Migalhas de Peso

Atividade rural e recuperação de empresas

Observações sobre a III Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal

5/6/2019

1. A III Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal

Noticia-se para o início do mês de junho entrante a realização dessa jornada, com o fim da aprovação de inúmeros enunciados sobre diversos aspectos desse ramo do direito, uma parte deles relacionados à recuperação judicial do produtor rural.

Em primeiro lugar, cabe uma pergunta, qual a razão da Justiça Federal cuidar do assunto acima, considerando-se que sua competência a esse respeito se revela extremamente marginal?. Que interesse de um produtor rural justificaria a atração de alguma pendência para aquela justiça especial?

Em segundo lugar, sabemos que a construção de súmulas pelos tribunais sempre representa um perigo para a aplicação do direito considerando-se que a singeleza de sua reduzida redação muito frequentemente deixa de lado situações concretas cuja aplicação foge das relevantes nuances do caso concreto, tendo se passado a aplicar um direito automático, desligado da realidade jurídica. Na vida prática, têm as súmulas de tornado um atalho para a prolação de sentenças rasas e incompletas. Contudo, para o bem ou para o mal, as súmulas fazem parte oficial do nosso direito e quando os magistrados as utilizam o fazem na aplicação de uma fórmula objeto de legislação específica.

Mas os enunciados, o que são? Qual é a sua natureza jurídica? A esse respeito várias críticas podem ser feitas: (i) eles não apresentam legitimidade, pois lhes falta fundamento legal que os reconheça no plano do direito formal; (ii) padecem do vício de origem, pois seu nascimento se dá em eventos que não são dotados de poder legiferante, ainda que cobertos, como é o caso, pelo véu de uma entidade ligada à Justiça Federal; (iii) são sujeitos à captura por terceiros interessados, que não podem ser considerados isentos em sua elaboração, bastando para tanto examinar a história jurídica de alguns dos seus proponentes; (iv) já têm sido adotados em sentenças judiciais como atalho no caminho de sua elaboração, prescindindo-se da discussão do tema em jogo o qual, em tese, já estaria disciplinado por uma força superior.

No sentido do item III, acima, claramente se está buscando um tipo de aval para teses de grande importância que estão sendo atualmente discutidas no âmbito do Judiciário. Nos parece ser essa uma atitude juridicamente não muito bem defensável. Comparando-se as situações alguns autores de propostas de enunciados aparentam fazer o mesmo papel de congressistas que apresentam projetos de lei casuisticamente elaborados para a defesa de certos eleitores, não sendo raro o caso de em tal atitude se utilizarem do artifício exclusivamente brasileiro da jabuticaba.

Está presente, ainda, um ponto sumamente importante que se coloca no plano da existência de um claro conflito de interesses na aprovação dos enunciados de que se trata. Isto porque podem votar em seu favor os proponentes dos próprios enunciados, uma vez que as regras do certame não trazem impedimento em tal sentido. Na mesma situação colocam-se os magistrados que participarão do evento, uma vez que eles estariam transformando em norma (ainda que não formal) o conteúdo das convicções que já tenham quanto aos enunciados propostos ou que venham a ser conduzidos em seu favor durante as discussões a serem estabelecidas. E esta, como já dissemos se encontram em situação de captura.

Essa captura potencial (e, ao que achamos, já estabelecida na prática) está indubitavelmente comprovada pelo fato de que a participação no evento vem de convite formulado pelo ministro Diretor do Centro de Estudos Judiciários após aprovação da coordenação científica; por  indicados por alguns órgãos, a saber,  TRFs, TJs, TRTs, MPF e MPE, PGR, AGU, OAB, Defensoria Pública, Associações de Magistrados, CADE, CVM e INPI; não nos esquecendo dos autores das propostas tempestivamente encaminhadas e aceitas para discussão. Aceitas, com que critério?

2. Introdução geral ao tema

Segundo o Digníssimo ministro Dias Toffoli, Presidente do Supremo Tribunal Federal, não cabe ao Judiciário julgar conforme o que considere mais justo; o Judiciário deve seguir a lei, ou seja, aplicar as normas jurídicas respeitando a redação.

Dessa perspectiva, quem pretende que as pessoas que exercem atividade agrícola/rural são empresários - independente de terem cumprido o requisito previsto no Código Civil de 2002, art. 967, que requer a inscrição no Registro de Comércio para invocarem a aplicação da legislação especial – lei 11.101/05 - literalmente ignora o pronunciamento do ministro e, pior, desconhece o mínimo de hermenêutica jurídica.

Basta ler com atenção, claro, o artigo 966 do Código Civil, e seu parágrafo único, para entender que, desde logo, o legislador afastou a possibilidade de serem empresários pessoas que exerçam atividades de natureza intelectual, literária ou artística, ainda que com a colaboração de terceiros. A ressalva a tais atividades para que sejam qualificadas como empresariais depende de o exercício de tais profissões serem atividade de empresa.

Aqui cabe observar que o legislador de 2002 considera sinônimos os termos empresa e atividades, anteriormente qualificadas como comerciais. Por isso, ao fazer a ressalva, considera hipóteses de exceções que permitam qualificar quem exerça atividade de natureza intelectual, por exemplo, como empresário comercial e, portanto, sujeita a registro, ou seja, no Registro de Empresa sempre que o exercício da profissão (leia-se atividade econômica) for qualificável como atividade empresarial.

Assim, como explicara Sylvio Marcondes Machado, atividades na área da saúde como a hospitalar, em que à prestação dos cuidados médicos se associam hotelaria, farmácia e alimentação. Vale dizer, o eixo ao redor do qual se organizam os serviços hospitalares, está no cuidado da saúde. Médicos e outros profissionais de saúde são os responsáveis pela prestação dos serviços. As atividades “complementares”, como farmácia (fornecimento de medicamentos), restaurante (alimentação), hotelaria (leito e lavanderia), tipicamente mercantis, são, porém, essenciais para os cuidados com pacientes. E, tal como se deu com o surgimento do Direito Comercial, a vis atrativa se sobrepõe, na qualificação da atividade hospitalar, aos serviços de saúde – de natureza intelectual -.

Em suma, certas atividades econômicas voltadas para a produção ou circulação de bens no mercado, não podem ser qualificadas empresárias/comerciais, salvo se tiverem natureza empresarial o que depende não de vontade do julgador ou de quem a exerce, mas do quadro normativo ou institucional.

Todavia, o legislador de 2002 determinou que ANTES DO INÍCIO DA ATIVIDADE, fosse feito registro no Registro Público de Empresas Mercantis - as Juntas Comerciais. (art. 967 CCB) para que ela se reconheça, dando origem à qualificação visando a dar publicidade ao mercado. Essa exigência não é meramente formal para fins de regularidade do exercício da atividade empresária, mas destina-se a dar àquela atividade natureza empresarial. Cria, portanto, a empresa no sentido que o termo tem no direito positivo pátrio. O registro cria a empresa mercantil.

Falta, no direito positivo brasileiro, artigo equivalente ao 2.195 do codice civile, ou ao 17 do revogado Regulamento nº 737 de 1850 o que tornaria mais transparente os critérios para o reconhecimento das atividades sujeitas ao registro especial – Junta Comercial.

Já quanto às atividades rurais/agrícolas foi afastado seu enquadramento como empresa (mercantil) conforme resulta da simples leitura e aplicação, por evidente, do art. 971 do CCB. Nesse texto o legislador, CLARAMENTE, explica que, conquanto não esteja enquadrada expressamente na relação das atividades exemplificadas no parágrafo único ao art. 966 do CCB, a atividade rural não é qualificada ab initio como comercial, observadas as formalidades de que tratam o art. 968 e seus parágrafos, podendo adquirir tal natureza se o ruralista vier a requerer sua inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, ou seja, do local em que a atividade é exercida. Se o fizer, depois de inscrito, estará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito ao registro.

O termo “equiparado” tem como objetivo evidenciar, deixar claro, que atividades rurais/agrícolas não são, por natureza, empresariais no sentido do disposto no Código Civil Brasileiro, ou seja, comercial. Serem equiparadas, isto é, entendidas como empresárias, implica conceder paridade, conferir regalias ao alcance de outras pessoas ou entidades.

Ou seja, a atividade agrícola/rural, não é, por decisão de política legislativa, atividade empresarial/comercial mas, diferentemente do que se dispôs em relação a atividades relacionadas no parágrafo único ao art. 966, mediante clara e expressa manifestação formal do empreendedor, pode ser equiparada à empresa. Para tanto é fundamental que sejam atendidas as demais exigências predispostas para a empresa comercial, notadamente o registro ANTES do início da atividade.

Esse requisito enseja questão relevante quanto à decisão de quem exerce atividade rural sobre ser, ou não, equiparado a empresário porque o legislador não fixou lapso temporal para que a decisão, a escolha, seja feita para fins da referida equiparação. Vale dizer, tanto se pode optar pelo registro especial antes do início da atividade quanto posteriormente o que faz emergir a questão de saber se o registro produz efeitos ex ante.

Há quem pretenda que se o ruralista optar pelo registro ex post, isto é, depois do início da atividade agrícola, sem considerar o lapso temporal entre as duas decisões, a aquisição da natureza empresarial (comercial) da atividade retrotrai ao seu início. Apenas para fins de comparação, isto equivaleria a considerar que a pessoa que em algum momento opta pelo vegetarianismo nunca teria ingerido carne, ou que o furto praticado por maior de idade retroage no tempo e, como não se condenam menores de 10 anos, por exemplo, a pessoa não deve ser punida.

Enquanto pessoas que não exercem atividades rurais assim como as que não preencham os requisitos do parágrafo único ao art. 966 do CCB devem fazer o registro antes do início do exercício da atividade econômica, os ruralistas têm o privilégio de poderem optar por se qualificarem como empresários a qualquer momento. Mas, o texto do CCB não prevê que a opção pela mudança da qualificação possa ser aplicada de forma retroativa. E isso independe da inscrição fiscal e até mesmo da continuidade e regularidade do exercício da “profissão”. A aquisição da qualificação como empresário rural tem como ponto inicial o registro.

Não é possível recorrer-se a um único artigo do CCB para afirmar categoricamente que o Registro de Comércio tem efeitos pretéritos como se expôs atrás.

Acresça-se a esse raciocínio a exigência da lei 11.101/05 quanto ao lapso temporal de exercício da atividade empresarial – dois anos após o registro – para que se possa, em situação de crise, recorrer ao pedido de recuperação judicial.

Combinado o CCB com a lei especial, a conclusão é simples. Ruralistas podem escolher serem regidos por normas especiais ou se submeterem à legislação geral. Optando por esta, ficam impossibilitados de recorrer ao instituto da recuperação judicial. Se preferirem a regência da legislação especial, devem, igualmente, cumprir o prazo de 2 anos determinado na lei de 2005, sob pena de ser criar dicotomia na obtenção da tutela legal.

Explica-se. Alguém que exerce atividade qualificável como empresária, sem registro, ao enfrentar situação de crise poderia efetuar o registro e, independente do prazo de 2 anos, buscar socorrer-se da recuperação judicial ou a este agente econômico aplicar-se-iam as normas de direito positivo?

Ao facultar a ruralistas que, em situação de crise econômico-financeira, busquem abrigo na legislação especial, alterando voluntariamente a sua primeira opção, cria-se modelo não isonômico que gera insegurança jurídica, de todo indesejável para estimular a confiança ao longo da cadeia produtiva e o bom funcionamento do mercado.

3. A crítica de alguns enunciados, em particular

Vejamos duas das propostas apresentadas, voltadas para a questão específica deste artigo.

Artigo: 48

Enunciado Proposto:  

A atividade empresarial rural sem registro é regular, conforme art. 971 do Código Civil. O empresário rural pode provar o prazo de 2 anos de regularidade exigido no caput do artigo 48 da lei 11.101/05 por qualquer meio de prova, não sendo exigido que tal prazo se dê em período posterior ao seu registro perante o Registro Público de Empresas Mercantis para que o empresário rural possa ajuizar recuperação judicial ou extrajudicial.

Justificativa:  

O Brasil é um país de forte atividade agropecuária tem no agronegócio sua principal atividade exportadora. Tal atividade é em grande parte exercida por pessoas naturais ou jurídicas que não estão inscritas perante as Juntas Comerciais, conforme opção concedida pelo art. 971 do Código Civil. Existem diferentes posicionamentos na jurisprudência sobre a exigência ou não de prazo superior a 2 anos após registro comercial para permitir a recuperação judicial do empresário rural. O art. 48, caput da lei 11.101/05, no entanto, exige atividade regular por 2 anos do empresário e não registro por 2 anos. Esses exercentes da atividade empresarial rural são empresários regulares, pois o mencionado dispositivo do Código Civil estabelece expressamente que o empresário rural é empresário regular, podendo ou não se registar perante as Juntas Comerciais, diferentemente daquele que exerce atividade não rural, que é considerado irregular caso não tenha o registro. Assim, evidente que o empresário rural, mesmo sem registro, é regular e cumpre o requisito de tal artigo. Portanto, o empresário rural, mesmo que não tenha 2 anos de registro de comércio, pode provar sua atividade empresarial regular por qualquer meio de direto e ter acesso à recuperação judicial e recuperação extrajudicial, no sentido que já decidiu o TJ/SP em vários acórdãos, por exemplo: AI 2005580-50.2018.8.26.0000. Rel. des. Alexandre Lazzarini. DJ: 9/5/18; AI

2062908-35.2018.8.26.0000. Rel. des. Hamid Bdine. DJ: 04/07/18; AI 204834910.2017.8.26.0000. Rel. des. Araldo Telles. DJ: 30/10/17.

Enunciado Proposto:  

A RECUPERAÇÃO JUDICIAL DO EMPRESÁRIO RURAL SUJEITA TODOS OS CREDORES EXISTENTES NA DATA DO PEDIDO, INDEPENDENTEMENTE DA DATA DO REGISTRO NA JUNTA COMERCIAL.

Justificativa:  

O artigo 48, caput, da lei 11.101/05 não exige, como requisito para a impetração da Recuperação Judicial, a inscrição na Junta Comercial pelo prazo de 2 (dois) anos, mas apenas que o devedor, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos. Por sua vez, o inciso V do artigo 51 da mesma lei exige a comprovação de regularidade na Junta Comercial, mas não se refere a qualquer prazo. O artigo 971 do Código Civil preceitua como facultativo, ao empresário rural, o registro na Junta Comercial, após o qual ficará equiparado ao empresário sujeito ao registro. Portanto, a atividade do empresário rural pode se configurar regular mesmo sem o registro na Junta Comercial. Neste sentido, o empresário rural não necessita estar registrado na Junta Comercial há mais de dois anos para impetrar recuperação judicial. A análise dos dispositivos acima juntamente com o teor do artigo 49 da lei 11.101/05 permite a conclusão de que, independentemente da data do registro do empresário rural na Junta Comercial, todos os seus credores estarão sujeitos aos efeitos da recuperação judicial.

Observações:  

Aglutinada/Similar aos IDs 1918, 2126, 2105, 2095 e 2065.

Conclusão

Conforme foi extensamente demonstrado acima toda a argumentação expressa nas propostas desses enunciados distorcem a construção do instituto, delas resultando a quebra violenta de toda a história do Direito Comercial no tocante à natureza jurídica do registro, que vem desde a Idade Média, e com a qual não podemos absolutamente concordar.  

Esperamos que não venham a prosperar e que juristas responsáveis e isentos venham se juntar à nossa campanha de abaixo os enunciados!

____________________

*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio de Duclerc Verçosa Advogados Associados.

*Rachel Sztajn é professora sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Advogada em São Paulo.

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