O choque cultural é – e sempre será – um fator relevante em negócios internacionais; especialmente, quando há a necessidade de solucionar disputas. Com todo respeito a experiência de árbitros como Jan Paulsson, que afirmou que o choque de culturas em arbitragem internacional é um “mito”1, e acadêmicos como Dr. Horacio Naon, que declarou que a “arbitragem internacional é essencialmente culturalmente neutra e a-histórica”2, afirmo que a própria arbitragem já é, por si só, um fenômeno cultural. Toda a trajetória dos participantes influencia, em maior ou menor grau, em um procedimento arbitral.
Se a cultura já é um fator primordial em arbitragem doméstica, isso é multiplicado exponencialmente em arbitragem internacional. Os dois institutos, diga-se de passagem, são praticamente incomparáveis. Parafraseando o já citado Prof. Paulsson: dizer que arbitragem e arbitragem internacional são a mesma coisa é como dizer que leão e leão marinho são o mesmo animal3. Na arbitragem internacional, que já é amplamente aceita pela comunidade arbitral como uma ordem jurídica sui generis, conforme teorizado por Emmanuel Gaillard, a preocupação para com as questões culturais deve ter a mesma (ou maior) importância do que as questões de fato e de direito envolvidas.
Arbitralistas famosos vêm espalhando, há muito tempo, a falsa ideia de que cultura é irrelevante; não se publica bons artigos sobre diferenças culturais em arbitragem internacional há mais de uma década4. E esse sentimento provêm da chamada harmonização. Esta se caracteriza como o fenômeno da codificação dos procedimentos e das “melhores práticas” em arbitragem internacional. Ela vem tentando reduzir tudo a questões meramente procedimentais, apoiada na ideia errônea de que um procedimento bem discutido previamente pode superar as diferenças culturais entre os participantes. E isso é manifestamente falso – e até ingênuo. Padronizar procedimentos nem sequer mascara o choque cultural, pelo contrário, pode aumenta-lo, principalmente se a codificação privilegiar determinada tradição jurídica5. Aliás, a harmonização já foi até chamada de “assustadora”6.
É necessário que a comunidade arbitral não caia na cilada de achar que qualquer tipo de regra, lei, código, guideline ou a própria globalização diminuirá a importância de se atentar para os elementos culturais dos árbitros, dos advogados e até das testemunhas.
Entre as inúmeras culturas espalhadas mundo afora, até mesmo o menear de cabeça pode ter significados diversos. Mover a cabeça de cima para baixo é sinal positivo para latinos, negativo para indianos e um sinal de que se está compreendendo o que o outro está falando, para os japoneses. Em outras culturas, menear de cabeça pode não ter qualquer tipo de significado. Será que alguém está pensando em criar as Guidelines on head nodding?
Outros fatores importantes, como a produção de provas e a preparação (ou não) de testemunhas são fenômenos culturais, com questões éticas envolvidas, e também procedimentais, pois os institutos são diferentes no common law e no civil law, como já escrevi7.
Não obstante, esses fatores culturais às vezes não são tão aparentes, visto que não estão descritos nem em leis nem na história recente dos países. O melhor exemplo é o da mentalidade dos orientais e dos ocidentais, conforme descrita por Mark Spitznagel. Segundo ele, temos uma mentalidade de xadrez, enquanto os orientais têm uma mentalidade de Go – um jogo tradicional da China em que o objetivo é conquistar território (o tabuleiro), e não destruir peças8. Em outras palavras, nós, os ocidentais, somos levados a acreditar que a melhor defesa é o ataque, enquanto os orientais, apoiados principalmente pelas ideias de Sun Tzu, sabem que às vezes deve-se atrair o oponente para um terreno mais propício e, depois, ataca-lo.
Outro ponto – bastante polêmico – que eu insisto em discutir é o complexo de vira-lata do brasileiro9. O termo foi cunhado pelo escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues quando da derrota da seleção brasileira para o Uruguai na final da Copa de 1950, em pleno Maracanã. Ele escreveu que “o brasileiro é como um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem”. Temos a tendência de nos vermos como vira-latas enquanto deificamos estrangeiros, principalmente americanos e europeus, e os idealizamos como cães de raça. Nosso complexo de inferioridade é um espectro que está sempre nos assombrando com maior ou menor intensidade. Por exemplo, pode-se citar a discussão sobre o Programa Nuclear Brasileiro10 e a derrota para a Alemanha na Copa de 2014 – que gerou inclusive o ditado “sete a um todo dia” para se referir às mazelas do nosso país.
Há algumas recomendações que podem ajudar a lidar com o choque de culturas e se tornar um melhor advogado (ou árbitro) atuante na área. A primeira seria a participação em Moot Courts. A experiência no Willem C Vis Moot e em sua versão oriental, bem como nos eventos preparatórios, fará com que o futuro profissional comece a se acostumar com diferentes culturas e modos de pensar (e os vários meneares de cabeça), criar uma rede de contatos internacionais e praticar inglês jurídico em situações de nervosismo e desconforto. A experiência é especialmente importante para derrubar o mito de que estudantes de universidades famosas, como as da Ivy League ou Oxbridge, são melhores. A oportunidade é aberta tanto para estudantes quanto para graduados, de todas as idades, que atuarão como árbitros.
Outra recomendação seria aprender múltiplos idiomas, principalmente não latinos. A língua mãe influencia o modo de pensar da pessoa (e não o contrário). No japonês, por exemplo, muita coisa ou não é dita ou é dita com palavras que têm inúmeros sinônimos, cabendo ao interlocutor entender seu significado pelo contexto da situação (algo como “ler a atmosfera”); na língua russa, as cores apenas podem ser “claras” ou “escuras”, o que torna os falantes desse idioma “cegos” para a imensa variedade de tonalidades que existe entre claro e escuro11; no alemão, além de ser uma língua em que se pode fazer neologismos a torto e à direito, como é o caso da própria palavra para arbitragem comercial – Handelsschiedsgerichtsbarkeit –, a própria lógica da língua é diferente; não é o sujeito que pratica a ação, mas a ação que exerce sua influência sobre o sujeito. Por exemplo: não se diz “estou com frio”, mas “está frio para mim”.
Estudar e trabalhar no exterior também é necessário para quem deseja atuar internacionalmente12. Opções não faltam. Pode-se cursar, por exemplo, o LL.M, que é um curso de dois semestres com TCC – que não precisa ser apresentado. Há faculdades, como a Pepperdine, que oferecem LL.M especializado em métodos alternativos de resolução de disputas. Esses cursos são altamente práticos e profissionalizantes, mas também há opções para acadêmicos. Eles podem, por exemplo, fazer seus doutoramentos (SJD) ou estágios pós doutorais (visiting scholar) no exterior. Cursos de férias e intercâmbios são boas opções para graduandos.
Seguindo essas dicas e melhorando suas soft skills, é grande a chance de melhorar seu desempenho em métodos de resolução de disputas internacionais.
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1 John M. Barkett & Jan Paulsson, “The Myth of Culture Clash in International Commercial Arbitration”, 5 FIU L. Rev. 1 (2009) available at:<_https3a_ _ecollections.law.fiu.edu2f_lawreview2f_vol52f_iss12f_5="">
2 Horacio A. Grigera Naon, “Cultural Clashes in International Arbitration: How Much of a Real Issue?” in Miguel Ángel Fernández-Ballestros and David Arias (Eds), Liber Amicorum: Bernardo Cremades. La Ley: Wolters Kluwer España, 2010, pp. 557 - 560 as cited in Ian Meredith, Hendrik Puschmann. “Notes on the Cultural Dimension of International Commercial Arbitration”, SAR, March 2016
3 Jan Paulssen, “International Arbitration is not Arbitration”. Stockholm International Arbitration Review, 2018:2, p. 3
4 Fica a recomendação para os artigos de Karen Mills, “Cultural Differences & Ethnic Bias in International Dispute Resolution: An Arbitrator/Mediator’s Perspective”, prepared for Chartered Institute of Arbitrators, Malaysia Branch International Arbitration Conference, 2006 (Kuala Lumpur, 31 March - 1 April, 2006) e de Lara M. Pair, “Cross - Cultural Arbitration: Do the differences between cultures still influence international commercial arbitration despite harmonization?”.ILSA Journal of International & Comparative Law: Vol. 9 : Iss. 1 , Article 2 available at
6 Klaus Peter Berger and Center for Transnational Law, “The Creeping Codification of the New Lex Mercatoria” (2nd edn, Kluwer Law International Aspen 2010) 3.
7 Idem. 4.
8 The Dao of Capital: Austrian Investing in a Distorted World (Wiley; Edition: 1 (august 16, 2013))
9 O interessante documentário “O complexo de Vira-latas” pode ser assistido aqui
10 Foi justamente acerca dessa polêmica que o jornalista Larry Rochter, ao escrever para o NY Times, em 2004, trouxe de volta o conceito do viralatismo.
11 Olivia Goldhill. “The language you speak changes the colors you see”. 7 de novembro de 2018.
12 Recomendo a leitura da coluna “Estudar Direito Fora”, do JOTA.
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*Alex Souza é graduando pelo Unirio e membro do CJA/CBMA.