Comemoração dos dez anos da Lei de Propriedade Industrial: contradição diante da pirataria dos dias atuais?
Marcelo Inglez de Souza*
No caso, pode-se afirmar com entusiasmo que o balanço é positivo. Em que pesem deficiências pontuais, (como, por exemplo, a impossibilidade de registro de marcas sonoras e olfativas), há hoje um consenso entre os profissionais da área de que houve melhoras substanciais nos direitos relativos à propriedade industrial, tendo a Lei nº 9.279/96 adequado o sistema brasileiro a todos os parâmetros previstos nas convenções e tratados internacionais sobre a matéria.
Mas, principalmente para aqueles que não têm intimidade com a área de propriedade industrial, a afirmação de que houve melhora do sistema legal pode parecer contraditória, em vista do crescente volume de produtos piratas com que nos deparamos atualmente. Afinal, se a legislação melhorou, por que a pirataria continua a crescer?
Para responder a essa pergunta, é necessário tecer breves considerações sobre o histórico de desenvolvimento da propriedade industrial no Brasil até a promulgação da Lei nº 9.279/96, de modo a compreender as circunstâncias em que nos encontramos hoje. De plano, pode-se adiantar que hoje a causa do problema não é estritamente legal. A legislação melhorou sim, mas isso ainda não é suficiente. É necessário que ela tenha eficácia, o que depende do empenho de todas as esferas da sociedade.
Com efeito, a proteção da propriedade industrial sempre esteve intimamente ligada às linhas políticas e econômicas desenvolvidas na sociedade brasileira. Como reflexo da colonização exploratória portuguesa (que se contrapõe à colonização de desenvolvimento e povoação feita pelos ingleses na América do Norte), no Brasil as políticas governamentais de modernização do setor industrial sempre foram implementadas de forma aleatória e imediatista, resultando em uma industrialização incompleta e tardia.
Não é demais recordar que, num passado recente, a política industrial do Brasil era voltada apenas ao aproveitamento de tecnologias já existentes, com a adoção de barreiras alfandegárias à entrada de produtos estrangeiros, que, mais desenvolvidos, ensejavam concorrência e desequilíbrio no mercado interno. Tinha-se aqui uma economia fechada, protecionista, inibidora da concorrência, que não incentivava investimentos financeiros ou esforços intelectuais para desenvolvimento e melhoria da indústria nacional.
Neste contexto, sempre houve também natural despreocupação no Brasil quanto à proteção da propriedade industrial. A industrialização incompleta e tardia, baseada no aproveitamento de tecnologias já existentes, não trazia qualquer incentivo à criação e, conseqüentemente, à proteção das concepções industriais. Como resultado, a legislação nesta área era falha, muito aquém da importância da matéria.
Com a abertura da economia nos anos noventa e entrada de produtos importados no mercado nacional, verificou-se, contudo, que a indústria brasileira não subsistiria por muito tempo, se não mudasse sua premissa rudimentar de conformismo com o uso tecnologias passadas, abandonadas por outros países. Tornou-se necessário que o Brasil buscasse seu desenvolvimento no campo industrial, para se manter competitivo diante do fenômeno da globalização.
De fato, é a partir da esfera industrial que resultam as diretrizes básicas da economia de um país. A capacidade competitiva dos Estados está hoje intrinsecamente ligada à evolução tecnológica destes entes, à capacidade das suas indústrias de potencializar os níveis de produção e agregar valor aos seus produtos, para que possam enfrentar a acirrada concorrência do mercado internacional.
Assim, superada a fase inicial de abertura da economia brasileira e exposição ao mercado internacional, no campo jurídico foi necessário fomentar a proteção à propriedade industrial, até então menosprezada por um contexto político-econômico retrógrado, alheio à sua importância. A propriedade industrial não prosperaria sem que lhe fosse atribuída proteção adequada, que garantisse aos seus titulares a devida compensação por seus esforços, incentivando assim a continuidade de suas atividades.
Nesse contexto, apontaram no Brasil sinais de consciência da importância das concepções industriais. Seguindo as diretrizes de tratados internacionais, a Lei nº 9.279/96 foi promulgada, revitalizando os direitos relativos à propriedade industrial em nosso país.
Contudo, como dissemos, não basta modificar a legislação. É necessário que os direitos conferidos pela lei sejam eficazes, contando com instrumentos que permitam seu exercício pleno. Assim é que, atualmente, não se discute mais o reconhecimento dos direitos de propriedade industrial, mas sim a necessidade em se atribuir eficácia a eles.
Hoje nosso desafio não é mais estabelecer direitos à propriedade industrial, mas sim fazer com que eles sejam respeitados.
Não se trata de um problema que afeta apenas o Brasil. A preocupação em se atribuir eficácia aos direitos de propriedade industrial revela-se em
Já no plano legal, muitos países promovem atualmente alterações em suas legislações processuais, justamente para prever medidas específicas de proteção e eficácia dos direitos de propriedade industrial. Exemplo típico pode ser extraído da Diretriz nº 48/2004 promulgada pela Comunidade Européia, que impõe aos seus Estados membros a adoção de medidas processuais essenciais à proteção e eficácia dos direitos em questão.
E é nesse ponto que podemos ter orgulho de nossa legislação, afirmando novamente que o balanço da Lei nº 9.279/96 é positivo. Enquanto alguns países de primeiro mundo ainda estão adequando sua legislação para regular, por exemplo, o cabimento de medidas liminares na proteção dos direitos de propriedade industrial, no Brasil todas as medidas processuais consideradas essenciais à eficácia desses direitos já se encontram presentes e aptas a serem aplicadas.
Isso mesmo. O Brasil conta com todas as medidas processuais necessárias à proteção e eficácia dos direitos de propriedade industrial. A comparação com a diretriz ora implementada pela Comunidade Européia não deixa dúvida. Nenhuma medida essencial escapa à nossa legislação. Quando não previstas na própria Lei nº 9.279/96, são facilmente encontradas na sistemática processual brasileira. Enfim, pode-se afirmar com orgulho que não há aqui qualquer omissão, atraso ou "subdesenvolvimento" do Brasil. Nossa legislação está em plena consonância com os parâmetros internacionais mais atuais de proteção e eficácia dos direitos de propriedade industrial.
Mas então voltamos aqui à nossa pergunta inicial: se a legislação é adequada, por que a pirataria continua a crescer? Por que há dificuldade em se atribuir eficácia aos direitos de propriedade industrial?
Como dissemos nosso problema não é estritamente legal. A par de deficiências pontuais que sempre poderão ser encontradas e corrigidas na legislação, hoje no Brasil a dificuldade em se atribuir eficácia aos direitos de propriedade industrial ainda decorre, sobretudo, da falta de consciência da importância desses direitos. São resquícios do menosprezo que imperava no passado.
Na esfera administrativa, por exemplo, a falta de consciência resta clara diante da pouca importância dada ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) ao longo dos últimos anos. Não obstante os esforços honrosos daqueles que lá trabalham, faltou consciência do governo na definição de orçamento e estruturação do INPI, os quais sempre ficaram aquém dos patamares necessários ao nível de desenvolvimento tecnológico que se espera e se promete ao país. Atualmente, o INPI ainda batalha por sua autonomia econômica e financeira, não obstante a Lei nº 9.279/96 já tenha lhe conferido essa prerrogativa há uma década.
Já na esfera judicial, apesar das garantias e instrumentos que se encontram a disposição, bem como da louvável iniciativa de alguns tribunais em dar tratamento diferenciado à matéria, temos ainda magistrados que toleram ilícitos aos direitos de propriedade industrial, como se fossem questões de menor importância. Tome-se como exemplo as decisões que – pasmem – ainda negam a concessão de medidas liminares para cessação imediata de violação reconhecida, sob o argumento retrógrado e antijurídico de que o ilícito pode ser indenizado ao final do processo. Um verdadeiro absurdo, se se considerar a velocidade do desenvolvimento tecnológico atual, o tempo de duração de um processo, as incertezas que giram em torno do recebimento de uma indenização e, sobretudo, a premissa basilar, de que o processo, como instrumento que é, deve garantir o pleno exercício do direito e não sua mera reparação.
Por fim, também na esfera civil é preciso que haja mudança de conceito em relação ao ilícito de propriedade industrial. Ele não pode mais ser visto como uma infração menos importante que a infração à propriedade material. Diga-se que hoje no Brasil a invasão de um imóvel tem invariavelmente maior reprovação social do que a usurpação de uma marca ou a reprodução ilícita de um produto patenteado (para não se mencionar os CDs de software e música piratas, que apesar de constituírem expressa violação de direitos autorais, são corriqueiramente tolerados pela população). A par dos problemas econômico-sociais que indiscutivelmente influenciam a questão, fato, contudo, é que todos os ilícitos aqui mencionados caracterizam, igualmente, violação à propriedade. Devem, portanto, ser reprovados nos mesmos moldes, sem distinção por se tratar de propriedade material ou propriedade industrial.
E para aqueles que ainda acham que a propriedade material tem importância econômica e social maior do que a propriedade industrial, pensem no valor econômico representado por marcas como Coca-Cola, Nike, IBM ou Microsoft, bem como na relevância social que gira em torno de patentes de sistemas alternativos de combustível ou de invenções no campo da Biotecnologia.
Em suma, podemos nos orgulhar do sistema legal de garantias e instrumentos de proteção dos direitos de propriedade industrial no Brasil, sendo os dez anos da Lei nº 9.279/96 sim motivo de comemoração. Contudo, olhando para o futuro, ainda é necessário tomar maior consciência da importância desses direitos, acabando de vez com o menosprezo que imperou em nosso passado. Para manter-se competitivo no mercado internacional, o Brasil deve garantir a integridade das concepções industriais. Instrumentos legais para tanto existem; é preciso apenas consciência para implementá-los e fazê-los valer. Estando resguardada, a propriedade industrial há de prosperar, impulsionando o crescimento de nosso país.
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*Advogado do escritório Demarest e Almeida Advogados