Migalhas de Peso

A MP da liberdade econômica e a sempre (e agora ainda mais) polêmica função social do contrato

O diagnóstico que se faz do formato adotado para a alteração promovida pela MP da Liberdade Econômica no texto do art. 421 do Código Civil não é, portanto, positivo, ainda que seu conteúdo possa favorecer o ambiente empresarial.

24/5/2019

O direito dos contratos sempre representou um palco de disputas teórico-ideológicas, fundadas nas mais diversas razões, sejam elas econômicas, políticas ou mesmo religiosas. Isso não é nenhuma novidade. Do ritualismo dos direitos arcaicos e do formalismo do direito romano, evoluiu-se ao consensualismo consagrado pelo direito canônico como o mote do contrato. Mais recentemente, de uma perspectiva liberal consagrada nas grandes codificações oitocentistas evolui-se para uma concepção solidarista, fundada no paradigma do Estado Social, que se consolidou ao longo do século XX, seja em codificações tardias, reformas legislativas dos códigos ou em leis esparsas. No contexto do direito contratual brasileiro, costuma-se relacionar o marco liberal individualista ao Código Civil de 1916 e o solidarismo à Constituição de 1988, ao Código de Defesa do Consumidor de 1990 e, finalmente, ao Código Civil de 20021.

É neste último contexto que se desenvolve o conceito de função social do contrato. Sua inserção no art. 421 do Código Civil de 2002 foi, sem dúvida, um dos pontos mais nevrálgicos dentre as inovações recentes do direito brasileiro. A doutrina, ainda hoje, após mais de 17 anos de vigência, ainda não tem precisão sobre seu real conteúdo e suas possibilidades de aplicação. A única certeza que até então se tinha era sua perspectiva teórico-ideológica claramente solidarista, relacionada à limitação da autonomia da vontade das partes e à mitigação dos princípios da obrigatoriedade e da reatividade em favor de valores externos aos interesses das partes2.

Com o advento da MP 881, no entanto, criou-se um verdadeiro "mosaico" teórico-ideológico no texto do art. 421, e nem mesmo essa certeza subsiste. A referida norma, alcunhada de "MP da Liberdade Econômica", entrou em vigor no dia 30 de abril de 2019, trazendo inúmeras inovações no ordenamento jurídico brasileiro. Ela representa uma relevante concreção jurídica da guinada neoliberal pautada pelo Governo Federal, atingindo diversos ramos do direito público e do direito privado. No campo do direito dos contratos, especificamente, a norma buscou atender a uma já antiga e legítima demanda por uma menor intervenção do Estado no programa contratual estabelecido pelas partes, sobretudo no que se refere ao âmbito das relações interempresariais. A nova redação do referido dispositivo determina que a liberdade de contratar deve se submeter a uma função social e também observar as disposições da Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, de matriz neoliberal absenteísta:

REDAÇÃO ORIGINAL

REDAÇÃO DADA PELA MP 881

Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

Art. 421.  A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica.

Se o art. 421 do Código Civil já trazia severas dificuldades de concreção normativa, com as modificações empreendidas pela medida provisória 881, a questão se tornou ainda mais complexa. A alteração legislativa criou um verdadeiro amálgama dos valores cristalizados na perspectiva teórico-ideológica solidarista da redação original do artigo com a nova proposta de cunho neoliberal, avessa à intervenção do Estado na dinâmica do contrato.

Ressalta-se que este novo ideário surgiu como uma reação àquele horizonte anteriormente estipulado na legislação, o qual, inegavelmente, produzia situações de insegurança jurídica prejudiciais à atuação dos agentes privados como um todo e aos empresários em especial. A colonização do Direito Civil por um raciocínio jurídico baseado em argumentações principiológicas e o abuso de evocações constitucionais e máximas de equidade metajurídicas vinham, já há algum tempo, gerando uma verdadeira "ressaca" na comunidade jurídica brasileira3. Uma reação nos moldes da "MP da Liberdade Econômica" era de se esperar. Quisera viesse ela em um contexto de maior debate democrático, por meio de projeto de lei, com a participação de juristas, de representantes de diversos grupos de interesses e da comunidade jurídica em geral, que será a destinatária final da nova norma.

A realidade, no entanto, é que a norma do novo art. 421 do Código Civil está posta, ao menos provisoriamente, e deve ser interpretada e aplicada. Resta saber se a "clássica" função social do contrato, em face da inovação legislativa, deve ser "relida" sob uma nova ótica neoliberal absenteísta ou se deve ser mantido seu conteúdo original de matriz solidarista e intervencionista, o qual deverá ser ponderado em face dos princípios colidentes trazidos pela Declaração de Direitos de Liberdade Econômica.

Em uma análise preliminar, parece ser a alternativa mais adequada a perspectiva segundo a qual a função social do contrato deve manter seu conteúdo original, afigurando-se, portanto, como um princípio em tensão para com a proposta neoliberal trazida pela Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. Essa conclusão se assenta em dois pontos. O primeiro deles refere-se a uma postura de respeito à própria sistemática e à tessitura normativa do Código Civil vigente. A Declaração de Direitos de Liberdade Econômica altera dispositivos pontuais do Código, mas a sua matriz estruturante segue sendo os princípios fundamentais da "eticidade, socialidade e operabilidade", conforme idealizado por Miguel Reale4. Nesse sentido, apresenta-se a alteração como uma norma de exceção dentro da estrutura do Código e, como norma de exceção, deve ser restritivamente interpretada5. É correto, portanto, considerar a nova norma como um adendo, e não como um substituto à clássica função social do contrato.

O segundo ponto sustenta-se em algumas pistas redacionais do dispositivo do art. 421 que apontam nesse sentido. Quisesse a MP da Liberdade Econômica substituir a função social por um novo paradigma liberal, o teria feito expressamente, e não apenas acrescentaria um novo comando em paralelo. Ademais, verifica-se pelo texto do dispositivo que existe uma construção semântica adversarial entre os dois conceitos: "a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica". Os dois conceitos ("função social" e "o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica") se opõe na redação, detendo, sobretudo a partícula "observando" um sentido claramente adversativo acerca do limite da função social em relação às disposições da Declaração de Direitos de Liberdade Econômica.

É preciso, ademais, pontuar que alterar normas de direito privado, sobretudo disposições do Código Civil e especialmente em um tema tão central quanto a teoria geral dos contratos por meio de medida provisória não parece um expediente muito adequado. A medida provisória é uma figura legislativa precária por sua própria natureza. Há sempre a perspectiva de sua derrubada ou substancial alteração pelo Congresso Nacional, gerando questões problemáticas de direito intertemporal que se revertem em insegurança jurídica. Inclusive, até o momento, já foram apresentadas no Congresso 301 emendas ao texto ora em vigor6.

Além disso, no caso específico da medida provisória 881, um outro fator de insegurança se soma. É difícil sustentar que a relevância e a urgência, cumulativamente exigidas pelo art. 62 da Constituição para que o presidente da República possa editar medida provisória, estejam, de fato, presentes na espécie, o que tem suscitado o olhar atendo da comunidade jurídica7. Nesse sentido, para além de uma possível rejeição ou alteração do conteúdo da medida provisória pelo Congresso Nacional, há o risco de uma igualmente possível contestação judicial da constitucionalidade formal da referida norma.

O diagnóstico que se faz do formato adotado para a alteração promovida pela MP da Liberdade Econômica no texto do art. 421 do Código Civil não é, portanto, positivo, ainda que seu conteúdo possa favorecer o ambiente empresarial. Isso porque, com respeito aos entendimentos em contrário, entende-se que a via eleita e o modo como se efetivou a alteração foram um tanto quanto questionáveis.

Utilizou-se do instrumento legislativo da medida provisória sem que se fizessem presentes os pressupostos autorizadores de sua edição. Por mais que seja este um expediente corriqueiramente utilizado pelos presidentes da República brasileiros há tempos, não se pode deixar de observar a incorreção desse proceder na perspectiva institucional de nossa democracia, bem como analisar o fato de que este vício torna ainda mais incerto o cenário delineado. No que se refere ao conteúdo da alteração empreendida, procedeu-se à formação de um amálgama de conceitos, um solidarista, outro neoliberal, que se tencionam dentro do enunciado de um mesmo artigo, gerando inconsistência teórica e incerteza interpretativa, sempre em prejuízo da segurança jurídica.

________________

1 ZANETTI, Cristiano de Sousa. Direito Contratual Contemporâneo – a liberdade contratual e sua fragmentação. São Paulo: Atlas, 2008.

2 THEODORO JÚNIOR, Humberto. O Contrato e sua Função Social. Rio de Janeiro: Forense, 2004; BODIN DE MORAES, Maria Celina. A Causa do Contrato. Civilistica.com, Rio de Janeiro, a. 2, n. 1., jan./mar., 2013.

3 RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. Estatuto epistemológico do Direito Civil contemporâneo na tradição de civil law em face do neoconstitucionalismo e dos princípios. Meritum, Belo Horizonte, v. 5, n. 2, jul./dez. 2010.

4 REALE, Miguel. Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”. Rio de Janeiro: EMERJ, fev./jun. 2002. pp. 40-41.

5 LEAL, Vitor Nunes.  Classificação das Normas Jurídicas. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, vol. 2., n. 2, 1945, p. 943.

6 Consulta realizada em 12/05-2019, às 18h36min. Dados disponíveis aqui.

7 Nesse sentido, a coluna de Flávio Tartuce publicada no dia 07/05/2019 neste mesmo periódico. Disponível em: A MP 881/19 (liberdade econômica) e as alterações do Código Civil. Segunda parte - teoria geral dos contratos, direito de empresa e fundos de investimento.

________________

*Henry Colombi é advogado do escritório Passos Sociedade de Advogados. Mestrando em Direito Civil pela UFMG.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

Estabilidade dos servidores públicos: O que é e vai ou não acabar?

19/11/2024

Quais cuidados devo observar ao comprar um negócio?

19/11/2024

A relativização do princípio da legalidade tributária na temática da sub-rogação no Funrural – ADIn 4395

19/11/2024