Os trabalhos constituintes foram iniciados em fevereiro de 1987 para elaboração da nova Constituição brasileira e instalados pelo ministro Moreira Alves, como presidente da Suprema Corte, naquele momento. Após audiências públicas, nos primeiros meses, com especialistas, o trabalho de 24 Subcomissões, das oito Comissões, da Comissão de Sistematização e do Plenário, com poder revisional de todos os trabalhos, por força do grupo formado sob a liderança de Roberto Cardoso Alves, a Carta da República foi promulgada em 5 de outubro de 1988.
O Título IV foi dedicado aos poderes (arts. 44 a 135) Legislativo, Executivo e Judiciário, neles incluído, no Legislativo, o Tribunal de Contas e, no Judiciário, as funções essenciais à administração da Justiça representadas pela advocacia e Ministério Público.
À antiga estrutura do Poder Judiciário de primeira e segunda instâncias regionais e um Tribunal Federal de Recursos, alargada pela Constituição de 1967 e pela EC 1/1969 por varas federais, desaguando toda espécie de recursos sobre matéria não constitucional no Tribunal Regional Federal (TRF), acrescentou, o constituinte, os TRFs, em número de cinco, para atender as questões federais julgadas pela Justiça Federal de primeira instância, passando a estrutura do Poder Judiciário a ter cinco Tribunais Superiores (Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça – STJ, Tribunal Superior do Trabalho, Tribunal Superior Eleitoral e Superior Tribunal Militar), Tribunais Regionais em todos os Estados e varas de primeira instância especializadas, TRFs no Recife, Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, cobrindo grupos de Estados com suas varas federais. Todos os recursos pertinentes a tais tribunais de Estados e da União principiaram a ser endereçados ao STJ em matéria de legalidade e ao STF quanto às questões de constitucionalidade. Questões federais sem varas específicas em comarcas de menor população continuaram a ser atendidas pelas varas regionais.
A Justiça do Trabalho, constituída no TST, como terceira instância para questões de direito, respondia a recursos de 24 Tribunais Regionais do Trabalho, e a Justiça Militar do STM passou a ser exclusivamente dedicada às Forças Armadas, com juizados de primeira instância e os tribunais militares regionais voltados aos casos das polícias militares.
Por fim, o TSE – os Tribunais Regionais Eleitorais são mais antigos – dedica-se a supervisionar as eleições no país e as condições dos candidatos, com auxílio dos Tribunais Regionais e dos juizados eleitorais.
As competências bem definidas para cada tribunal e juizado na lei supra, pela especificação, praticamente eliminaram os conflitos desta natureza, tendo sido a grande novidade, no novo formato do Poder Judiciário no Brasil, a criação do STJ, sobre o qual falarei, agora.
A discussão, na Constituinte, sobre a criação de um Tribunal Superior que seria a Corte máxima sobre questões de legalidade era uma aspiração da classe dos advogados, que entendiam que o Tribunal Federal de Recursos, na sua função híbrida de Corte Superior dos Tribunais Regionais e segunda instância das questões federais, terminava por não atender as necessidades da dupla vertente de litígios regionais e federais.
Com a criação dos TRFs, ganhou, a Suprema Corte de legalidade, o seu nítido patamar de instância máxima de questões infraconstitucionais decorrentes da lei, assumindo só para questões de direito tais funções tanto para a Justiça Regional quanto para a Federal.
Assim é que as competências outorgadas pelo constituinte, originárias e de recursos ordinários e especiais, pelo art. 105 perfilaram, com nitidez, a atuação do STJ, com algumas alterações de redação no concernente aos mandados de segurança e habeas corpus, em sua competência originária (inciso I, letra b e c, do art. 105) determinada pela EC nº 23/1999, com acréscimo de competência quanto às sentenças estrangeiras, competência esta retirada do STF (letra i, inciso I, do art. 105); com alteração da EC 45/04; da redação para recursos especiais sobre validade de atos do governo local contra lei federal (letra b, inciso III, do art. 105 da EC 45/04); funcionamento da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados e do Conselho da Justiça Federal, com a redação da EC 45/04 para o parágrafo único do art. 105.
Três são, portanto, as competências originárias, recursos ordinários e especial da Suprema Corte da legalidade.
Os 33 ministros da Corte, divididos em três seções (Privado, Público e Penal), cada uma com duas câmaras e cinco ministros, têm, portanto, relevante papel em examinar as contestações em matéria de direito – a matéria fática não é reexaminada pelo STJ, a não ser em caso de evidente violência ao direito, segundo o princípio da razoabilidade – fazendo a primeira grande triagem, quanto aos recursos especiais e extraordinários simultâneos, por ser a matéria sub judice abrangente não só de questões contrárias à Carta Magna, como também de questões infraconstitucionais.
À evidência, alguns conflitos de competência podem ocorrer, mas o fato de o STJ examinar unicamente o recurso especial, sustando-se a subida do recurso extraordinário, tem evitado choques de competência recursal. A subida do extraordinário só se dá após seja negado seguimento do recurso especial ou seja o mesmo improvido, cabendo então ao Supremo examinar se há, efetivamente, matéria constitucional direta a ser examinada, e não apenas indireta, ou reflexa, e se há repercussão geral.
Tão logo promulgada a Constituição, os 27 ministros do TRF foram empossados no STJ, com nomeação de mais seis ministros (o antigo TFR era composto por apenas 27 ministros).
Lembro apenas que a cúpula do CNJ, que é composta por 15 conselheiros, representantes do Senado, Câmara dos Deputados, OAB, Ministério Público (seis conselheiros) e da Magistratura (nove conselheiros), é constituída por um ministro do STF (presidente), um do STJ (corregedor) e um do TST (eventual substituto em sessões dos dois).
Tornou-se, nesta estrutura do Poder Judiciário, o STJ, o segundo mais importante Tribunal Superior dos cinco definidos pela lei suprema (STF, STJ, TST, TSE e STM).
A experiência dos 30 anos da Constituição e de sua criação tem sido particularmente positiva. Por ter permitido a racionalização da subida de recursos de todo o país para reexame de questões à luz exclusivamente do Direito, salvo nas competências originárias, passando a ter papel relevante na administração da Justiça.
Tem-se criticado, sem razão, que, de rigor, o constituinte criou quatro instâncias para administração da Justiça, com o que os processos que deveriam ser mais céleres, por força da própria EC 45/04, teriam se tornado mais lentos. A crítica improcede, pois, de rigor, são duas instâncias distintas. O STJ é a instância máxima para questões de legalidade e o Supremo para questões de constitucionalidade. Se, todavia, as questões em discussão comportam o duplo exame pelo prisma dos dois patamares jurídicos de contestação, é melhor que se tenham bem delimitadas, como fez a Constituição de 1988, as competências sobre legalidade e constitucionalidade, do que manter-se uma considerável área nebulosa entre os dois campos, que o sistema anterior propiciava.
Em 30 anos do STJ, minha experiência como velho advogado formado há 60 anos (1958) é que se constitui em verdadeira conquista a auxiliar a administração de Justiça de forma racional.
Uma observação final, embora desnecessária, é que a qualidade dos ministros que compõem o STJ é a mesma que ostentam os integrantes do Pretório Excelso, onde temos reconhecidos luminares.
Neste particular, realmente, a Justiça brasileira está muito bem servida!
Uma palavra adicional, todavia, faz-se necessária sobre a discussão doutrinária acerca da maior atuação do Judiciário em campos que melhor estariam na competência do Legislativo.
Refiro-me ao consequencialismo, teoria que principia a ser admitida em tribunais e universidades.
Tanto essa teoria quanto o neoconstitucionalismo geram uma politização do Judiciário que, não poucas vezes, faz com que os juízes invadam competências próprias de outros poderes, com a judicialização da política. Com frequência, correntes minoritárias do pensamento político recorrem ao Judiciário para suprir a sua incapacidade de fazer prevalecer suas opiniões ou ideologias. Quanto mais o Judiciário age politicamente, tanto mais os políticos buscam o Judiciário para utilizá-lo como instrumento contra suas derrotas no Legislativo ou Executivo.
Pessoalmente, entendo que a Constituição de 1988 não albergou nenhuma dessas formas de ação do Poder Judiciário, como, de resto, tenho procurado demonstrar em artigos, embora reconhecendo que com limitado êxito.
Qual é a razão? A Constituição de 1988 foi fruto de uma intensa discussão entre a sociedade e seus representantes eleitos para elaborá-la, segundo a vontade popular, em face da recente saída de um Estado de exceção, caracterizado pelo governo militar.
Um exame mais detido do texto constitucional demonstra que a Lei Superior brasileira tem claros e escuros, princípios constitucionais relevantes, normas e regras sem densidade constitucional, excessiva generalização, adiposidade desnecessária e um longo elenco de disposições que se pretendia fossem de aplicação imediata, embora de difícil implantação.
Dois pontos, todavia, tornaram-se importantes, no novo texto da Carta da República: o equilíbrio entre os poderes, desejado pelo constituinte, a inserção de um elenco apreciável de garantias e direitos individuais. Esses pontos passaram a balizar o comportamento dos poderes a partir de 1988.
Segundo a Constituição Federal (CF), os poderes da República são harmônicos e independentes (art. 2º) entre si; o Supremo não pode invadir competências legislativas (art. 103, § 2º); o Legislativo pode deixar de obedecer a decisões da Suprema Corte que invadam sua competência (art. 49, inciso XI); se houver conflito entre poderes e um deles apelar às Forças Armadas, poderá demandar que reponham a lei e a ordem – nunca rompê-las – (art. 142); se o conflito for com o Executivo federal, o presidente da República, como parte no conflito, não poderá assumir o comando das Forças Armadas, mas só seus comandantes; as cláusulas pétreas devem ser respeitadas pelo Legislativo, que nem por emendas constitucionais pode revogá-las, assim como pelo Poder Judiciário, que não pode reduzi-las, de tal maneira que todo um sistema de freios e contrafreios foi criado para que os poderes sejam efetivamente harmônicos e independentes entre si (art. 60, §§ 4º e 2º, da CF).
Ocorreu, todavia, que, desde 2003, quando, num único mês, três ministros que marcaram história na Suprema Corte se aposentaram (Moreira Alves, Sydney Sanches e Ilmar Galvão), a Suprema Corte perdeu aquela característica de um colegiado, com a função maior de ser guardião da Constituição e a função decorrencial de dar estabilidade às instituições.
Nada obstante a qualidade indiscutível de todos os seus integrantes, o protagonismo individual que assumiram passou a permear muitas decisões, promovendo o avanço da insegurança jurídica, como ocorre sempre que a competência de atribuições de outros poderes é invadida. Com isso, a comunidade jurídica se encontra permanentemente em suspenso, temerosa de que, em algum momento, tal invasão venha a deflagrar um conflito que resulte no acionamento dos freios e contrafreios expostos no Texto Supremo.
Acresce-se que o Ministério Público – que não é poder, nada obstante o nível e qualidade de seus membros – tem, muitas vezes, envergado vestes próprias de um poder, gerando, também, instabilidade, visto que o Ministério Público é apenas uma função essencial à administração da Justiça, como o é a advocacia.
À evidência, manter quadros institucionais em que os representantes dos três poderes, em vez de agirem com harmonia e independência entre si, invadem competências uns dos outros deixa desprotegidos os direitos individuais, que deveriam ser assegurados na tríplice função montesquiana de respeito entre os três poderes. Ficam tais direitos e garantias, repetidas vezes, tisnados, principalmente o direito de defesa, cada vez mais atingido, num Estado Democrático de Direito, que deveria nele ter o alicerce maior da democracia.
É de se lembrar que o art. 1º da CF declara que o Brasil é um Estado Democrático de Direito, e o 2º, que os poderes são harmônicos e independentes. São os dois primeiros artigos que balizam os outros 250 artigos da Lei Suprema, mais os 114 das Disposições Transitórias.
Uma democracia só é plena se cada poder, no âmbito de suas atribuições, cumprir sua missão, com pleno respeito às competências alheias, colaborando com a sociedade para a construção de uma nação poderosa e estável institucionalmente.
E, na minha opinião, o consequencialismo jurídico não foi albergado pela nossa Lei Suprema.
À evidência, a discussão sobre esse tema tem envolvido mais a Suprema Corte que o Superior Tribunal, mas por serem ambos as instâncias máximas da constitucionalidade e da legalidade, a prevalência da teoria consequencialista pelo Pretório Excelso, de forma definitiva, provocaria, necessariamente, reflexos na corte da legalidade.
Reitero que, nesta análise, não se questiona a qualidade dos eminentes magistrados das duas cortes, reconhecidamente notáveis juristas.
Talvez, pela minha própria idade (84 anos), acostumado, por ter participado dos debates constituintes, a exaltar o art. 2º e suas características de independência e harmonia dos poderes, tenho me posicionado contra o consequencialismo jurídico, a fim de que não haja contaminação indevida nas competências claramente definidas pelo constituinte.
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O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXIX, nº 141, de abril de 2019.
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*Ives Gandra da Silva Martins, da banca Advocacia Gandra Martins, é professor emérito das universidades Mackenzie, Unip, Unifieo, UNIFMU, do Ciee/O Estado de São Paulo, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 1ª Região; presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio SP e fundador e presidente honorário do Centro de Extensão Universitária (CEU)/Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS).