Há uns anos fui para Itália para uma pequena peregrinação. É importante de vez em quando ficarmos sozinhos com nossos pensamentos. Na volta, no aeroporto de Roma, Fiumicino eu aguardava para embarcar. Após a chamada para o vôo, como eu estava sozinho e sem bagagem de mão, deixei para embarcar por último. A disposição do avião era dois, quatro e dois. Ou seja, duas poltronas nas extremidades e quatro no meio. A minha era a do corredor de uma das extremidades. O vôo estava lotado. Mais uma razão para eu ficar por último, pois o embarque iria demorar e eu estava ainda com dor no joelho da minha operação.
Cheguei ao meu lugar e estava sentado na poltrona ao lado um senhor de meia idade. Pedi licença e desculpas. Desculpas por não ser aquele ninguém que ele estava esperando e que lhe propiciaria um espaço maior para dormir. Era eu, um homem de 1,91 e mais de 100kg.
Ele deu muita risada e o gelo foi quebrado. Confessou que realmente estava torcendo para não vir ninguém. O papo foi longo antes da noite nada confortável na classe econômica do avião. Conversa vai, conversa vem, ele um italiano simpático e falante me contou sua história:
Seu nome era Luigi. Luigi era valente, mas às vezes temerário. A diferença, disse ele, entre o temerário e o valente está no fato da coisa dar ou não certo. Se deu certo foi valente. Se deu errado, temerário.
Eduardo era o seu filho mais novo. Nasceu com cabelo castanho claro, meio franzino. Chorava por tudo. O pai não se entendeu com este desde cedo. E a recíproca foi verdadeira.
A mãe, Sofia, a sabedoria encarnada na Terra, viu a situação incômoda entre os dois. Por isso deu a este filho um amor mais especial. Era a sua função compensar. E a exerceu magnificamente.
Eduardo cresceu com o amor incondicional da mãe, mas com olhares de repulsa recíproca trocados com o pai desde tenra infância. Os dois se toleravam. Era o máximo que conseguiam fazer. Havia uma pedra grande no meio do caminho entre eles. Ninguém sabia de onde vinha, nem tampouco como tirá-la. Um mistério.
Já com José era diferente. Ele era o mais velho, tinha o nome do avô. Sim, era tradição daquela família que o primogênito recebesse o nome do avô. Se o primeiro filho fosse mulher, bem, não importava. Mas se fosse filho homem, era certo o nome: do avô paterno. Símbolo de valentia. As candidatas às noras já sabiam durante o namoro desta tradição. Eram avisadas com antecedência, para não dar problema depois. Luigi deixava isso bem claro com a seriedade que depositava no ritual da família que já não se sabia quem havia criado. Mas era seguido e sagrado.
José respeitava a importância que o pai dava a esta tradição, mas não ele mesmo não se importava muito com ela. Não se achava especial e não tinha nem um pouco de ciúme do amor mais cuidadoso que sua mãe dava ao irmão mais novo. José sabia que Eduardo precisava dele.
José e o pai tinham uma identificação. Um respeitava muito o outro. Luigi via no José a extensão da sua própria vida. José via no Luigi, seu pai, seu protetor, seu ídolo.
Eduardo não se conformava com a idolatria do irmão junto ao pai.
“Como ele podia adorar aquele sujeito tão desprezível?” perguntava Eduardo ao seu travesseiro.
“Que raiva!” socava o colchão com força.
“Porque ele ama mais meu pai do que a mim”, resmungava em seus pensamentos.
Eduardo nutria admiração por seu irmão mais velho. José era bom. Um irmão querido que sempre o defendia nas brigas na escola, ajudava nas tarefas de casa, nas provas, mas o pai, ora o pai.
O pai não fazia nada, absolutamente nada que pudesse aliviar um pouco a sede de amor da alma de Eduardo, da qual ele mesmo sequer tinha conhecimento. E o pai pensava o mesmo dele. Pareciam se olhar no espelho por um ângulo que não gostavam. E isso durou anos. Eduardo vivia como se saciado estivesse, alegre, forte, com muito vigor e querido pelas mulheres. Depois que a natação aumentou seu corpo então, ele reinava. Mas se a conversa entrasse para o assunto “pai”, os adjetivos eram os piores possíveis e a fisionomia de traços belos, se transformava. Em um segundo estava naquela sala gelada da sua alma onde acostumava encontrar seu pai, mesmo em pensamento.
José, seu irmão quatro anos mais velho, dava a Eduardo o afeto que ele esperava do pai. Era uma pseudo pai que tapava precariamente o buraco da alma do caçula. Ele devia procurar este afeto no pai, porém certo é que se procurasse talvez não o achasse. Podia encontrar um tipo de afeto, mas diferente do desejado. Era-lhe então mais cômodo não procurar e reclamar em silêncio. Era melhor guardar sua rosa para si, até que o pai oferecesse a dele. As rosas de ambos estavam sozinhas e bem trancadas. Guardadas em um lugar qualquer esquecido e escondido na alma dos dois.
José e Eduardo cresceram. Cada um do seu jeito. José cursou engenharia, e Eduardo medicina. Os dois excelentes alunos. Sophia, a mãe, era incansável no auxílio dos dois na escola, além de dedicada esposa a Luigi, que nem sempre reconhecia o seu valor. O valente não gosta de ver a fragilidade da rosa e com isso perde a beleza que dela exalta.
O resultado do trabalho invisível da mãe veio com o tempo. A mãe cumpriu a sua função e a vida a premiou. Não pode ter melhor auto-estima para uma mulher que escolhe ser apenas mãe do que ver seus filhos indo bem. Aliás eles são, em boa parte, ela própria. O sucesso deles é o sucesso dela.
Ela sempre se enxergou nos dois filhos. Já Luigi tinha este sentimento apenas pelo mais velho. Esta era a dinâmica.
Porém, um dia um choque iria mudar esta dinâmica familiar para sempre.
Um acidente de carro feriu gravemente José. No Hospital, Eduardo, já cursando a residência, pode acompanhar seus professores no primeiro atendimento a seu irmão.
Os mestres estavam limitados à lei natural que submete a todos em qualquer tempo e lugar do mundo. O ser humano tem a natureza daquilo que adoece, não dá para não adoecer e tem a natureza daquilo que morre, também não dá para deixar de morrer, disse resignado Luigi. Disse que leu isso em um livro budista, e embora católico de carteirinha, achou isso bem inteligente.
Por detrás destas constatações óbvias da vida humana há um mistério que ninguém sabe. Há os que acham que sabe. Mas saber mesmo, ninguém. Algo que caminha por detrás das formas, mas que as influencia, dando-lhe movimento.
O pai, valente, neste dia do acidente, estava em viagem de negócios. Estava fechando um contrato de exportação de açúcar para a Bélgica que poderia mudar o cenário econômico da família. Mas enquanto os homens fazem seus planos, o mistério sorri.
E naquele dia, Luigi recebeu a notícia do acidente do seu filho, José. Justo o José! Após a notícia, sua valentia o aconselhou aguardar um dia para fechar o negócio e voltar. Acreditava que 24 horas seriam suficientes para ele assinar o contrato, seu filho melhorar e ele voltar. E assim o fez. Aguardou um dia, assinou o contrato e voltou. Após desembarcar em São Paulo foi direto para o excelente hospital do interior de São Paulo onde estava internado seu filho.
O vôo foi o mais longo de sua vida: dançavam desenfreados em seu espírito a alegria do fechamento do maior negócio da sua vida com o terror de seu filho mais velho no hospital. Já em solo brasileiro, pegou o carro e dirigindo em alta velocidade, ligava sem parar para sua mulher e seu filho, o mais novo. Estranhou que eles não atendiam. Algo estava errado. Chegou no hospital, falou balbuciando o nome do filho primogênito na recepção e foi correndo para o quarto. A cena falava por si só. Não precisava de palavras. Chegou tarde demais.
A natureza deu sua sentença soberana e de última instância apesar de todos os recursos médicos que a humanidade criou e que foram utilizados em José. A luz apagou, e Luigi, agora naquele instante, de valente não tinha mais nada. Estava arreado. Quebrado. Sucumbido. Esfacelado. Havia sido temerário em aguardar vinte e quatro horas. Naquele dia, estas horas lhe fizeram falta e por conta delas não pode se despedir de José.
Burocracias torturantes até o enterro pioraram o estado de Luigi. José, seu primogênito, justo o engenheiro que tinha a mesma profissão do pai, havia partido. Isso não estava no script imaginário que Luigi havia feito para si mesmo e para o filho. Sete palmos embaixo da terra separavam ele de suas lágrimas. Elas não podiam mais tocá-lo.
Depois de um tempo, todos os parentes distantes e amigos se foram. Ficaram só os três: Luigi, Eduardo e Sophia. Sophia não chorou. Parece que ela conhecia o mistério e a ele estava resignada. Deus deu, Deus tira. Simples assim. Agradeceu o tempo de vida do seu filho, agradeceu por ter vivido ele em vida. Agradeceu, agradeceu, e agradeceu. Ela havia aprendido com as mulheres da família que agradecer era uma forma de diminuir a dor inexorável do mundo a qual todos estão sujeitos. Aquela dor, daquele momento, era grande. Muito grande! Precisava agradecer muito. Muito mesmo! Dividindo os pensamentos bons dos ruins de Sophia estava uma linha invisível, fina e tênue. De um lado a paz celestial conquistada pelo amor, pela resignação e fortalecida com o mantra da gratidão e de outro a loucura. Ela preferia agradecer e assim os maus pensamentos perdiam força. A linha da loucura ficava mantida à distância, em um cantinho bem pequeno da sua alma. Era melhor não ir para lá, nem regar os maus pensamentos que ali se acotovelavam para expandirem, sufocados pela força do amor e da fé de Sophia que dominavam juntos o outro lado da linha.
Sophia respirou, pegou na mão do marido despedaçado e chamou Eduardo.
- Vamos, Edu! Vamos... em frente!
Eduardo ficou mudo durante toda a cerimônia. De óculos escuros sequer dava para saber se chorou. Seu pseudo pai havia partido. O buraco que ele tapava pela falta do afeto do pai, agora estava mais aberto do que nunca. Desejou, com toda força, poder trocar de lugar com o irmão. Porém não é assim que funciona no mistério. Não há este tipo de barganha.
Com o toque amoroso e cheio de calor das mãos de Sophia, Luigi recobrou os sentidos. Olhou ao lado e viu o que lhe restava. O filho franzino agora estava grande e bonito. E vivo. Mais vivo do que nunca. Algo mudou. A mulher com os braços abertos para acolhê-lo. Ela sabia o que ele sentia. Ele não tinha a mínima capacidade de chegar perto do que se passava no coração dela. Ele era homem valente. Não tinha tempo para as coisas de sentimento. Naquele momento ela conduzia tudo.
Saíram os três de perto do túmulo.
Um passo antes de sair do cemitério o pai, do pântano de sua dor achou um caule, segurou-se nele e olhou para o filho. Eduardo também olhou para ele profundamente, levantando vagarosamente os óculos escuros para que o pai tivesse clareza do que ele estava sentindo. (Os olhos são a janela da alma). Naquele instante, os dois, com a ajuda da força da tristeza da morte de José, removeram a pedra que havia entre eles, e trocaram, no mesmo instante e no mesmo olhar, as rosas escondidas a décadas. Elas vieram à tona em segundos e foram regadas pelas lágrimas ininterruptas dos dois homens. Sim, Eduardo já era um homem. Naquele momento mais maduro.
O Sacrifício vivido naquele dia teve ao menos um proveito. Era assim que se acreditava na antiguidade. O sacrifício tinha um objetivo de promover algo bom. E eles souberam aproveitar isso naquele momento.
A mãe, Sophia, viu tudo. E sua gratidão foi ainda maior. Ela esperou aquela troca de olhar por mais de vinte e cinco anos. Ela veio. E valeu esperar. O tempo do mistério é outro. Diferente do relógio.
Aqueles segundos abraçados duraram uma eternidade. Foram um bálsamo. Os três corações antes gelados se aqueceram por um tempo e seguiram. Deram mais um passo, saíram do cemitério e seguiram adiante. Luigi sem sua valentia e Eduardo, pela primeira vez, junto do seu pai, o verdadeiro.
Anos depois Luigi e Sophia tiveram um neto, filho de Eduardo. A criança foi batizada com o nome do avô, não por respeito à tradição familiar, nem muito menos como símbolo de valentia. Mas sim pela única e exclusiva vontade de Eduardo honrar seu pai, que além de amigo virou seu confidente. O nome do neto eternizara o amor que brotou na alma dos dois, alguns anos atrás. A rosa superou a valentia. Uma parte do mistério foi revelada.
Após estas horas de conversa, que foi o momento mais sagrado de minha peregrinação, dormi. Corpo apertado, mas a alma expandida.
__________________
*Paulo Thomas Korte é sócio do escritório Korte e Korte Sociedade de Advogados.