Do ponto de vista teórico e tendo em vista a especialização dos ramos e sub ramos do direito, no âmbito do processo civil as normas correspondentes deveriam assumir o papel de instrumentos idôneos para a realização do direito material. Muitas vezes não é o que acontece, seja por culpa do legislador, seja pela usurpação interpretativa extensiva ou restritiva do texto legal feita pelo Judiciário. Ora, no caso do presente tema veremos que o NCPC (lei 13.105, de 16/3/15, em vigor desde março/16) teria usurpado competência do CC/02, do que decorrerá certamente um embate entre estas duas fontes de direito perante as nossas cortes1.
No regime do CPC anterior a matéria era tratada no seu art. 1.218, VII, que remetia o tema da dissolução e liquidação de sociedades para as normas correspondentes do CPC de 1939 (arts. 655 a 674). A regra, como se sabe nas sociedades limitadas, diante da morte de sócios ou de desentendimento que não pudesse ser resolvido de forma amigável, era no sentido da dissolução total da sociedade, com a consequente extinção da empresa.
Bem ou mal, a evolução do pensamento da doutrina e os tribunais construíram uma tese em favor da preservação da empresa por meio da dissolução parcial, preservando-se a sua atividade, o interesse dos empregados e da economia como um todo, inclusive a manutenção de uma fonte de receita pública relativa aos tributos devidos.
O CNPC disciplinou em seus artigos 599 a 609 a chamada Ação de Dissolução de Sociedade, tendo deixado de tratar diretamente daquela voltada exclusivamente para a apuração de haveres. Observe-se que se um sócio reivindicou o direito de retirada logicamente ele não tem o direito de ajuizar uma ação de dissolução parcial, mas tão somente de pleitear os seus haveres. É interessante observar que o título da mesma matéria no CC/2002 observa uma nomenclatura mais condizente com a evolução da terminologia jurídica, onde tomou o nome de Resolução da Sociedade em Relação a um Sócio.
De outro lado estabeleceu-se um confronto entre o disposto no art. 1.027 do CC/02 e o parágrafo único do art. 599 do NCPC, que se antagonizam na solução determinada por cada um deles, conforme pode ser ver pela comparação abaixo:
CC/02 |
NCPC |
Art. 1.027 – Os herdeiros do cônjuge de sócio, ou o cônjuge do que se separou judicialmente, não podem exigir desde logo a parte que lhe couber na quota social, mas concorrerá à divisão periódica dos lucros, até que se liquide a sociedade. |
Art. 599, parágrafo único – O Cônjuge ou companheiro do sócio cujo casamento, união estável ou convivência poderá requerer a apuração dos seus haveres na sociedade, que serão pagos à conta da quota social titulada por este sócio. |
Em primeiro lugar, como foi dito acima, trata-se de colisão direta entre a norma de direito material do CC/02 com o direito processual do NCPC. Ora, do ponto de vista do bom direito, a norma do NCPC não pode prevalecer.
Em segundo lugar, a saída estabelecida pelo NCPC foi a pior possível porque permite que terceiro, não sócio, penetre na vida interna da sociedade para o fim de, no limite, poder levar à sua dissolução, conforme seja maior ou menor a participação no capital da sociedade do cônjuge ou companheiro, no caso em que o peso financeiro do seu direito recair sobre a cota do sócio. Essa solução corre diretamente em sentido contrário à tese da preservação da empresa, que foi criada no direito anterior e que vinha satisfatoriamente atendendo o interesse dos sócios remanescentes e dos terceiros interessados em sua participação nos lucros distribuídos pela sociedade.
No sentido acima não se pode aceitar que o art. 1.027 do CC/02 tenha sido revogado pelo dispositivo acima citado do NCPC.
O tema da legitimidade para a propositura da ação de dissolução parcial é tratado no art. 600 do NCPC e deveria ser tomado como concernente a numerus clausus, verificando-se que não existe ali um entendimento relativo a consistir em uma relação exemplificativa. Neste sentido, nos casos em que a lei não autoriza a exclusão extrajudicial, tal competência é da sociedade e não dos sócios ou de terceiros, conforme estabelecido (e já criticado) em relação ao parágrafo único do mesmo dispositivo.
Assim sendo, uma coisa é a competência para requerer a dissolução parcial, outra bem diferente é a pretensão da apuração de haveres.
Outro erro grave encontra-se no art. 604, 1º do NCPC, ao conceder ao juiz o poder de determinar à sociedade e aos seus sócios que nela permanecem a responsabilidade pelo depósito em juízo da parte incontroversa dos haveres devidos pelo antigo sócio. Como se percebe, está ausente dessa norma qualquer fato que possa levar concretamente à separação entre o patrimônio da sociedade (responsável pela obrigação pelo pagamento dos haveres pleiteados) e os patrimônios dos sócios. O efeito prático injustificado é o de uma desconsideração automática da personalidade jurídica da sociedade para responsabilização dos sócios, o que corresponde a um completo absurdo, mesmo que se trate de quantia incontroversa.
Outra interferência normativa indevida corresponde ao disposto no art. 599 do NCPC ao dispor que a ação de dissolução parcial de sociedade também pode ter por objeto a sociedade anônima de capital fechado quando demonstrado por acionista ou acionistas que represente cinco por cento ou mais do capital social que não pode preencher o seu fim. Essa norma está em confronto direto com o art. 206, II, “b da LSA, onde se estabelece que a companhia será dissolvida por decisão judicial quando provado que não pode preencher o seu fim, em ação proposta por acionistas que representem 5% ou mais do capital social.
A solução da LSA é logicamente coerente com o fato de que faltam à companhia condições financeiras para seguimento à sua atividade. É o caso, portanto, do seu encerramento e não de uma dissolução parcial que levaria apropriação indevida pelo sócio de importâncias que seriam utilizadas em pagamento aos credores, com inversão da equação social. Isto é, os sócios somente participam eventualmente do acervo da sociedade depois de pagos todos os credores e isto na proporção de suas ações. No mesmo sentido encontra-se o art. 1.034, II do CC/02, no qual foi estabelecido para as sociedades a ele submetidas a possibilidade (diríamos, a efetividade) de dissolução judicial quando o fim social estiver exaurido ou tiver sido verificada a sua inexequibilidade.
Por fim nesta parte, observe-se que a data da resolução da sociedade e o critério de apuração de haveres são tratados nos artigos 605 e 606 do NCPC, os quais poderão ser revistos pelo juiz, a pedido da parte, a qualquer tempo antes do início da perícia. Os art. 604 e 606 do NCPC estabelecem os critérios legais para a apuração dos haveres.
Ao dar ao juiz o poder de alterar tais critérios não estabeleceu o NCPC um “norte” para que isso possa ser feito, não sendo aceitável mudá-lo para outro ao seu inteiro alvedrio, o que importaria na penetração indevida no contrato social. No tocante à apuração de haveres, apenas o silêncio do contrato social poderia servir de base para o juiz criar outro critério economicamente razoável.
A data da resolução parcial, por sua vez, é tratada no art. 605, prevista para cinco casos ali relacionados. Além desses fatos, que outros poderiam dar ao juiz uma base para mudar os critérios ali previstos, uma vez que se trata de fatos perfeitamente bem delineados. A única solução racional a que se pode chegar é no sentido do esvaziamento do art. 607 do NCPC, mediante o reconhecimento de sua ineficácia2.
__________________
1 Vide a respeito, de Ricardo Ferreira Vigo, “Dissolução parcial de sociedade”, in Valor Econômico de 28.11.2.017 e de Pablo Gonçalves e Arruda, “A dissolução (total e parcial) de sociedade no novo CPCI, Migalhas de 01.03.2016.
2 Este texto integrará o Volume 2 da nova edição do Curso de Direito Comercial deste autor, a ser brevemente publicado pela Quartier Latin.
__________________