A responsabilização de gestores públicos por atos praticados durante a gestão sempre desencadeou grandes polêmicas acerca dos seus limites e dos métodos utilizados para aferição, dentro dos órgãos de controle.
Não raras vezes, muito tempo após a saída do cargo na gestão pública, diversos agentes continuavam a responder intermináveis processos, sem que parâmetros objetivos fossem elencados para determinação de sua responsabilidade.
O Tribunal de Contas da União, ao longo do tempo, evoluiu bastante na análise dos casos, tendo consolidado como jurisprudência dominante a teoria da responsabilidade subjetiva, exigindo para aplicação de punição ao agente, a existência do ato ilícito praticado com dolo ou culpa, do nexo causal e do dano. Veja-se:
“49. A responsabilidade dos administradores de recursos públicos, escorada no parágrafo único do art. 70 da Constituição Federal (...) segue a regra geral da responsabilidade civil. Quer dizer, trata-se de responsabilidade subjetiva. O fato de o ônus de provar a correta aplicação dos recursos caber ao administrador público não faz com que a responsabilidade deixe de ser subjetiva e torne-se objetiva. Esta, vale frisar, é responsabilidade excepcional, a exemplo do que ocorre com os danos causados pelo Estado em sua interação com particulares - art. 37, § 6º, da Constituição Federal.
50. A responsabilidade subjetiva, vale dizer, possui como um dos seus pressupostos a existência do elemento culpa.”
(Acórdão no 249/10 - Plenário)
Contudo, a mera aplicação da culpa, acrescida ao ônus de provar a correta aplicação dos recursos, já acabava por gerar situações quase que impossíveis de afastar a responsabilidade do gestor, especialmente quando se analisava o instituto da delegação de competências.
Com o crescimento demográfico e o consequente inchaço do Estado (lato senso), a delegação de competências passou a ser quase que obrigatória em todos os níveis da administração pública, sob pena de inviabilizar a própria atividade-fim.
Diante disso, diversos entes e órgãos das mais variadas esferas públicas passaram a normatizar parâmetros para distribuição de competências, como uma verdadeira forma de descentralização de poder.
Entretanto, intermináveis discussões passaram a remanescer questionando se a delegação de competência implicaria também na distribuição de responsabilidades ou não.
O próprio Tribunal de Contas da União oscilou na sua jurisprudência sobre o tema, ora se posicionando de um lado, ora de outro. Veja-se:
Acórdão 894/09 – 1ª Câmara - TCU
Enunciado
O instrumento da delegação de competência não retira a responsabilidade de quem delega, visto que remanesce a responsabilidade no nível delegante em relação aos atos do delegado. Cabe, por conseguinte, à autoridade delegante a fiscalização dos atos de seus subordinados, diante da possibilidade de responsabilização por culpa in eligendo e/ou culpa in vigilando.
Acórdão 65/97- TCU-Plenário
“Não se pode, tampouco, pretender que todas as informações de subalternos sejam checadas por seus superiores, sob o risco de inviabilizar-se a administração. Aliás, se assim o fosse, não seriam necessários os servidores subalternos. Bastariam os chefes ...”.
Contudo, uma primeira modificação importante sobre o tema foi trazida em abril de 2018, com a edição da lei 13.655/18, que acrescentou os artigos 20 a 30 à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), trazendo novidades para o Direito em geral, mas, sobretudo, inaugurando novas discussões sobre a responsabilidade pessoal dos gestores públicos, em decorrência dos atos praticados.
Isso porque, o art. 281 da citada lei 13.655/18 trouxe à baila a possibilidade de responsabilização pessoal do agente público apenas pelos atos praticados com dolo ou ERRO GROSSEIRO, conforme já havíamos tratado por oportunidade do artigo "Alterações na LINDB e o novo parâmetro para responsabilização de gestores2".
Naquela oportunidade, já defendia que a penalização deveria decorrer de ato mais severo e mais gravoso do que a mera culpa in vigilando ou in eligendo já aplicada pelo TCU, uma vez que se estava agora tratando de um novo instituto: o ERRO GROSSEIRO.
A dimensão do que seria o ¨erro grosseiro¨ necessitava de uma definição mais clara, que viria pela jurisprudência ou por meio de uma regulamentação da matéria, fato que ocorreu com a recentíssima edição do decreto 9.830/19, que regulamentou as inovações introduzidas na LINDB, pela lei 13.655/18.
O art. 123 do citado normativo, ao regulamentar a responsabilização por erro grosseiro, tratou de definir alguns parâmetros para avaliação da definição do que seria este instituto jurídico.
Primeiramente, o decreto afirma que o erro grosseiro é "aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia".
Ora, de plano, já se confirma o fato de que o erro grosseiro exige algo mais forte e relevante do que a mera culpa, admitindo uma benevolência maior do julgador para com o agente público.
Em seguida, importa lembrar também que a comprovação do erro grosseiro deverá ser cabal, não cabendo a presunção, a teor do que dispõe o §2º, do art. 12, do decreto 9.830/19.
Não sendo só, o §7º, do mesmo art. 12, foi mais adiante, tratando especificamente sobre o problema da delegação de competência, estabelecendo expressamente que, no exercício do poder hierárquico, só responderá por culpa in vigilando aquele cuja omissão caracterizar erro grosseiro ou dolo.
A partir de então, os órgãos de controle deverão demonstrar cabalmente nos autos que houve uma culpa gravosa com grau de negligência elevado, para aplicar punições a superiores hierárquicos, quando da prática de atos irregulares por seus subordinados.
Trata-se do reconhecimento claro de que a realidade e o tamanho da máquina pública tomou uma dimensão que impede o seu controle absoluto pelo gestor máximo, necessitando, de fato, da descentralização do poder, onde o beneficiário do poder delegado deve arcar exclusivamente com a responsabilidade pelos seus atos.
Entendimento diverso acabaria por inviabilizar ou esvaziar a descentralização de poder, uma vez que a reponsabilidade continuaria nas mãos do superior hierárquico mesmo com o reconhecimento de que, de fato, este não teria o controle de tudo.
Importa, ainda, mencionar que a mera expressividade do valor do dano não é suficiente para comprovar ou presumir a gravidade da culpa, capaz de caracterizar o erro grosseiro, nos termos do §5º, do suso referido art. 12.
Outro tema sempre controvertido, que é a responsabilidade do gestor diante de conduta baseada em parecer técnico, também foi objeto de análise específica por parte do decreto 9.830/19.
Situação corriqueira na administração pública é a responsabilização de agentes públicos por condutas baseadas em pareceres técnicos em matérias específicas. Por óbvio que as várias especificidades da máquina pública exigem profissionais de diversas áreas do saber, como engenheiros, juristas, contadores, profissionais de tecnologia da informação, dentre outros; não sendo possível, a um ser humano médio, o conhecimento aprofundado e simultâneo de todas as áreas.
Neste contexto, por várias vezes, o gestor público acaba por tomar decisões e adotar condutas baseadas em pareceres de técnicos de cada área.
Até antes da edição do decreto em análise, não era difícil encontrar punições a gestores, decorrentes de condutas baseadas em pareceres técnicos. Com a nova normatização, a responsabilização passou a ter que decorrer obrigatoriamente de um erro grosseiro constante no parecer, ou ainda de conluio entre os agentes.
Trata-se, portanto, de um novo parâmetro que melhor se adequa à realidade da administração pública, dadas as peculiaridades surgidas ao longo dos anos, e que deverá provocar uma nova reflexão e a modificação da jurisprudência dos Tribunais de Contas pátrios.
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1 Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.
2 AGUIAR, Andrei. Alterações na LINDB e o novo parâmetro para responsabilização de gestores. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 23 jun. 2019.
3 Art. 12. O agente público somente poderá ser responsabilizado por suas decisões ou opiniões técnicas se agir ou se omitir com dolo, direto ou eventual, ou cometer erro grosseiro, no desempenho de suas funções.
§ 1º Considera-se erro grosseiro aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.
§ 2º Não será configurado dolo ou erro grosseiro do agente público se não restar comprovada, nos autos do processo de responsabilização, situação ou circunstância fática capaz de caracterizar o dolo ou o erro grosseiro.
§ 3º O mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização, exceto se comprovado o dolo ou o erro grosseiro do agente público.
§ 4º A complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público serão consideradas em eventual responsabilização do agente público.
§ 5º O montante do dano ao erário, ainda que expressivo, não poderá, por si só, ser elemento para caracterizar o erro grosseiro ou o dolo.
§ 6º A responsabilização pela opinião técnica não se estende de forma automática ao decisor que a adotou como fundamento de decidir e somente se configurará se estiverem presentes elementos suficientes para o decisor aferir o dolo ou o erro grosseiro da opinião técnica ou se houver conluio entre os agentes.
§ 7º No exercício do poder hierárquico, só responderá por culpa in vigilando aquele cuja omissão caracterizar erro grosseiro ou dolo.
§ 8º O disposto neste artigo não exime o agente público de atuar de forma diligente e eficiente no cumprimento dos seus deveres constitucionais e legais.
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