Migalhas de Peso

STF pode consertar sua “jurisprudência” sobre a trava de 30%

A Corte não apresentou fundamentos para enquadrar a compensação de prejuízo como benefício fiscal.

21/5/2019

Foi pautado pelo STF, para o próximo dia 29 de maio, o julgamento acerca da constitucionalidade dos arts. 42 e 58 da lei 8.981/95, que limitaram em 30% do lucro o montante para compensação de prejuízo fiscal e base negativa da CSLL (RE 591.340).

 

Considerando que em março de 2009, ao julgar o RE 344.994, o plenário do STF se manifestou pela constitucionalidade da limitação, existe dúvida se há chance efetiva de tal entendimento ser alterado.

 

Conforme relatório elaborado pelo ministro relator Marco Aurélio, no RE 344.994 o contribuinte arguiu violação aos princípios da capacidade contributiva, irretroatividade, anterioridade e segurança jurídica, bem com à garantia do direito adquirido. Ao proferir seu voto, em 11.11.2004, o ministro afirmou que não examinaria eventual afronta ao princípio da capacidade contributiva, haja vista a ausência de prequestionamento da matéria no tribunal de origem.

 

Adentrando ao mérito, o ministro exarou voto para reconhecer a inconstitucionalidade do art. 42 da lei 8.981/95, garantindo o direito do contribuinte de compensar integralmente o saldo de prejuízo acumulado, afastando-se a “trava de 30%”.

 

Em síntese, o ministro entendeu que a limitação à compensação configura tributação sem a existência de lucro real, pois, se “é encontrada renda que, em vista dos prejuízos acumulados, é absorvida, não se encontra o indispensável fato gerador do tributo, faltando, por isso mesmo, base de cálculo”.

 

Além disso, afirmou-se que a “trava de 30%” ganha contornos próprios de empréstimo compulsório, pois a “colocação dos prejuízos em simples estado latente, em mera reserva, abstraindo-os no cálculo da renda a ser tributada, implica, em última análise, antecipação do tributo, e não cobrança”.

 

De fato, a partir do momento em que há limitação ao aproveitamento do prejuízo fiscal acumulado, obrigando o contribuinte a tributar como lucro 70% da parcela que, na foto de determinado ano-calendário, foi superavitária, esquecendo-se que tal parcela pode não ter sido capaz de fazer frente aos prejuízos acumulados nos anos anteriores, tem-se por inegável que a tributação não recairá sobre o lucro, mas sobre o patrimônio. 

 

A atividade da pessoa jurídica é contínua, devendo ser levada em conta, para fins de verificação quanto à obtenção de renda, todo o seu período de vida, eis que a apuração com base anual/trimestral é apenas um controle para fins de fiscalização e arrecadação. Para verificar se a empresa teve lucro ou prejuízo, mostra-se necessário observar todo o período em ela que funcionou, devendo incidir IRPJ e CSLL apenas se houver acréscimo patrimonial.

 

Em outras palavras, para que seja possível identificar se o contribuinte obteve acréscimo patrimonial, é importante entender a sua existência não como uma foto do ano-calendário, mas sim como um vídeo que abarca todo o período em que esteve em atividade.

 

Dando sequência ao julgamento, o ministro Nelson Jobim afirmou que o direito à compensação de prejuízo seria mero benefício fiscal, motivo pelo qual poderia ser limitado ou até mesmo extinto. Essa conclusão foi expressada oralmente e não teve qualquer justificativa. Ou seja, o ministro em momento algum apresentou fundamentos aptos a enquadrar a compensação de prejuízo como benefício fiscal. Aliás, por ser o Presidente da Corte à época, aquele ministro sequer votou formalmente.

 

Ato contínuo à manifestação do ministro Nelson Jobim, a palavra foi repassada ao ministro Eros Grau, que, ao abrir a divergência, assim se manifestou: “Sr. Presidente, entendo que se trata de um benefício. Pelas razões que Vossa Excelência acabou de expor, nego provimento ao recurso”.

 

Após pedido de vista, o julgamento foi retomado em 25/3/09, ocasião em que a ministra Ellen Gracie apresentou voto para acompanhar a divergência e encampar o posicionamento de que a compensação de prejuízo representaria benesse fiscal. Novamente, nenhuma justificativa foi apresentada.

 

Afirmou-se basicamente que “as empresas deficitárias não têm ‘crédito’ oponível à Fazenda Pública. Lucro e prejuízo são contingências do mundo dos negócios. Inexiste direito líquido e certo à ‘socialização’ dos prejuízos, como a garantir a sobrevivência de empresas ineficientes”.

 

Olvidou-se a ministra, com o devido acatamento, que não se pretende “socializar o prejuízo”, mesmo porque se trata de prejuízo meramente fiscal. O que se pretende é evitar que haja a incidência do Imposto de Renda sobre lucro inexistente. A ausência de acréscimo patrimonial quando há prejuízo acumulado é representada pelo seguinte quadro elaborado por Aroldo Gomes De Mattos1:

 



 

Em continuidade, os demais ministros acompanharam a divergência sem fazer maiores considerações a respeito do tema, com exceção do ministro Marco Aurélio, que reforçou seu posicionamento.

 

Feito esse breve apanhado, percebe-se que existem ao menos quatro motivos para que o referido julgamento não possa ser utilizado como leading case:

 

1)  embora tenha sido designado relator para acórdão, o ministro Eros Grau não apresentou voto divergente, sendo certo que sua única manifestação no inteiro teor do acórdão é a seguinte: “Sr. Presidente, entendo que se trata de um benefício. Pelas razões que Vossa Excelência acabou de expor, nego provimento ao recurso”;

2)  um tema de enorme importância e complexidade foi pretensamente resolvido com uma manifestação oral do ministro Nelson Jobim, cuja degravação rendeu 15 linhas, o qual, ademais, por ser o Presidente da Corte à época, sequer participou da votação;

3)  não há justificativa no acórdão para que o direito à compensação de prejuízo tenha sido considerado benefício fiscal; e

4)  não foram abordados todos os fundamentos capazes de justificar a inconstitucionalidade da “trava de 30%”

 

Acerca do conceito de benefício fiscal, precisas são as palavras de José Maria Arruda de Andrade2:

 

Benefício Tributário: gastos indiretos do governo que configuram renúncia de receita e que se valem da legislação tributária para atender a objetivos econômicos e sociais. Há de se conjugar dois elementos: (i) uma norma jurídica que represente um desvio ao sistema tributário de referência e que possua (ii) um caráter semelhante ao do gasto público direto, mas que se vale da forma indireta, representativa da perda de arrecadação tributária potencial em favor de uma disponibilidade econômica dos contribuintes, que não foram obrigados a recolher o tributo alvo da medida.

 

Ora, a própria Receita Federal do Brasil admite expressamente que a compensação de prejuízo não representa renúncia fiscal, pois “faz parte da estrutura do imposto de renda”. É o que se observa do seguinte trecho extraído do demonstrativo dos gastos tributários PLOA 20193 (p. 23):

 

“Outra definição fundamental é a possibilidade de carregamento de prejuízos apurados em exercícios anteriores para utilização como forma de redução de lucros apurados em exercícios futuros. Atualmente, a legislação brasileira permite a compensação dos prejuízos de exercícios anteriores com o lucro apurado no presente, até o limite de 30% do lucro.

A definição desses critérios e a graduação das alíquotas faz parte da estrutura do imposto de renda. Os impactos na arrecadação decorrentes de sua escolha ou de sua alteração não são considerados gastos tributários, pois configuram a própria referência do tributo. Por outro lado, as medidas que se desviam dessa composição e beneficiam algum grupo de contribuintes, por mais nobre ou meritório que seja o motivo, são consideradas gastos tributários.”

 

Isso significa que os arts. 42 e 58 da lei 8.981/95 não se caracterizam como “uma norma jurídica que represente um desvio ao sistema tributário de referência”, pois o direito à compensação de prejuízo fiscal de anos anteriores configura elemento natural e indispensável para que não haja a incidência do Imposto de Renda sem o necessário acréscimo patrimonial.

 

Ainda na vigência do decreto-lei 2.627/40, o seu art. 136, II, era expresso ao dispor que o saldo devedor do exercício anterior deveria ser abatido da conta de “lucros e perdas”:

“Art. 136. A demonstração da conta de lucros e perdas acompanhará o balanço e dela constarão:     

(...)
II – A débito:
a) saldo devedor do exercício anterior.
(...)”

 

Seguindo o mesmo rumo, a legislação societária atualmente em vigor é ainda mais explícita ao dispor que, para apuração do resultado do exercício, mostra-se necessário deduzir os prejuízos acumulados. É o que dispõe o art. 189 da lei 6.404/76: “Do resultado do exercício serão deduzidos, antes de qualquer participação, os prejuízos acumulados e a provisão para o Imposto sobre a Renda.”

 

Não por outro motivo foi suscitado, no recurso extraordinário que será julgado no próximo dia 29 de maio, a questão afeta ao conceito de lucro, que pode ser sintetizada nos ensinamentos de Antonio Roberto Sampaio Dória4:

 

Ora, qual o ramo do Direito Privado que define o alcance do conceito de lucro? Particularmente o Direito Comercial e, dentro dele, a legislação societária. Já era da tradição legislativa anterior sobre as sociedades por ações (Dec.-lei 2.627, de 26.7.40, art. 136, II a) que o primeiro item a abater da receita das empresas, para lhes determinar o lucro, era o ‘saldo devedor do exercício anterior’, ou seja, os prejuízos passados.

A atual lei societária, Lei n° 6.404, de 15.12.76, dispõe similarmente, embora de modo mais explícito e incisivo, em seu art. 189:

(...)

Em consequência, se no âmbito do Direito Privado, que o define, o lucro é o resultado do exercício menos os prejuízos acumulados, não pode o legislador tributário, ao criar uma incidência tributária (contribuição social), alterar aquela definição e alcance, sob pena de infringir o citado art. 110 do CTN, lei de hierarquia superior. O lucro, sobre que possa incidir, pois, a contribuição em apreço, é o ganho societário deduzido de prejuízo anterior. Exegese contrária equivaleria a ler, na Constituição, a expressão lucro como capital, na forma apontada nos itens precedentes.”

 

Diante da narrativa acima, espera-se que o STF, com base no § 3º do art. 1.038 do Código de Processo Civil5, aborde os seguintes pontos ao julgar o RE 591.340:

a)  a ofensa ao conceito de lucro;

b)  a limitação à compensação de prejuízos acarreta tributação sobre o patrimônio e cria imposto novo sem cumprir os requisitos do art. 154, I, da Constituição da República, que disciplina o exercício da competência residual da União;

c)  tributação ilegítima do patrimônio configura confisco e violação ao princípio da capacidade contributiva;

d)  tal como alerta Marcos de Aguiar Villas-Bôas6, a limitação à compensação de prejuízo fiscal pode acarretar situação em que empresas que apuram resultados iguais sofram tributação 70% maior, o que que afeta diretamente a concorrência e ocasiona tributação regressiva, além de afrontar os princípios da isonomia e da justiça fiscal7; e

e)  a “trava de 30%” representa empréstimo compulsório sem o cumprimento das exigências previstas no art. 148 da Constituição Federal.

 

Aguardemos...

____________

1 in A Compensação de Prejuízos Fiscais. RDDT 17. São Paulo: Dialética, 1997, p. 54.

2 Como entender os benefícios tributários, financeiros e creditícios

3 Demonstrativo dos Gastos Tributários PLOA 2019 

4 in “A Incidência da Contribuição Social e a Compensação de Prejuízos Acumulados”, Revista de Direito Tributário, vol. 53/87, São Paulo, RT.

5 “Art. 1.038 (...) § 3º O conteúdo do acórdão abrangerá a análise dos fundamentos relevantes da tese jurídica discutida.” 

6 É preciso extirpar do sistema a trava de 30% de prejuízos fiscais.

7 “A justa repartição da carga tributária total entre os cidadãos é imperativo ético para todo o Estado de Direito.” (Klaus Tipke, 2002).

____________

*Rafael Alves dos Santos é addvogado e Contabilista. Sócio de Abreu, Freitas, Goulart & Santos - AFGS Advogados. Coordenador e professor do curso avançado de jurisprudência tributária (PJT). Membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF).

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