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O imbróglio das associações para proteção veicular

O mercado automotivo passa e passará por profundas mudanças, o que torna necessário que as seguradoras e o órgão regulador repensem o mercado de seguro auto, bem assim, contribuam para o consumo consciente, compartilhando informações sobre o mercado e sobre os produtos – o que contribuirá, naturalmente, para o declínio de tais associações e adequar-se-á ao futuro.

6/6/2019

Depois de ouvir um debate que tratava a respeito do assunto mencionado no título deste artigo é que me peguei a refletir sobre o tema que, parece-me, reclama maiores ações do órgão regulador e do mercado, para além da reflexão e crítica, tão somente, à atuação das famigeradas associações.

Em meados dos anos 2000 surgiram organizações, denominadas associações, que vendiam a ideia de proteção veicular mais acessível aos proprietários de veículos automotores. Tais associações alastraram-se no país, sendo bastante numerosas no estado de Minas Gerais.

O mecanismo é o seguinte: o indivíduo associa-se a uma dessas várias associações e partilha o prejuízo, em caso de roubo, furto ou perda total do veículo, mediante o pagamento de uma mensalidade que comporá o mútuo recolhido pelos associados.

O mote principal de tais associações é atrair o consumidor por meio de valores de mensalidades baixíssimas e por meio da aceitação de riscos que em alguns casos não são aceitos pelas seguradoras ou são precificados de maneira diferenciada.

A grande discussão que teve início lá atrás – e ainda hoje persiste – é o fato de que tais organizações, travestidas de associações ou cooperativas, em verdade, comercializam seguro.

Como é sabido, apenas seguradoras (e cooperativas em algumas hipóteses), legal e devidamente constituídas para tanto, em consonância com o decreto-lei 73/66, é que podem comercializar seguro, submetendo-se à regulação da SUSEP (Superintendência de Seguros Privados)1.

Nessa esteira, a SUSEP reservou um espaço em seu sítio eletrônico para alertar os consumidores sobre o fato de tais associações não comercializarem seguros genuínos, uma vez que não estão regularmente constituídas para esse fim2.

Por conta da preocupação do órgão regulador, está em tramitação no Congresso um projeto de lei (3139/15), que prevê a inclusão de dispositivos que expressamente vedam a atuação de tais associações, não obstante o teor do artigo 36, já mencionado.

O referido Projeto prevê a inclusão do seguinte parágrafo, na redação do art. 24 do decreto-lei 73/66:

“§2º Ficam proibidas a constituição, operação, comercialização, venda e realização de contratos de natureza securitária, por associações, demais cooperativas e clubes de benefícios, pessoas naturais e jurídicas, que ofereçam, também, quaisquer produtos que prevejam coberturas, ressarcimentos, indenizações e proteção para quaisquer fins, inclusive aqueles que sejam assemelhados ou idênticos aos de seguros de danos ou de pessoas, assim como instituir e administrar fundos mútuos, para as finalidades aqui descritas.”.

Não obstante, a SUSEP já mobiliza-se para tentar impedir o funcionamento de tais associações, uma vez que não só representa concorrência desleal com as seguradoras – à medida que elas devem se submeter a rigorosos procedimentos que permitam sua atuação no mercado – e representam perigos diversos aos consumidores desavisados, posto que essas organizações não constituem reserva e não estão sujeitas a regras para comercialização de seu “produto”.

Em recentíssima decisão3, o Superior Tribunal de Justiça restabeleceu sentença da 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro, proibindo uma associação mineira de comercializar seu “produto”, porque viola o sistema legal brasileiro vigente para comércio de seguro. O acórdão é de relatoria do Ministro Og Fernandes e assevera o seguinte:

“A questão desta demanda é que, pela própria descrição contida no aresto impugnado, verifica-se que a recorrida não pode se qualificar como "grupo restrito de ajuda mútua", dadas as características de típico contrato de seguro, além de que o serviço intitulado de "proteção automotiva" é aberto a um grupo indiscriminado e indistinto de interessados, o que resulta em violação do dispositivo do art. 757 do Código Civil/02, bem como dos arts. 24, 78 e 113 do decreto-lei 73/66.”.

A associação fia-se ao argumento de que ela funciona como um “grupo de ajuda mútua”, ao que o Ministro, acertadamente, rebateu da seguinte maneira:

“Ocorre que, para que se pudesse reconhecer o estabelecimento de uma sociedade de seguro mútuo, conforme Maria Helena Diniz, "era o valor do seguro que determinava o valor das cotas de cada associado, levando-se em consideração a existência de riscos diferentes" (Op. cit., p. 577). Sendo assim, levar-se-ia em consideração "a idade de cada associado ao entrar para a sociedade, se incidisse sobre a vida; o maior ou menor perigo do lugar em que se encontravam os efeitos segurados, se se tratasse de seguro de bens materiais" (Op. cit., loc. cit.).

Não é o caso do produto disponibilizado pela parte recorrida, pois, pela própria descrição feita no aresto impugnado, existe em verdade o pagamento de "franquia", além de que "constam as coberturas e planos oferecidos ('proteção básica' e 'proteção completa'), com diferenciais relativos a 'seguro contra terceiros', carro reserva e 'fenômenos da natureza'". E ainda acrescenta que "em caso de furto ou roubo, o valor a restituir será aquele constante da tabela FIPE, na data do evento (fl. 74)".”.

Assim, concluindo que não há amparo legal para a maneira como atua a associação recorrida, determinou o restabelecimento da sentença proferida na ação promovida pela SUSEP, para o fim de declarar ilícita a atividade da aludida associação, com determinação de suspensão imediata de suas atividades, sob pena de multa.

A referida decisão ainda não transitou em julgado, pendente julgamento de embargos de declaração opostos pela associação4.

Veja-se, assim, que a discussão sobre se tratar o “produto” comercializado por essas associações de seguro ou não está superada. Claro está que seguro não é, sem respeito à legislação que hoje rege tais atividades no país. É um seguro travestido, camuflado. Não é seguro como determina a lei.

O que, a nosso ver, necessita ser repensado, é a atuação do mercado segurador e do órgão regulador, a fim de melhorar o comércio de seguro auto e o acesso ao consumidor.

Há no país mais de 500 (quinhentas) associações5 com perfil semelhante àquela ré na ação promovida pela SUSEP, é dizer, aquela demanda cuja decisão dá conta da gravidade na atuação dessas associações não terá o condão de sanar o problema que elas representam.

E não é de estranhar a proliferação de tais organizações, tendo em conta que menos de 50% da frota de veículos automotores brasileira é segurada. Em verdade, os números são alarmantes: mais de 70% da frota brasileira não é segurada.6 São mais de 30 milhões de veículos. O motivo é, principalmente, o valor do prêmio.

Por isso, é urgente que o mercado segurador, em conjunto com o órgão regulador e o Conselho Nacional de Seguros Privados, repense sua atuação, com olhos voltados não só ao consumidor que precisa de acesso a preços mais interessantes, mas, também, ao novo mercado que tende a se formar, constituído de jovens com cada vez menos interesse em adquirir automóvel – abrindo espaço à proliferação de serviços de locomoção como Uber, Cabify, etc, compartilhamento de veículos – e do não tão distante veículo autônomo, já funcionando em países como Estados Unidos e China7.

O assunto não é novo e já houve alertas no mesmo sentido:

“Estima-se que cerca de 500 mil veículos estejam vinculados às associações. Isto é um sinal claro que a sociedade quer proteção e está exigindo – a seu modo – mudanças na forma de se operar seguros. Manter os olhos fechados para esta realidade trará, para além de prejuízos econômicos, um gigantesco risco de perda da credibilidade da instituição do seguro.”8

O mercado automotivo passa e passará por profundas mudanças, o que torna necessário que as seguradoras e o órgão regulador repensem o mercado de seguro auto, bem assim, contribuam para o consumo consciente, compartilhando informações sobre o mercado e sobre os produtos – o que contribuirá, naturalmente, para o declínio de tais associações e adequar-se-á ao futuro.

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1 Art 36. Compete à SUSEP, na qualidade de executora da política traçada pelo CNSP, como órgão fiscalizador da constituição, organização, funcionamento e operações das Sociedades Seguradoras:

a) processar os pedidos de autorização, para constituição, organização, funcionamento, fusão, encampação, grupamento, transferência de contrôle acionário e reforma dos Estatutos das Sociedades Seguradoras, opinar sôbre os mesmos e encaminhá-los ao CNSP;

2 Disponível aqui. Acesso em 16/4/2019.

3 STJ (Superior Tribunal de Justiça). Recurso Especial nº 1.616.359-RJ (2016/0194359-4). Relator Ministro Og Fernandes. J. 21 jun. 2018.

4 Cf. andamento no sítio do STJ: disponível aqui. Acesso em 16/4/2019.

5 Cf. Revista Quatro Rodas: https://quatrorodas.abril.com.br/auto-servico/cooperativas-de-seguro-um-negocio-entre-amigos/. Acesso em 16/4/2019.

6 Fontes: aqui e aqui. Acesso em 16/4/2019.

7 Fonte: aqui. Acesso em 16/4/2019.

8 SILVA, Raquel Ferreira da. Revista Apólice. 2012. aqui. Acesso em 16/4/2019.

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*Janaina Andreazi é advogada do escritório Chalfin, Goldberg, Vainboim & Fichtner Advogados Associados.

 

 

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