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Considerações sobre a “lei seca”

A cada biênio, nas semanas que antecedem o sufrágio para eleição de nossos representantes, um tema sempre ocupa os noticiários: a proibição da comercialização e do consumo de bebidas alcoólicas, a chamada “lei seca”. Normalmente, o que ocorre para sua integração ao sistema legal é a expedição de um ofício dos Tribunais Regionais Eleitorais às Secretarias Estaduais de Segurança Pública requisitando a proibição da venda e consumo das bebidas alcoólicas por determinado tempo, tornando assim criminosa a conduta durante o referido período.

26/9/2006


Considerações sobre a “lei seca”

 

Fernando Trizolini* 


Filipe Lovato* 
 

A cada biênio, nas semanas que antecedem o sufrágio para eleição de nossos representantes, um tema sempre ocupa os noticiários: a proibição da comercialização e do consumo de bebidas alcoólicas, a chamada “lei seca”.

 

Normalmente, o que ocorre para sua integração ao sistema legal é a expedição de um ofício dos Tribunais Regionais Eleitorais às Secretarias Estaduais de Segurança Pública requisitando a proibição da venda e consumo das bebidas alcoólicas por determinado tempo, tornando assim criminosa a conduta durante o referido período.

 

Entretanto, ao aprofundar a análise das normas jurídicas que regulamentam a matéria, parece nítida a ilegalidade da suposta criminalização da ação e também a inconstitucionalidade de qualquer restrição à comercialização e consumo de bebidas alcoólicas.

 

Visa assim o presente estudo apresentar, de forma sintética e direta, a nossa visão sobre o assunto. Ainda que para muitos o ato que determina a limitação no consumo de bebidas alcoólicas em período eleitoral seja inconstitucional, é necessário que se examine o tema sem deixar de lado os preceitos que regem a boa ordem social.

 

O consumo excessivo da bebida pode, em alguns casos, inviabilizar a paz social, quando a população necessita estar com a mente sã e estribada no sentimento democrático próprio do ambiente eleitoral. No entanto, o consumo comedido não desvirtua o processo eleitoral, menos ainda o comércio de bebidas.

 

Assim, basta a simples fiscalização pela autoridade policial no ambiente de voto, para que não haja abuso por parte de pessoas que se excederam no uso.

 

Nesse passo, deve-se frisar que o argumento sempre utilizado para evitar a comercialização e consumo de bebidas alcoólicas durante as eleições, é o fato de que, supostamente, essa conduta configuraria crime eleitoral.

 

A previsão legal para tanto, numa interpretação ampliativa, está inserida no artigo 347 do Código Eleitoral, que prevê ser crime punível com detenção de três meses a um ano a recusa a cumprimento ou obediência de diligências, ordens ou instruções da Justiça Eleitoral ou mesmo opor embaraços à sua execução.

 

O referido dispositivo eleitoral é, na verdade, uma forma especial do crime de desobediência, já constante no Código Penal em seu artigo 330, visto que objetiva o respeito pelos cidadãos às diligências, ordens e instruções emanadas por um único órgão público: a Justiça Eleitoral. Ocorre que, as ações descritas no dispositivo acarretam diversos problemas e incongruências quando analisadas dentro da sistemática constitucional e do próprio Código Eleitoral.

 

A Constituição Federal, no entanto, não possibilita a utilização do Poder Judiciário, órgão eminentemente julgador, para completar o conteúdo de uma norma incriminadora. E o que é pior: fazê-lo para os crimes que possui competência para julgar. Ora, é evidente que não cabe ao Poder Judiciário suprir “normas penais em branco”, cabe a ele simplesmente julgá-las, sob pena de ofensa direta ao princípio da separação dos poderes, base indissociável das instituições verdadeiramente democráticas.

 

De acordo com tal princípio, salvo nas funções atípicas previstas pela legislação, jamais poderia incumbir a um mesmo Poder a condição de produzir normas e, ao mesmo tempo, julgá-las. Tal ressalva ganha ainda maior importância para as normas criminais, dado o seu caráter intrinsecamente repressivo.

 

No caso, a norma penal referida não possui um elemento normativo válido, já que impossível de ser completada pela Justiça Eleitoral, órgão nela determinado para tanto. Assim, a conduta lá descrita é atípica. Essa posição já foi firmada pelo Tribunal Superior Eleitoral no julgamento do Recurso de Habeas Corpus nº 233/94 e do Habeas Corpus nº 177/92.

 

Nesse passo, ainda que considerássemos válida a complementação da norma, também existe uma questão impeditiva relativa à competência para a prática de tal ato. É que conforme dispõe o artigo 30 do Código Eleitoral, os Tribunais Regionais Eleitorais não possuem competência para expedir instruções relacionadas àquela norma. Essa competência é privativa do Tribunal Superior Eleitoral, nos termos do artigo 23, inciso IX do mesmo diploma.

 

Portanto, se não cabe nem mesmo às 1ª e 2ª instâncias da Justiça Eleitoral a competência para completar o conteúdo de uma norma criminal, tal função caberá muito menos às Secretarias de Segurança Pública. Como se sabe, o Estado e os seus organismos administrativos, dentro da federação brasileira, não podem legislar sobre matéria penal, já que a competência para o ato é exclusiva da União Federal.

 

E se não bastasse a incompetência para completar as normas penais, é necessário destacar o fato de que as Secretarias de Segurança Pública Estaduais também não possuem competência para limitar as atividades profissionais, dentre elas, o comércio de bebidas alcoólicas.

 

Como dito anteriormente, essa limitação é solicitada por meio de um ofício dos Tribunais Regionais Eleitorais aos órgãos de segurança estaduais e eles, por sua vez, elaboram Resoluções proibindo a venda e consumo dos produtos. Contudo, quaisquer resoluções, por força constitucional, não podem limitar a livre iniciativa e o exercício do comércio. Essas restrições, ainda que num contexto social de prevenção de violência em dia de eleição, em vista do que prevê a Constituição Federal, só podem ser realizadas por lei, nunca por resoluções.

 

Cabe ainda salientar que a restrição do comércio de bebidas alcoólicas <_st13a_personname productid="em um Estado" w:st="on">em um Estado, contraposta à livre comercialização por outros, fere o princípio da isonomia, eis que não há qualquer critério que justifique o comércio de bebidas em alguns entes da Federação e não nos demais. E é cada vez mais comum que alguns Estados pratiquem a coerção e outros liberem o comércio nesse período.

 

Nesse aspecto, deve-se considerar que impedir a comercialização de produtos, num país que tanto necessita de impulso à economia soa como algo, no mínimo, incoerente. Deve-se frisar que há ferramentas legais para evitar e punir a baderna no curso do processo eleitoral, as quais podem e devem ser aplicadas com severidade se assim as autoridades públicas entenderem. O que não se justifica é a pura e simples restrição à liberdade do indivíduo, tolhido que é no direito de dispor do próprio arbítrio.

 

Desta forma, a utilização por parte do Poder Público de mecanismos penais insustentáveis para coibir o comércio e o consumo de bebidas alcoólicas configura nítido abuso de poder, que deve ser pontualmente coibido pela sociedade através de medidas judiciais preventivas e repressivas.

 

Finalmente, numa economia de mercado em que as famílias, antecipadamente, suprem mensalmente a dispensa com todo tipo de produto para consumo, inclusive bebidas alcoólicas, não tem qualquer razoabilidade a proibição de comércio do produto no dia de eleição, até porque não há, e nem pode haver, Resolução que coíba o uso da bebida na intimidade do lar, sob pena de ofensa ao art. 5º, X e XI, da Carta magna. Medidas de coerção como esta, servem apenas para ofender princípios constitucionais relacionados à livre concorrência e à legalidade.

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*Advogados do escritório Manhães Moreira Advogados Associados

 

             

 






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