I – Introdução
No ordenamento jurídico brasileiro, sempre ficou assente que o requisito de pluralidade de sócios seria fundamental para a constituição das sociedades em geral, em especial para o presente trabalho, da sociedade limitada. Tanto é que, até a criação da EIRELI e, mais recentemente, com a edição da MP 881/19, a sociedade unipessoal era possível, leia-se, tolerada, apenas em alguns casos específicos e/ou temporários.
Os contratos sociais exigiam requisitos próprios das sociedades, além dos já exigidos para os contratos em geral, envolvendo sempre duas ou mais pessoas, restando caracterizada, portanto, a pluralidade de sócios como um pressuposto fundamental para a manutenção da sociedade.
Acontece, porém, que no cotidiano da exploração da atividade economicamente organizada, ou seja, a empresa, foram sendo levantadas, com o tempo, diversas problemáticas, dentre elas, a responsabilidade ilimitada do empresário individual e a constituição de sociedades apenas pro forma por aqueles que desejavam explorar sozinhos a atividade econômica, mas que desejavam, também, gozar de responsabilidade limitada, com a separação entre seu patrimônio pessoal e o patrimônio afetado à empresa.
Esse cenário foi sendo alterado desde 2011, quando introduzida no ordenamento pátrio a possibilidade de constituição de EIRELI – Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, que, apesar do flagrante equívoco em sua nomenclatura, já que a empresa, como anteriormente citado, é a atividade economicamente organizada para a produção e/ou circulação de mercadorias e serviços e explorada por seu titular, o empresário, permite a constituição de sociedade por apenas uma pessoa, ainda que traga requisitos custosos, como também veremos.
O mesmo cenário foi alterado mais uma vez com a edição da MP 881/19, editada em 30 de abril de 2019 e conhecida como a MP da “liberdade econômica”, que tratou de modificar uma série de dispositivos legais, dentre os quais o artigo 1052, do Código Civil de 2002, incluindo o seu parágrafo único, que permite a constituição de sociedades limitadas unipessoais.
O objetivo do presente trabalho, portanto, é o de demonstrar, em breves palavras e sem a pretensão de esgotar o tema em tão pouco espaço para o discurso, que o requisito da pluralidade dos sócios, atualmente, fora mitigado, seja pela já previsão da EIRELI, seja pela possibilidade de constituição de sociedade limitada unipessoal trazida pela medida provisória.
Por ora, fiquemos com a importante informação de que a medida provisória ainda está em vigor, ainda que afetada em regime de urgência.
II – Desenvolvimento
Levando em consideração o posicionamento de que as sociedades, segundo a doutrina que parece ser preponderante, se originam de um ato constitutivo de natureza contratual, informa Rubens Requião que “o contrato é uma relação na qual se envolvem duas ou mais pessoas. Partindo dessa evidência, a pluralidade de partes constitui um elemento essencial dos contratos de sociedade comercial.”1
Nesse sentido, enquanto essencial o requisito de haver mais de um sócio para explorarem a empresa dentro de uma sociedade, caso restasse o mesmo descaracterizado, a sociedade seria dissolvida. Ou seja, caso a pessoa quisesse explorar a atividade econômica de maneira individual, deveria fazê-lo por meio de empresário individual. A principal consequência de tal informação é a de que essa mesma pessoa não gozaria da limitação da responsabilidade e seu patrimônio pessoal poderia vir a responder perante os credores.
Em primeiro momento, a prática forense empresarial tentou contornar esse problema por meio da constituição de sociedades pro forma2, por meio das quais alguém se alinhava a terceira pessoa para formarem sociedade, na qual um detinha a maçante quantidade de ações e efetivamente explorava a atividade econômica e a outra pessoa passava a deter apenas uma ação, por exemplo. Com isso, o empresário poderia gozar da limitação da responsabilidade.
Esse era o cenário do ordenamento jurídico brasileiro, qual seja, permitir a sociedade unipessoal apenas em casos bastante específicos, dentre os quais: (i) artigo 206, I, d, da lei 6.404/76, que permite à sociedade anônima continuar com apenas um sócio pelo prazo de um ano, que se esgotado e não reconstituída a pluralidade de sócios, é a sociedade dissolvida de pleno direito; (ii) artigo 251, da lei 6.404/76, chamada de subsidiária integral, que conta com apenas um sócio e que deverá ter como instituidora uma sociedade brasileira e; (iii) o artigo 1033, IV, do Código Civil de 2002, que permite a sociedade unipessoal temporária, devendo a pluralidade de sócios ser reconstituída dentro do prazo de 180 (cento e oitenta) dias, sob pena de a sociedade ser dissolvida.
Em 2011, a lei 12.441/11 alterou a normativa com a EIRELI – Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, por meio da inclusão dos artigos 44, VI, 980-A e parágrafo único do artigo 1033, todos do Código Civil de 2002.
A previsão da EIRELI, aparentemente, resolvia os problemas que eram enfrentados até então. Ora, agora era possível apenas um titular explorar a atividade econômica, sem que precisasse buscar outrem para firmar sociedade, e melhor, gozaria de responsabilidade limitada e seu patrimônio pessoal estaria a salvo de responder perante os credores pelas obrigações sociais. Acontece, porém, que a previsão da EIRELI trouxe, em conjunto, alguns requisitos considerados custosos pela prática empresarial e pela doutrina.
O principal empecilho à criação da EIRELI é a exigência feita pelo caput do artigo 980-A, do Código Civil de 2002, do valor mínimo de cem salários mínimos para a integralização do capital social. Frisa-se, ainda, que é exigência legal que o referido capital social esteja totalmente integralizado quando do registro e, ainda que a prática forense demonstre que é possível a criação desse tipo societário sem a total integralização do capital social, conclui-se que é a exigência legal e, por isso, deve ser o considerado e seguido.
Cem salários mínimos para formar o capital social, devidamente integralizados quando do momento do registro, não é um requisito fácil de ser cumprido. Ao contrário, trata-se de um alto valor que se não efetivado, causava, até então, efeitos de grande monta àqueles que querem empreender sozinhos.
Tal conclusão é óbvia, porque se as sociedades unipessoais não eram passíveis de serem constituídas até a edição da MP 881/19 – e ainda não são, salvo se sob o rótulo de limitadas, se a pessoa não tivesse o valor e não pudesse constituir EIRELI, ela deveria, necessariamente, restar configurada como empresário individual, não gozando de responsabilidade ilimitada ou, deveria buscar uma terceira pessoa para que, apenas formalmente, constituíssem sociedade para experimentar da limitação da responsabilidade e efetiva separação entre os patrimônios pessoal e social. Isso, obviamente, era um estímulo para a fundação dessas sociedades pro forma ou fictícias, o que é péssimo, já que são formas de burlar à lei e ao ordenamento jurídico.
Perceba, ainda, que a EIRELI não é considerada uma sociedade unipessoal de responsabilidade limitada, mas sim uma pessoa jurídica autônoma3.
Pois bem. Verificamos até o presente momento que: (i) a sociedade, por ser instituída por ato constitutivo de natureza contratual, traz como requisito essencial a pluralidade de sócios. Baseado nesse entendimento, a ausência de mais de uma pessoa querendo explorar a atividade econômica obrigaria a aderência à figura do empresário individual, que não goza de limitação em sua responsabilidade ou; à formação de uma sociedade fictícia, em clara burla à lei; (ii) que por ser considerado essencial o requisito da pluralidade de sócios, o ordenamento jurídico apenas aceita a sociedade unipessoal em casos muito específicos e/ou temporários; (iii) que esse cenário começou a ser mitigado com a introdução, em nosso ordenamento jurídico, da possibilidade de criação da EIRELI e; (iv) que a EIRELI traz alguns requisitos custosos por demais para sua constituição, dentre os quais, citamos o principal, em nossa opinião, a integralização total, quando do registro, do capital social com valor nunca inferior a cem salários mínimos.
Em 2019, foi o requisito da pluralidade de sócios ainda mais mitigado. Isso ocorreu com a edição da medida provisória 881/19, editada, supostamente, pela “justificada necessidade urgente de afastar a percepção de que, no Brasil, o exercício de atividades econômicas depende de prévia permissão do Estado”4 e de que, por isso, os investidores privados deixariam de aportar dinheiro no país e, consequentemente, haveria a redução na geração de empregos e de renda.
Nesse sentido, a referida medida provisória vem com o objetivo de empoderar o agente privado e conferir-lhe mecanismos para ir de contra os excessos de intervencionismo estatal, buscando estimular o empreendedorismo e, em última análise, o desenvolvimento econômico.
A medida provisória, instrumento que, em nosso ordenamento jurídico, vige com força de lei, segundo o caput do artigo 62, CRFB88, modificou diversos dispositivos legais, dentre os quais o artigo 1052, do Código Civil de 2002 que ganhou um parágrafo único, no qual justamente é prevista a sociedade limitada unipessoal.
Vejamos a definição do que seria uma sociedade unipessoal:
Sociedade unipessoal significa a sociedade formada por uma só pessoa. Durante muito tempo não se concebia esse tipo de sociedade, na medida em que sociedade sempre significou a existência de um grupo de pessoas, um conjunto de indivíduos que reuniam seus esforços para um objetivo comum. Com o desenvolvimento econômico e a necessidade de incentivo à pequena e à média empresas, os estudiosos do direito manifestaram preocupação com a limitação da responsabilidade do empresário que desenvolvia sua atividade sem a constituição de uma sociedade e, portanto, respondia ilimitadamente pelas dívidas assumidas em decorrência de sua atividade, sem poder lançar mão de mecanismos de proteção do patrimônio típicos de determinadas sociedades.5
De simples leitura, conseguimos concluir que é um instrumento que vem atender aos anseios acima já propagados, quais sejam, de conferir a possibilidade ao empresário que quer o ser de maneira individual, sem estimular qualquer contorno às previsões legais. Isso foi anteriormente tentado pela EIRELI, que não conseguira atingir seus objetivos em plenitude pelos requisitos dificultosos para sua constituição.
Certo é que, por enquanto, o ordenamento jurídico abarcou e permite a constituição de sociedades limitadas unipessoais e não a unipessoalidade em todo e qualquer tipo societário. Essa é uma das críticas da alteração promovida pela medida provisória, já que não existe qualquer justificativa para restringir a constituição de sociedades unipessoais apenas para as sociedades limitadas, ressalvado o motivo de que esse é o tipo societário mais utilizado na prática justamente porque nos outros tipos, há a atribuição de responsabilidade ilimitada, ao menos, para uma categoria de sócios. As sociedades anônimas, por outro lado, possuem regramento em lei específica, a qual, conforme já visto, prevê a possibilidade de subsidiária integral.
Apesar de louvável a tentativa de avanço com a previsão das sociedades limitadas unipessoais, achamos conveniente a feitura de alguns comentários.
Apesar de a medida provisória ser um instrumento que tenha força de lei, a MP 881/19 promoveu alterações no Código Civil de 2002, diploma que pretende ser perene no tempo. No presente momento, a medida provisória está em regime de urgência e se, eventualmente, ela não for aprovada, problemas de ordem prática instalar-se-ão, como, por exemplo, a regulação de todas as sociedades limitadas unipessoais que forem constituídas durante o tempo em que esteve em vigor. Como ficará a regulamentação dessas sociedades?
A nossa Constituição determina nos §§ 3° e 11° que ou, seja editado decreto legislativo regulando as relações constituídas durante a vigência da medida provisória ou, caso não seja editado tal decreto legislativo, as relações constituídas sob a sua égide continuarão por ela reguladas. Na prática, haverá de ser conferida a constituição de cada sociedade limitada unipessoal para saber se foi constituída sob a vigência permissiva da medida provisória ou não.
Por outro lado, caso a medida provisória seja aprovada e vire lei, o risco de termos a previsão da EIRELI esvaziada e jogada ao desuso é alto. Isso é fácil de se concluir, já que ninguém irá escolher um tipo societário que exija o aporte no capital social tão alto quanto a EIRELI requer, podendo, desde o primeiro momento, constituir a sociedade limitada unipessoal.
Além disso, reforçamos que a medida provisória, ao incluir o parágrafo único no artigo 1052, do Código Civil de 2002, o fez apenas para as sociedades limitadas. Ou seja, caso vire lei, será feita uma segmentação em nosso ordenamento, já que o requisito da pluralidade de sócios será mitigado para as sociedades limitadas e não para os outros tipos de sociedades, que continuarão precisando de mais de uma pessoa para seu exercício, sob pena de dissolução. Em termos vulgares, a medida provisória poderia ter resolvido o problema na integralidade, mas preferiu se limitar apenas a uma parcela, apenas a um tipo de sociedade.
Ao invés de a possibilidade de sociedades unipessoais estar prevista em dispositivo apartado e dentro da normativa específica das sociedades limitadas, poderia ter sido trabalhado o próprio dispositivo da EIRELI, no sentido de alterar a exigência de cem salários mínimos a serem totalmente integralizados a título de capital social quando do registro, bem como a alteração do caput do 980-A, do Código Civil de 2002, também para permitir que a EIRELI possa ser constituída por sociedade não empresária – ainda que, pelo nome, possa ser considerada uma contradição, e por pessoa jurídica, discussão que se travava no DREI desde há muito - a possibilidade ou não de pessoa jurídica ser titular de EIRELI.
Dentro do entendimento de que a EIRELI é uma pessoa jurídica autônoma, a proposta supramencionada resolveria em monta o problema de segmentação trazida com a previsão da MP 881/19 apenas às sociedades unipessoais limitadas, ou seja, seria possível instituir sociedade unipessoal para todo e qualquer tipo societário, seja simples ou empresário.
Por fim, caso não fosse o entendimento predominante pela alteração da figura específica da EIRELI a fim de abarcar uma maior quantidade de tipos societários, a mudança poderia vir no próprio artigo 981, do Código Civil de 2002, o que afastaria quaisquer questionamentos sobre a possibilidade de outros tipos societários poderem ser também constituídos com apenas um titular.
III – Conclusão
Diante de tudo o exposto, reiteramos que o objetivo do presente trabalho foi apenas o de levantar questionamentos e reflexões sobre a previsão trazida no bojo da MP 881/19 e não o de esgotar a temática ou, sequer, sobrepor algum posicionamento eventualmente levantado.
A grande preocupação, que se tentou levantar na missiva, é a de percebermos a frequente cultura legislativa brasileira de criar dispositivos legais desnecessários, causando um inchaço de leis, medidas provisórias e outros instrumentos, quando, na verdade, os mesmos objetivos poderiam ter sido alcançados com modificações em dispositivos já existentes, que demandam, muitas vezes, melhoramentos e um padrão uniforme, tanto em sua aplicação, quanto na sua interpretação.
Isso foi o que ocorreu com a modificação da MP 881/19, que acabou por incluir um parágrafo único em artigo do Código Civil – ou seja, um novo dispositivo, quando já existiam, ao menos, dois outros que poderiam ter tido suas redações melhoradas, alcançando um tratamento mais uniforme entre todos os tipos societários, sejam empresários ou simples, resolvendo diversas outras controvérsias, como é a de a sociedade unipessoal criada ser aplicada apenas para as limitadas e não para os outros tipos societários, bem como poder ela ser aplicada às sociedades simples ou não. Em resumo, foi criado uma nova previsão legal para atingir apenas parte do problema.
Apesar de o objetivo que circunda a edição da medida provisória ter sido louvável e guiado pela tentativa de ser resolvida ou ao menos, amenizada, a grande crise pela qual o Brasil passa, estimulando os investimentos e o exercício de atividade econômica, temos que ter em mente que, um ordenamento jurídico deve ser claro e passível de ser compreendido, tanto quando da sua aplicação, quanto da uniformização de interpretações. Caso contrário, serão encontradas formas de burlá-lo, o que acaba por descaracterizar os fins dos institutos criados.
1 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 1º vol. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. P.419.
2 “Com o intuito de proteger o patrimônio particular do risco inerente à atividade empresarial, os empresários que objetivavam desenvolver seus negócios individualmente, sem a colaboração de terceiros, frequentemente criavam as chamadas “sociedades de palha”, convidando um familiar ou pessoa próxima para ser seu sócio numa parte mínima do capital social de uma sociedade empresária - geralmente uma sociedade limitada. Com esse subterfúgio preenchia o requisito de pluralidade de sócios e conseguia obter o benefício de separar a parcela de seu patrimônio que colocaria à disposição da atividade empresarial daquela outra parte que não estaria ao alcance dos credores daquela atividade.” (grifo nosso). In BERTOLDI, Marcelo M. RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Curso Avançado de direito comercial. 10ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. P. 66.
3 “(...) não podendo nem mesmo a EIRELI ser considerada como uma espécie de sociedade unipessoal limitada. Conforme a redação do art. 44 do CC, são pessoas jurídicas de direito privado tanto as sociedades previstas no inc. II do referido artigo, quanto a EIRELI, prevista no inc. VI, deste mesmo artigo. Desta forma, verifica-se que o legislador, ao inserir o inc. VI ao art. 44 do CC, manifestou a sua vontade em criar uma pessoa jurídica nova, autônoma das demais.” In: BERTOLDI, Marcelo M. RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. 10ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. P. 187.
4 Conforme Sumário Executivo de Medida Provisória. Disponível aqui. Último acesso em: 6/7/19.
5 BERTOLDI, Marcelo M. RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. 10ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. P. 186.
________________
*Debora Müller Bueno é advogada, assistente de pesquisa e de ensino – L.L.M., na Fundação Getúlio Vargas (FGV), pós-graduada em Processo Civil pela Universidade Cândido Mendes (UCAM), pós-graduanda em Advocacia Empresarial e Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).