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Análise critica sobre o instituto da coisa julgada administrativa

Uma reflexão sobre a (in)existência da coisa julgada administrativa por meio de análises doutrinárias e jurisprudenciais, tendo como parâmetro a mudança de posicionamento do STF quanto às decisões dos Tribunais de Contas.

5/6/2019

1 Introdução

Para análise do tema proposto faz-se necessário definir o sistema jurisdicional adotado pelo ordenamento pátrio para que, assim, sejamos conduzidos à análise da coisa julgada no âmbito administrativo. Para isso também é mister que seja conceituada a coisa julgada em seus aspectos: formal e material. Para só então ser possível adentrar na temática proposta pelo presente trabalho; qual seja, coisa julgada administrativa.

O presente trabalho, longe de esgotar a problemática doutrinária trazida à baila, visa melhor compreender o instituto ora aplicado na seara administrativa. Para isso, apresenta conceituações doutrinárias de autores já consagrados.

Disso, é traçada uma abordagem em relação aos temperamentos à coisa jugada administrativa: seja pela aplicação dos princípios do processo judicial para os processos administrativos, seja pela constatação de a administração pública sofrer os efeitos da coisa julgada de decisões por ela proferida.

Por fim, passa-se à análise, não exaustiva, das decisões do tribunal de contas. Tribunal esse que pode sofrer controle jurisdicional com base em novos parâmetros traçados pela jurisprudência do STF.

 

2 SISTEMAS JURISDICIONAIS

Para que seja feita a análise da coisa julgada na seara administrativa se faz necessário que seja traçada a distinção entre os sistemas jurisdicionais. Existe dois sistemas administrativos; quais sejam: o sistema inglês e o sistema francês.

No sistema administrativo há a possibilidade de o Estado controlar os atos administrativos quando surgem controvérsias ou divergências acerca da legalidade ou ilegitimidade dos atos desenvolvidos no âmbito administrativo e praticados pelo Poder Público. Por sua vez, no sistema Francês, que também é chamado de Contencioso Administrativo, há uma vedação de que atos praticados pela Administração Pública sejam revistos pelo Poder Judiciário de atos da Administração Pública. Em sendo assim, litígio que advenha no âmbito de realização das funções administrativas serão solucionados pelos próprios órgãos administrativos.

Afirmam Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino que no sistema do contencioso Administrativo há uma dualidade de jurisdição: a jurisdição administrativa (formada pelos tribunais de natureza administrativa, com plena jurisdição em matéria administrativa) e a jurisdição comum (formada pelos órgãos do Poder Judiciário, com a competência de resolver os demais litígios).

No Brasil, há a opção em se adotar o sistema inglês, também chamado pelos seguintes sinônimos: sistema de jurisdição única ou sistema do controle judicial. Por esse sistema, todos os litígios, administrativos ou não, podem ser dirimidos pelo Poder Judiciário. Cabe ao Poder Judiciário dizer com definitividade o direito a ser aplicado ao caso concreto no exercício de sua tutela jurisdicional.

A adoção por esse sistema pelo direito brasileiro, inclusive foi insculpida como cláusula pétrea, conforme previsão no art.5º, inciso XXXV da Constituição da República, dispondo, in verbis: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Nesse dispositivo constitucional resta consubstanciado o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional ou do acesso à justiça, que dispõe que inexiste a obrigatoriedade de esgotamento da instância administrativa para que a parte possa acessar o Judiciário. Resta, pois, garantido o livre acesso ao poder judiciário.

Tendo como premissa a adoção do sistema de jurisdição única pelo ordenamento jurídico pátrio, somente há que se falar em coisa julgada no âmbito do Poder Judiciário. Isso porque, sempre que o administrado se sentir lesionado em seu direito ou sob a ameaça de vê-lo lesionado pode se valer de demando no Poder Judiciário, quer tenha iniciado ou esgotado a via administrativa.

 PRINCÍPIOS   DO   PROCESSO  JUDICIAL  APLICADO  AO PROCESSO ADMINISTRATIVO

Para cada espécie procedimental, a exemplo os processos administrativos e os judiciais, há princípios próprios que os norteiam. Essa especificidade principiológica se deve ao fato de ser diferentes as funções que lhes são atribuídas. Mas há que se destacar pontos em comum, cita-se, em rol exemplificativo: princípios da competência, do formalismo (mais ou menos acentuado), do interesse público, da segurança jurídica e da razoabilidade.

Há que se incluir a incidência do respeito à segurança jurídica que serve de fundamento às regras que impõem respeito aos direitos adquiridos, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, bem como aos prazos de prescrição e decadência, além das regras legais sobre preclusão. Traça-se, dessa forma, limites à utilização de princípios do processo judicial no processo administrativo.

A coisa julgada administrativa, que em tópico próximo será devidamente conceituada, tem sentido diverso quando contraposta à coisa julgada judicial, o que é defendido doutrinariamente pela professora Maria Sylvia di Pietro. Isso se deve ao fato de estar consagrado em nossa Constituição Federal o princípio da unidade de jurisdição em seu artigo 50, XXXV.

Quando de sua atuação, a Administração Pública acaba por incorporar princípios do processo judicial no trâmite de suas ações. Indaga-se o motivo de transpor princípios do processo judicial para o processo administrativo. A resposta perpassa pela adoção no direito administrativo brasileiro do sistema europeu- continental, em especial no direito francês, em que existe o sistema de dualidade de jurisdição. Convive, ao lado da jurisdição comum, a jurisdição administrativa. As duas jurisdições possuem igualmente competência para proferir decisões com a definitividade da coisa julgada.

É, pois, correto aplicar os institutos da prescrição, preclusão e da coisa julgada à jurisdição administrativa. Mas há que se fazer a ressalva da não adoção pelo Brasil do contencioso administrativo, o que faz com que haja sempre a possibilidade de revisão da decisão administrativa ser revista por meio de um controle judicial. Dessa forma, a transposição de institutos há que ser ressalvada tendo por base as peculiaridades de cada processo. Mas visa-se, sim, que não haja o prolongamento da discussão administrativa por tempo indefinido de forma a dar azo à insegurança jurídica.

 

 CONCEITUAÇÃO DE COISA JULGADA

 A coisa julgada visa proteger situações já consolidadas no passado e tem por escopo a proteção da segurança jurídica. Conforme os ensinamentos de Nelson Nery Junior:

“Depois de ultrapassada a fase recursal, quer porque não se recorreu, quer porque o recurso não foi conhecido por intempestividade, quer porque foram esgotados todos os meios recursais, a sentença transita em julgado. Isto se dá a partir do momento em que a sentença não é mais impugnável.” NERY JUNIOR, N. NERY, R. M. A. Código de processo civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor. 3ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997.

 Segundo o entendimento do jurista Celso Ribeiro Bastos:

“Coisa julgada é a decisão do juiz de recebimento ou de rejeição da demanda da qual não caiba mais recurso. É a decisão judicial transitada em julgado.” BASTOS, Celso. Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22ª Edição, São Paulo: Saraiva, 2001.

 

 Vicente Greco Filho também define coisa julgada:

A coisa julgada, portanto, é a imutabilidade dos efeitos da sentença ou da própria sentença que decorre de estarem esgotados os recursos eventualmente cabíveis.” GRECO FILHO. Vicente. Direito processual civil brasileiro. 2º V. São Paulo: Saraiva, 1996.

 

 

Definida a coisa julgada como sendo a decisão da qual não caiba mais recurso, sendo, pois, dotada do fenômeno da definitividade, há que se destacar o seu importante destaque eis que prevista como garantia fundamental pela Constituição Federal de 1988, conforme o disposto no art. 5°, inciso XXXVI, a saber: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

Quanto à classificação da coisa julgada subdivide-se em duas espécies: coisa julgada material e coisa julgada formal. A coisa julgada formal é endoprocessual na medida em que seus efeitos são restritos ao próprio processo do qual se originou. Tem como momento de formação a impossibilidade de interpor recursos contra a sentença contra a qual impugna-se. Para Moacyr Amaral Santos define a “coisa julgada formal consiste no fenômeno da imutabilidade da sentença pela preclusão dos prazos para recursos” (SANTOS, Moacir Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 3º V. São Paulo: Saraiva, 1989). A coisa julgada material, por sua vez, tem seus efeitos para fora do processo, na medida em que impede a propositura de uma mesma demanda com tríplice identidade para com aquela que foi decidida. Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart definem coisa julgada material:

“Quando se alude à indiscutibilidade da sentença fora do processo, portanto em relação a outros feitos judiciais, o campo é da coisa julgada material, que aqui realmente importa e constitui, verdadeiramente, o âmbito de relevância da coisa julgada.” MARINONI, Luiz Guilherme e ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento, 5º edição, ver., atual. -São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2006.

 

A coisa julgada referida na Constituição de 1988 é a coisa julgada material, e não a coisa julgada formal, conforme assevera o jurista José Afonso da Silva:

“Dizemos que o texto constitucional só se refere à coisa julgada material, em oposição à opinião de Pontes de Miranda, porque o que se protege é a prestação jurisdicional definitivamente outorgada. A coisa julgada formal só se beneficia da proteção indiretamente na medida em que se contém na coisa julgada material, visto que é um pressuposto desta, mas não assim a simples coisa julgada formal.” AFONSO da Silva, José, Curso de Direito Constitucional Positivo, 19 ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2001.

 5 COISA JULGADA ADMINISTRATIVA

Tema controvertido em sede doutrinária e jurisprudencial que restou consolidado no sentido de inexistência de coisa julgada material no âmbito administrativo, em razão da adoção pela Carta Política brasileira do princípio da inafastabilidade da jurisdição. Tendo como análise o direito administrativo, é aceitável apenas a coisa julgada formal, por, após o encerramento do processo com o não cabimento de novos recursos nessa via, tornar a sentença imutável para aquele especifico processo administrativo.

A coisa julgada equivale à decisão que se tornou irretratável pela própria administração. Mas, há que se evidenciar que a decisão não se torna definitiva para as partes que podem sempre se socorrer à esfera jurisdicional. A coisa julgada administrativa, desse modo, na esteira do eminente doutrinador José dos Santos Carvalho Filho, significa tão-somente que determinado assunto foi decidido definitivamente na via administrativa, embora possa sê-lo na via judicial. Conclui-se que o instituto em analise indica a mera irretratabilidade dentro da administração ou a preclusão da via administrativa para o fim de alterar o que foi decidido por órgãos administrativos.A maneira mais simples de definir a coisa julgada administrativa é a adotada por Diógenes Gasparini: "Quando inexiste, no âmbito administrativo, possibilidade de reforma da decisão oferecida pela Administração Pública, está-se diante da coisa julgada administrativa". (Direito administrativo. 16ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 1040) Corrobora no sentido de reconhecer à coisa julgada administrativa eficácia apenas na esfera administrativa, sendo passível de revisão pelo Poder Judiciário, os ensinamentos de Theodoro Júnior:

“Os órgãos que julgam os procedimentos instaurados perante Tribunais como, v.g., o Tribunal de Contas e o Conselho de Contribuintes, proferem decisões definitivas, para a esfera da Administração. Não adquirem, entretanto, a indiscutibilidade própria da ‘res judicata’, de sorte que, instaurado o processo judicial, o Judiciário não estará impedido de reapreciar o conflito e dar-lhe solução diversa da decretada pelo órgão administrativo.

Inexiste, entre nós, a verdadeira coisa julgada administrativa, porque, por força do preceito constitucional, nenhuma lesão ou ameaça a direito será excluída da apreciação do Poder Judiciário (CF, art, 5, XXXV). A este cabe o monopólio da jurisdição, perante a qual se alcançará a ultima palavra em termos de solução dos litígios (inclusive os que envolvam a Administração Pública).” THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil- Teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. Ed.52. Rio de Janeiro: Forense, 2011. P. 540.

 

 A coisa julgada não tem o mesmo efeito que nos processos judiciais, já que a decisão administrativa é passível de apreciação pelo Poder Judiciário, em razão da previsão do princípio da unidade de jurisdição consubstanciado no artigo 5°, XXXV, da Constituição Federal. Por ser sempre possível recorrer ao Poder Judiciário para a reanálise de uma decisão tomada na seara administrativa, a coisa julgada administrativa não é dotada de definitividade, haja vista a possibilidade de o administrado provocar o Judiciário. Há, ainda, uma estrita relação entre a coisa julgada administrativa e a segurança jurídica, na medida em que confere proteção aos administrados de uma rediscussão da matéria  decidida e que  produziu os efeitos da imutabilidade no âmbito administrativo.

 INEXISTÊNCIA DA COISA JULGADA NAS DECISÕES DO TRIBUNAL DE CONTAS

A partir de tudo que já foi, até aqui, abordado, o presente trabalho, longe de sanar discussão doutrinária sobre o tema, conclui pela inexistência da coisa julgada administrativa no sentido técnico processual do instituto. No processo civil há definitividade da decisão por meio do exercício da jurisdição a partir de uma estrutura tríplice formada pelas partes e pelo juiz imparcial. Diferente do que ocorre no âmbito administrativo em que há uma relação bilateral, figurando a Administração Pública, como parte e juiz ao mesmo tempo.

 

Dessa feita, no Direito Administrativo, a expressão coisa julgada apresenta sentido diferente quando comparada ao Direito Processual. No âmbito administrativo, a expressão coisa julgada confirma a força vinculante apenas para a própriaAdministração, vez que a Administração Pública não pode se valer de recurso de sua própria decisão para que seja a matéria reanalisada pelo Poder Judiciário. Não  que se possibilitar à administração se socorrer do Poder Judiciário a fim de reverter uma decisão por ela proferida em seu desfavor, na medida em que reconheceu direito do administrado.

 

No que concerne ao princípio da estabilização das relações jurídicas, a decisão do Tribunal de Contas que pelo decurso dos prazos recursais ou pelo esgotamento dos recursos torna-se irretratável, operando a preclusão da possibilidade de reexame na via administrativa, pode, portanto, ser considerada coisa julgada administrativa, em consonância com assentada doutrina. Sobre as decisões dos Tribunais de Contas, Humberto Theodoro Junior colaciona fragmento da decisão do STJ que teve relatoria do ministro Relado José Delgado:

 

No a âmbito do Tribunal de Contas, por exemplo, a decisão que aprecia as contas dos administradores de valores públicos faz coisa julgada administrativa no sentido de exaurir as instancias administrativas, não sendo mais suscetível de revisão naquele âmbito. Não fica, entretanto, excluída de apreciação pelo Poder Judiciário, porquanto nenhuma lesão a direito pode ser dele subtraída (...). A apreciação, pelo Poder Judiciário, de questões que foram objeto de pronunciamento pelo TCU coaduna-se com a garantia constitucional do devido processo legal, porquanto a via judicial é a única capaz de assegurar ao cidadão todas as garantias necessárias a um pronunciamento imparcial.” (STJ, 1ª T., RESP. 472.399-0/AL, Rel. Min. José Delgado, DJU de 19.02.2001, p.351) THEODORO JUNIOR, Humberto.

Curso de Direito Processual Civil- Teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. Ed.52. Rio de Janeiro: Forense, 2011. P. 540.

 

A doutrina e jurisprudência atual definem que as decisões dos Tribunais de Contas são meramente administrativas, não sendo, pois, capazes de formarem a “coisa julgada judicial”. O monopólio da jurisdição é do Poder judiciário, por isso, há que se atribuir às decisões das Cortes de Contas a formação apenas da “coisa julgada administrativa”. Nesse sentido a professora Maria Sylvia Zanella di Pietro ensina que:

 

“(...) a função de julgar as contas não se trata de função jurisdicional, porque o Tribunal apenas examina as contas, tecnicamente, e não aprecia a responsabilidade do agente público, que é de competência exclusiva do Poder Judiciário.” DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17.ed. São Paulo: Atlas, 2003. p.639.

 

Dessa feita, não há que se falar, no ordenamento jurídico brasileiro em coisa julgada administrativa - onde também estão presentes as decisões proferidas pelo TCU - uma vez que os atos por este proferidos no âmbito da apreciação de prestações de contas podem ser revistos pelo Judiciário. Cabe ao Poder Judiciário examinar os atos administrativos de qualquer natureza, gerais ou individuais, unilaterais ou bilatérias, vinculados ou discricionários, tendo sendo como critério de analise a legalidade, mas, há a possibilidade também de análise no tocante às questões relativas à moralidade, à proporcionalidade e razoabilidade conforme previsto pela Constituição, arts. 5º, inciso LXIII, e 37.

 

Ao prever a competência privativa das Cortes de Conta em julgar as contar dos administradores responsáveis por bens e verbas públicas, a Constituição Federal excepciona o princípio da unidade de jurisdição. Isso porque o ato de julgar não será de um órgão constitucionalmente investido na função típica de julgar, Poder Judiciário, mas sim essa competência é atribuída a outro órgão; Tribunal de Contas. Caberá, assim, ao Tribunal de Contas o julgamento do mérito da demanda tendo por parâmetro o rito processual e garantias do devido processo legal.

 

Assim, a formação da “coisa julgada administrativa” resulta do esgotamento da matéria somente nas instâncias administrativas, podendo ainda ser apreciada pelo Poder Judiciário. O fundamento do referido entendimento é o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, que está positivado no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal, in litteris: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

 

No âmbito dos atos administrativos, há espécies de atos que conferem ao administrador a atuação com discricionariedade. Em relação a esses atos sempre houve discussão quanto à possibilidade ou não de controle pelo Poder Judiciário. Isso porque a atuação discricionária do administrador se encerra no campo do mérito do ato administrativo. Nessa seara, está-se tendendo à uma maior, por parte dos tribunais brasileiros, gerência pelo Judiciário, sendo, pois, passíveis de serem revistos. Para tanto baseia-se em princípios como proporcionalidade, moralidade, eficiência, e, ainda, Teoria dos Motivos Determinantes.

 

A possibilidade de anulação das decisões proferidas pelas Cortes de Conta quando se está em análise vícios formais é pacifica na doutrina e na jurisprudência. Se for observado que na margem procedimentos do processo administrativo foi inobservados procedimentos de forma e rito, há sim a possibilidade de a decisão ser anulada por determinação judicial. Como exemplo cita-se a verificação de cerceamento da ampla defesa nos procedimentos desses Órgãos de Controle que pode vir a ensejar a anulação desse processo administrativo por decisão judicial. A decisão proferida em sede do Mandado de Segurança 22116 é exemplo dessa possibilidade de gerencia do Poder Judiciário no âmbito das decisões proferidas pelo TCU. O plenário do STF decidiu pela anulação da decisão do TCU que julgou ileal a concessão de aposentadoria sob a motivação de não se ter respeitados os direitos constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Para o STF em caso de ter-se passados mais de cinco anos após ter-se concedido a aposentadoria, a reanálise pelo TCU, concluindo pela ilegalidade do ato concessório, só pode ser feita se oportunizada a ampla defesa e o contraditório.

 

Mas, o que vem se observado na atual posição do STF sobre o tema é a possibilidade de revisão das decisões do TCU não só nas questões que encerram vícios formais de procedimento, mas, também, passa-se a ser permitido um analise sobre as questões de mérito que foram enfrentadas no processo administrativo. Assim, no que se refere aos vícios materiais havia prevalência jurisprudencial no sentido de que ao Poder Judiciário só seria cabível revisar as decisões do TCU em caso de serem essas proferidas com manifesta ilegalidades. Concluía-se, assim, a possibilidade de gerência pelo STF das decisões do TCU apenas relativas às questões manifestamente ilegais ou inconstitucionais; posicionamento esse que vem sofrendo mudança nos tribunais brasileiros.

 

ALTERAÇÃO DO ÂMBITO DE CONTROLE DAS DECISÕES DO TRIBUNAL DE CONTAS À LUZ DE NOVA JURISPRUDÊNCIA DO STF

 

Há acirrada discussão doutrinaria e jurisprudencial acerca dos limites da atuação do Poder Judiciário na apreciação de julgados das Cortes de Contas. Tradicionalmente, o STF restringia a sua possibilidade de revisão à aspectos de forma e de manifesta ilegalidade das decisões dos Tribunais de Contas, o que pode ser exemplificado pelo seguinte julgado que teve como relator o Ministro Henrique D'Ávila:

 

 

“Tribunal de Contas - apuração do alcance dos responsáveis pelos dinheiros públicos - ato insuscetível de revisão perante a Justiça comum - Mandado de Segurança não reconhecido. Ao apurar o alcance dos responsáveis pelos dinheiros públicos, o Tribunal de Contas pratica ato insuscetível de revisão na via judicial, a não ser quanto ao seu aspecto formal ou tisna de ilegalidade manifesta.” STF. Mandado de Segurança (MS) nº 7.280. Relator: Min. Henrique D'Ávila.

 

Nesse sentido a revisão das decisões do TCU no que concerne à sua competência privativa no julgamento da prestação de contas públicas apenas poderia ser feita tendo por parâmetro questões de ilegalidade procedimental. Não haveria porque se falar em um reexame de mérito, ficando a decisão do judiciário restrita à forma.

 

A mudança de posicionamento da jurisprudência moderna se verifica no sentido de possibilidade cada vez maior de intervenção no mérito das decisões das Cortes de Contas. Para isso, fundamenta-se essa ampliação de controle no princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional. Nesse sentido, encontram-se julgados que enfrentam o mérito de decisões do Tribunal de Contas mesmo não sendo latente a ilegalidade. Engendram-se nas questões meritórias das decisões mesmo em casos em que não existem vícios claros e mesmo não sendo as questões, no julgamento administrativo, controversas.

 

Vislumbra-se, a título de exemplo, decisão da primeira turma do TRF da 5º região que proferiu acórdão no qual destaca a competência do Judiciário para analisar as aludidas decisões sem fazer a ressalva de que a ilegalidade deve ser necessariamente manifesta, in litteris:

 

“As decisões dos Tribunais de Contas podem ser objeto de controle judicial não apenas quanto à formalidade de que se revestem, mas inclusive quanto a sua legalidade, considerando-se que tais decisões não fazem coisa julgada, que é qualidade exclusiva das decisões judiciais como decorrência da unicidade de jurisdição de nosso

sistema constitucional. Não há como eximir as decisões dos Tribunais de Contas da análise judicial, quando a Constituição Federal impõe a inafastabilidade do controle judicial de qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito, como princípio.” TRF5 - Apelação Civel: AC 380126 PE 2005.83.02.000431-8. Relator(a): Desembargador Federal Élio Wanderley de Siqueira Filho (Substituto). Órgão Julgador: Primeira Turma. Julgamento: 11/07/2007.

 

 

O STF, nesse sentido, tem apreciado processos e termina por concluir na anulação de questões de mérito que foram julgadas pelos Tribunais de Contas. Cita- se a reanalise do Procedimento Licitatório Simplificado para a Petrobrás (previsto no decreto 2.745/98) pelo STF. Em apertada síntese, o TCU não aceita a adoção desse procedimento simplificado, exigindo que a licitação seja realizada nos moldes da lei 8.666/93. Com base nessa discordância, gestores da Petrobrás têm ajuizado Mandados de Segurança com pedidos de liminar (com êxito) perante o STF para suspender a decisão do TCU e assegurar a realização dos Procedimentos Licitatórios Simplificados. Em decisão liminar proferida pela Ministra Ellen Gracie no MS 28.745 fiou garantido a continuidade da realização dos procedimentos simplificados até que fosse enfrentado o julgamento de mérito pelo plenário do STF. Desse feita, contrariou o que havia ficado decidido pelo TCU, invadindo o mérito da demanda e não se restringindo tão somente ao controle de aspectos legais. A decisão da douta ministra afirmou que a adoção de procedimento simplificada seria possível em razão da relativização do monopólio do petróleo, o que permitiria uma maior agilidade nos procedimentos internos a fim de garantir igualdade de concorrência entre a Petrobrás e empresas privadas exploradoras de petróleo, vez que “a livre concorrência pressupõe a igualdade de condições entre os concorrentes”. Decisão essa que culminou com a elaboração de lei regulamentando o procedimento licitatório simplificado a ser seguido pelas empresas estatais: lei 13.303/16. Mas o que quer aqui ser demonstrado, não são as especificidades e alterações da regulamentação aplicada às estatais, e sim, o posicionamento de ministros do STF em permitir a adoção do procedimento licitatório simples pela Petrobrás, suspendendo as decisões meritórias do TCU que determinavam a adoção da lei 8.666/93.

 

Dessa forma, evidencia-se que o antigo posicionamento do STF de não adentrar no mérito dos julgados das Cortes de Contas, em hipóteses que não há manifesta ilegalidade, vem sendo superado. Essa superação, encerra por concluir pela inexistência de coisa julgada administrativa, posicionamento adotado pelo presente artigo. Tendo como suporte principiológico a inafastabilidade da tutela jurisdicional, o Poder Judiciário pode sim rever as decisões dos Tribunais de Contas analisando os aspectos tanto formais, quanto materiais das decisões administrativas, não se limitando essa revisão a manifestas ilegalidades. Dessa feita, mesmo em questões de mérito controversas, pode o Poder Judiciário reanalisar o conteúdo decisório das decisões dos Tribunais de Contas, eis que inexiste na seara administrativa coisa julgada, pela permanente possibilidade de revisão judicial de seus julgados.

CONCLUSÃO

 

Por todo o exposto no presente artigo, sem pretensão em esgotar o tema, conclui-se pela inexistência da coisa julgada administrativa. Essa conclusão se desenvolve em torno da adoção da unidade de jurisdição pelo sistema jurídico brasileiro e pela mudança de entendimento jurisprudencial quanto à possibilidade de reanálise das questões administrativas de mérito pelo Poder Judiciário.

Com a adoção do Sistema de Jurisdição Única, no Brasil,  que se possibilitar um amplo controle a ser realizado pelo Poder Judiciário, a incluir não só questões formais de legalidade procedimental, como também questões meritórias. Esse controle de mérito, que se apresenta como uma evolução jurisprudencial, culmina na derrogação dos limites à apreciação do mérito das decisões dos tribunais de contas pelo poder Judiciário. Frente a expansão da matéria a ser reexaminada pelo Poder Judiciário, é forçoso concluir no sentido de inexistir coisa julgada no âmbito administrativo nos termos conceituais de tal instituto processual.

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CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

Plenário anula decisão do TCU que julgou ilegal aposentadoria de ex-professor do IBGE. Mandado de Segurança (MS) nº 7.280. Relator: Min. Henrique D'Avila. Petrobras obtém liminar para continuar adotando procedimento licitatório simplificado

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*Mirella Vargas Lorentz é pós-graduada em direito público e direito civil e processual civil, e ex-servidora do TJ/MG.

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