Na última terça feira (18/6), foi deflagrada, em Florianópolis, uma operação para averiguar a conduta de alguns suspeitos que atuam em órgãos da inteligência e investigação da Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal. Denominada de operação chabu, a investigação apontou que os envolvidos são suspeitos de agir com o objetivo de prejudicar investigações policiais em curso e proteger o núcleo político em troca de favorecimentos financeiros e políticos.
Além dos agentes da PF e PRF, também foram cumpridos mandados de prisão temporária em face do atual prefeito de Florianópolis, delegados e ex-delegados da Polícia Federal, ex-secretário da Casa Civil e empresários, dentre outros envolvidos. Foram investigados os supostos crimes de associação criminosa, corrupção passiva, violação de sigilo funcional, tráfico de influência, corrupção ativa, além da tentativa de interferir em investigação penal que envolva organização criminosa.
Por conseguinte, conclui-se que o cenário em tela é irrefragável, subsistimos em tempos nebulosos. Um ponto neurálgico há de ser pautado: vivemos na era dos estereótipos. Como pode, em menos de uma década, o estereótipo do burguês engravatado substituir com tanta veemência o estereótipo do afrodescendente pobre? A imagem do “criminoso perfeito” foi remodelada com base na evolução natural do tempo ou com âmago nos interesses modernos?
Independente de raça, cor, etnia, classe social ou religião, se o sujeito cometeu um delito, deverá arcar com as consequentes imputações sob a ótica da lei, sem mais. Todavia, o pecado primordial gira em torno de culpabilizar, antecipadamente, seja quem for, apreciando apenas conjecturas baseadas em estampa.
Uma das grandes questões colocadas pela fenomenologia social contorna as múltiplas interpretações particulares dos agentes que compõem a chamada “concepção natural” do mundo, em qualquer comunidade cultural ou social. Ora, mas como convergir para uma visão comum do mundo? A resposta: é o estereótipo da construção linguística que projeta tal naturalização em determinadas relações.
Sem rodeios, obviamente, manchetes que contenham os termos “político”, “prefeito”, “delegado”, “policial”, “juiz”, “promotor” e “advogado” serão múltiplas vezes mais acessadas, compartilhadas e causarão instantânea repugna social.
Em contrapartida, notícias que envolvam os termos “traficante”, “assaltante” e “morador de rua”, por exemplo, não causarão tanto impacto no ser humano moderno, tendo em vista sua despreocupação com o que não lhe causa tangíveis ameaças morais e materiais.
O traficante, assaltante ou morador de rua possui poder de barganha capaz de atingir reflexos em uma nação inteira? Não. E o rol de investigados na operação chabu? Ah, esses sim! É mais sensato se preocupar com investigados que proporcionarão exasperada espetacularização midiática, não é mesmo?
Ora, se a investigação tramita em segredo de Justiça e a própria Polícia Federal alega não poder revelar mais informações acerca da operação, por que cinco minutos após o cumprimento do primeiro mandado de prisão temporária já havia notícias em sites de renome e jornais televisivos? Será mesmo que não há nenhum interesse midiático? Oh, dúvida cruel.
Erving Goffman1 brilhantemente pontifica que os estereótipos também podem ser chamados de clichês e, dependendo de sua intensidade, de estigmas negativos. Noutras palavras, seriam “filtros culturais” que condicionam a percepção e o conhecimento das pessoas envolvidas em grandes escândalos. Tais filtros, por sua vez, são garantidos e reforçados pela linguagem.
O processo de comunicação prevê, obrigatoriamente, a existência mínima de um emissor e de um receptor. Cada qual tem seu repertório cultural exclusivo e, portanto, transmitirá a informação segundo seu conjunto de particularidades e o receptor agirá da mesma maneira, com fulcro em seu próprio filtro cultural.
O imbróglio da temática emerge quando a sociedade passa a deliberar de maneira gêmea, sem buscar a real fonte dos dados inicialmente alvitrados. O erro colossal, à vista disso, é analisar primeiramente o estereótipo de um investigado como se fosse a única circunstância existente.
A incumbência não é simplória. Os fatos que deveriam estar condensados e organizados sob uma investigação bem trabalhada, hodiernamente, sofrem uma ciclópica pressão social para que haja apuração imediata do rol de culpados. Ainda, as investigações no Brasil perderam totalmente o rumo da transparência. É cristalina a preferência por investigar apenas uma selecionadíssima gama de delitos, vulgo, “crimes de colarinho branco”.
O ser humano contemporâneo, em poder das informações recebidas pela mídia ou pelas redes sociais, não tem essa dimensão nem quer ter. O seu julgamento é sumário e invariavelmente sem qualquer limite e responsabilidade por suas atitudes ou palavras.
É cristalino que, por mais que ocorram mudanças no resultado prático da investigação — operação chabu — e se retire a responsabilidade de um indiciado e as coloque em terceiros, ou que narre os fatos de uma forma diferente do que foi arguido preliminarmente, certamente não haverá como restaurar os atos e palavras efetuados pelos julgadores sociais no famigerado processo penal midiático.
Os motivos das prisões temporárias decretadas na manhã da última terça-feira ainda não foram amplamente informados. O silêncio para preservar as investigações perduram. Enquanto isso? Aguardamos novo desfecho.
É, meus caríssimos. O advogado tem o papel de defender o acusado nos autos do inquérito, do processo e, como se não bastasse, também na mídia. De nada adianta cumprir 30, 40 mandados de prisão durante uma manhã de terça-feira, sem fundamento ou indício idôneo de prática delitiva. O julgamento social é muito mais devastador do que o processo penal tradicional. Na segunda hipótese, por mais que o acusado seja inocente, não haverá perdão se a inocência não for revelada imediatamente. Meras conjecturas aqui não são bem-vindas. No mais, avante!
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1 GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.
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*Anderson Almeida é advogado criminalista.