, do CP, tem pena máxima de três anos e seis meses de reclusão e art. 10 da lei de interceptações telefônicas tem pena de até quatro anos de reclusão) ou mesmo possuem caráter transnacional, de modo que, a toda evidência, não poderiam embasar a responsabilização por pertinência à organização criminosa.
Nesse contexto, entendemos que, pelo que consta na referida decisão, a única norma penal potencialmente violada foi aquela prevista no art. 154-A do Código Penal, não cabendo, assim, falar nos crimes de interceptação ilegal de comunicações nem de integrar organização criminosa, sendo, ademais, ilegal a prisão temporária decretada por aquela juízo federal por ausência de previsão legal (art. 1º, III, da lei 7.960/89).
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1 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada: volume único. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 667.
3 GOMES, Luiz Flávio; MACIEL, Sílvio. Interceptação Telefônica: Comentários à Lei 9.296, de 24.07.1996. Revista dos Tribunais, 2013, p. 198.
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*Fabrízio Feliciano é advogado criminalista.