Lei nº 4.117, de 27.6.2003, do estado do Rio de Janeiro - Tributação da extração do petróleo - Os fins justificam os meios?
Emir Nunes De Oliveira Neto*
A discussão acerca da necessidade de reforma de nosso sistema tributário parece ter atingido a maturidade, uma vez que há consenso na sociedade brasileira de que a carga tributária de 35,86% ¹, verificada atualmente, representa indiscutível entrave ao desenvolvimento econômico de nosso País.
Esse debate, reflexo do amadurecimento das instituições do regime democrático brasileiro, precisa ser aproveitado por nossos políticos para a construção de um sistema contributivo que proporcione a segurança jurídica necessária para a realização de investimentos em nosso País. Isso porque a inclusão definitiva do Brasil na comunidade econômica internacional somente ocorrerá por meio da criação de regras que proporcionem um ambiente de certeza.
A Lei nº 4.117/03 estabelece a incidência do ICMS sobre a operação de extração de petróleo. Ocorre que essa cobrança não encontra respaldo na matriz constitucional desse imposto, uma vez que o ICMS incide sobre operações relativas à circulação de mercadorias, o que não se verifica na hipótese em exame.
Inicialmente, é de se ressaltar que a Lei nº 4.117/03 determina que o extrator do petróleo será o contribuinte do ICMS. Note-se que, na fase de extração, a União Federal ainda é a proprietária do petróleo. Por esse motivo, o Estado do Rio de Janeiro não poderia validamente onerar esse mineral, sob pena de violar o artigo 150, inciso VI, alínea “a” da Constituição Federal, que estabelece a imunidade recíproca dos entes da Federação.
De outro modo, poder-se-ia alegar que o extrator é, na verdade, responsável tributário, tendo em vista que a sua obrigação decorre de disposição expressa de lei, nos exatos termos do artigo 121, inciso II, do Código Tributário Nacional. Saliente-se, no entanto, que a definição de contribuinte é matéria relegada à lei complementar, conforme o disposto no artigo 146, inciso III, alínea “a” da Constituição Federal. Por sua vez, os artigos 4, 5 e 6 da Lei Complementar nº 87, de 13.9.1996 (“LC 87/96”) -- que tratam do sujeito passivo da obrigação tributária, não definem o extrator como pessoa obrigada ao pagamento do ICMS. Dessa forma, fica claro que a Lei nº 4.117/03 instituiu hipótese de contribuinte sem respaldo na legislação complementar aplicável, violando, de forma explícita, os princípios gerais que informam o Sistema Tributário Nacional.
O Supremo Tribunal Federal já declarou que a definição de contribuintes incumbe à lei complementar, representando uma garantia constitucional dos contribuintes, como se pode constatar do seguinte trecho da decisão proferida pela Segunda Turma no julgamento do Recurso Extraordinário nº 200972/PR:
“... No embate diário estado/contribuinte, a carta política da república exsurge com insuplantável valia, no que, em prol do segundo, impõe parâmetros a serem respeitados pelo primeiro. Dentre as garantias constitucionais explícitas, e a constatação não exclui o reconhecimento de outras decorrentes do próprio sistema adotado, exsurge a de que somente à lei complementar cabe "a definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes" - alínea "a" do inciso III do artigo 146 do Diploma Maior de 1988. Imposto de Renda – Retenção na Fonte – Sócio Cotista. A norma insculpida no artigo 35 da Lei nº 7.713/88 mostra-se harmônica com a Constituição Federal quando o contrato social prevê a disponibilidade econômica ou jurídica imediata, pelos sócios, do lucro líquido apurado, na data do encerramento do período-base. Nesse caso, o citado artigo exsurge como explicitação do fato gerador estabelecido no artigo 43 do Código Tributário Nacional, não cabendo dizer da disciplina, de tal elemento do tributo, via legislação ordinária. Interpretação da norma conforme o Texto Maior. Imposto de Renda – Retenção na fonte - Acionista...² (não grifado no original).
Como se não bastasse, cabe assinalar que tampouco há circulação econômica ou jurídica que dê ensejo à incidência do imposto na extração do petróleo. O extrator, na qualidade de autorizado ou de concessionário da União Federal, detém tão somente o direito de explorar e de aproveitar as jazidas de petróleo. Todavia, não há qualquer mudança de titularidade do petróleo nesse momento.
A própria Lei nº 4.117/03 corrobora esse entendimento ao estabelecer a passagem pelos pontos de medição da produção como aspecto temporal da hipótese de incidência do imposto, e ao definir esse momento como o da assunção da propriedade do volume de produção pelo extrator. Com efeito, os eventos ocorridos anteriormente à chegada do petróleo aos pontos de medição afetariam a União Federal, e não o extrator.
A Constituição Federal, por sua vez, somente garante ao concessionário a propriedade do produto da lavra quando do término da extração, ou seja, em momento posterior à conclusão de tal fase. Nesse mesmo sentido, o artigo 26 da Lei 9.478, de 6.8.1997 (“Lei nº 9478/97”), define que a conferência da propriedade do petróleo ao concessionário ocorrerá após a extração desse recurso. Desse modo, fica demonstrado que a extração por si só não caracteriza a operação de circulação econômica ou jurídica prevista pela Constituição Federal. Aliás, nos termos do artigo 3º, inciso IV do Decreto nº 2.709, de 3.8.1998 - que regulamenta algumas das disposições da Lei 9478/97, a transferência da propriedade sobre o volume de produção fiscalizada só ocorre com a passagem do petróleo produzido pelos pontos de medição propostos pelo concessionário e aprovados pela Agência Nacional do Petróleo - ANP.
Frise-se, ainda, que a mera circulação física de mercadorias não é fato gerador do ICMS. Transcrevemos as seguintes decisões proferidas pela Suprema Corte de nosso País que corroboram esse entendimento:
(i) “I.C.M. Não constitui fato gerador do I.C.M. O deslocamento da cana própria do estabelecimento produtor para o industrial da mesma empresa, por não haver no caso, circulação econômica, e jurídica, mas tão-somente física. Precedentes do S.T.F.. Representações n.s 1181, Rel. Min. Rafael Mayer, 1292, Rel. Min. Francisco Rezek e 1355, Min. Oscar Correa. Recurso Extraordinário não conhecido.” ³ (não grifado no original); e
(ii) “O simples deslocamento físico da mercadoria pelo seu proprietário, sem circulação econômica ou jurídica, não legitima a incidência do ICM. RE conhecido e provido.” 4 (não grifado no original).
Além disso, cumpre mencionar que a incidência do ICMS nos moldes atualmente previstos em nossa Constituição pressupõe a existência de um ato de mercancia. Na operação de extração de petróleo, não há qualquer relação jurídica subjacente de natureza mercantil entre a União Federal e o extrator.
A natureza da relação existente entre a União Federal - detentora do monopólio de lavra das jazidas de petróleo - e o extrator - brasileiro ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, detentor de autorização ou de concessão para desenvolvimento de tal atividade - não seria de cunho comercial. Na realidade, são normas de direito público - especificamente de natureza administrativa - que regem direitos e obrigações correlatas.
O condicionamento da cobrança válida do ICMS à existência de uma relação jurídica de natureza comercial também já foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, conforme se depreende da decisão transcrita abaixo:
“Recurso Extraordinário. Constitucional. Tributário. Importação de bem por sociedade civil para prestação de serviços médicos. Exigência de pagamento do ICMS por ocasião do desembaraço aduaneiro. Impossibilidade.
1. A incidência do ICMS na importação de mercadoria tem como fato gerador operação de natureza mercantil ou assemelhada, sendo inexigível o imposto quando se tratar de bem importado por pessoa física.
2. Princípio da não-cumulatividade do ICMS. Importação de aparelho de mamografia por sociedade civil, não contribuinte do tributo. Impossibilidade de se compensar o que devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro estado ou pelo distrito federal. Inexistência de circulação de mercadoria. Não ocorrência da hipótese de incidência do ICMS. Recurso Extraordinário não conhecido.”5 (não grifado no original).
Sendo assim, não resta a menor dúvida de que a Lei nº 4.117/03 não se coaduna com a nossa Constituição Federal e que, por esse motivo, não resistirá ao controle de constitucionalidade, difuso ou concentrado6 , a ser exercido pelo Supremo Tribunal Federal.
Todavia, resta ainda indagar o porquê da edição dessa lei, flagrantemente inconstitucional, no momento em que se discute a reforma tributária no Congresso Nacional e a divisão de receitas entre os diversos entes da Federação.
Nesse caso, a resposta é fornecida pelo exame da própria Constituição Federal e da jurisprudência cristalizada por nossos Tribunais Superiores, no tocante às operações envolvendo petróleo e seus derivados.
Com efeito, a alínea “b”, do inciso X, do parágrafo 2º, do artigo 155 da Constituição Federal estabelece que o ICMS não incidirá sobre operações que destinem petróleo e seus derivados - lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos - a outros Estados. Verifica-se, assim, que essa imunidade tributária impossibilita a cobrança pelo Estado do Rio de Janeiro - maior produtor nacional de petróleo - do ICMS nas operações interestaduais envolvendo esse recurso.
Por outro lado, os Tribunais Superiores de nosso País reconheceram a validade da chamada “substituição tributária para frente” que, em última instância, possibilitou a tributação de tais operações interestaduais, por meio da atribuição de competência ao Estado de destino. Desse modo, o Poder Judiciário chancelou a possibilidade de o ICMS ser validamente exigido em operações interestaduais.
Considerando essa situação, não fica difícil entender o motivo que deu ensejo à edição da Lei nº 4.117/03. A explicação não é outra senão esta: a franca disputa por receita do maior Estado produtor de petróleo do Brasil, que se vê incapaz de exigir o ICMS nas operações interestaduais - em virtude da imunidade - e, por outro lado, observa os demais Estados tributando tais operações por meio da aplicação da “substituição tributária para frente”. Por meio da promulgação da Lei nº 4.117/03, o Estado do Rio de Janeiro está tentando alterar a distribuição dessa receita e forçar uma negociação com a União Federal e os demais Estados.
Ocorre que o Estado do Rio de Janeiro jamais poderia editar uma norma sabidamente inconstitucional para tão somente acirrar a disputa em torno de receita tributária, uma vez que tal procedimento não se alinha com a legítima representação de seus contribuintes. Portanto, é indubitável que os fins almejados pelo Estado do Rio de Janeiro não justificam os meios adotados para alcançar o seu desiderato.
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1 Estudos Tributários 11 - Carga Tributária no Brasil - 2002 - Coordenação Geral de Política Tributária - Receita Federal.
2 RE 200972 / PR – PARANA; RECURSO EXTRAORDINÁRIO; Relator: Min. MARCO AURÉLIO; Julgamento: 29/11/1996; Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA; Publicação: DJ DATA-21-02-97 PP-02833 EMENT VOL-01858-05 PP-00889.
3 RE 113090 / PB – PARAIBA; RECURSO EXTRAORDINÁRIO; Relator(a): Min. DJACI FALCAO; Julgamento: 19/05/1987 Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA; Publicação: DJ DATA-12-06-87 PG-11863 EMENT VOL-01465-04 PG-00604.
4 RE 93523 / AM – AMAZONAS;. RECURSO EXTRAORDINÁRIO; Relator: Min. CORDEIRO GUERRA; Revisor Min. OROZIMBO NONATO; Julgamento: 24/08/1982 Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA; Publicação: DJ DATA-24-09-82 PG-09444 EMENT VOL-01268-01 PG-00334 RTJ VOL-00105-01 PG-00164.
5 RE 185789 / SP - SÃO PAULO; RECURSO EXTRAORDINÁRIO; Relator: Min. ILMAR GALVÃO; Rel. Acórdão Min. MAURÍCIO CORRÊA; Julgamento: 03/03/2000 Órgão Julgador: Tribunal Pleno; Publicação: DJ DATA-19-05-00 PP-00020 EMENT VOL-01991-01 PP-00129.
6 O Procurador Geral da República ajuizou a ADIN nº 3019 contra a Lei nº 4.117/03. No momento, aguarda-se a decisão em sede de liminar.
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* Advogado do escritório Pinheiro Neto Advogados
* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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