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O velho e o novo princípio da intervenção mínima do Estado nos contratos empresariais. Novos parâmetros para a intervenção do juiz

O resultado dessa nova construção se revela potencialmente de forma extremamente benéfica para a realização de negócios entre empresários, fortalecendo-se o mercado pelo estabelecimento de um novo nível de segurança jurídica que se espera seja reconhecida pelas cortes superiores ao longo do tempo de uma nova experimentação.

16/5/2019

Sabe-se que o contrato é um dos instrumentos mais importantes para a realização de trocas econômicas e que os empresários particularmente os têm como um dos meios mais idôneos para o exercício de sua atividade e a exigência fundamental se dá no plano de sua eficácia.

Para os empresários não basta que o contrato seja existente e válido. É fundamental também que seja eficaz na expressão mais intensa do seu significado. Essa eficiência se traduz em alguns elementos a serem preenchidos, entre outros: facilidade e rapidez na contratação, clareza do conteúdo e extensão das obrigações recíprocas, garantias de boa qualidade e execução rápida no tempo e plena no seu conteúdo (enforcement). Esse último ponto é sabidamente uma ferida aberta nas relações empresariais, que apresenta muitas vezes enorme dificuldade para a sua cura.

No sentido acima destaca-se a proverbial demora do Judiciário em alcançar o fim do procedimento dentro de um prazo razoável e a prática de um ativismo judicial ideológico na proteção da parte que se entende ser a mais fraca na relação jurídica concertada, mesmo que o negócio seja feito entre dois empresários no livre e pleno exercício de sua atividade. O contexto é integrado por normas contratuais muito abertas, como o da função social do contrato, que tem sido sujeita a críticas de toda a espécie quanto ao seu conteúdo e interpretação. Acrescente-se, por exemplo, o conceito de onerosidade excessiva, fonte de muitas pendências nas nossas cortes. Algumas saídas novas têm sido construídas pelo Judiciário, até mesmo de natureza inusitada, como o do adimplemento substancial do contrato, a proteger o devedor que não cumpriu integralmente a sua obrigação.

O problema acima é muito sério. Que direito tem o juiz de penetrar nas relações entre partes, principalmente empresários, para determinar que um devedor fica dispensado de adimplir uma parcela de suas obrigações econômicas? De dez parcelas da dívida, uma parcela não paga de nove corresponderia ao mencionado adimplemento substancial? Que tal duas, ou mesmo três, considerando-se ainda que poderá ser agregado na sentença um desconto pelo eventual reconhecimento da presença de onerosidade excessiva?

Ora, o balanço do empresário credor não quer saber dessas firulas. O que não é pago é prejuízo e pronto. E se a coisa se multiplica, a conta ficará significativamente negativa ao ponto de reduzir o lucro do credor e prejudicar a sua atividade. E, se o adimplemento substancial do seu devedor o afeta, não poderia ele repassá-lo, por sua vez, para o seu credor, dentro de uma cadeia que somente terminaria na fonte principal da operação? Afinal de contas as empresas operam em cadeias dentro do seu mercado e o que afeta uma pode também gerar efeitos negativos na linha ascendente. Ainda que a situação seja uma hipótese, mais rara e cerceada pela própria natureza dos mercados, em tese pode-se pensar igualmente na caracterização de risco sistêmico fora da atividade tipicamente bancária. Isto é o que claramente pode ser visto no ramo da mineração no Brasil, depois dos dois episódios das barragens da Vale, com efeitos trágicos em todo mercado correspondente, especialmente em Minas Gerais. E os danos foram mais longe, atingindo terceiros setores, como os do turismo em toda a sua cadeia.

Em vista de tais considerações, buscando resolver alguns desses problemas, recentemente a MP 881, de 30.4.2019 trouxe mudanças importantes em relação à intervenção do Estado na vida do contrato interempresarial. Nesse contexto importa lembrar o tempo em que se atendia o princípio da autonomia da vontade, segundo o qual o Estado não tinha qualquer poder para intervir na liberdade das partes em contratar. Chegou mais tarde o momento do estabelecimento do princípio da autonomia privada, reconhecendo-se a existência de limites aos particulares nesse campo e, consequentemente o poder do Estado de previamente determiná-los por meio de princípios, colocados a partir da CF e do Código Civil, a exemplo dos artigos 421 e 422 deste último que mereceram nossa crítica em outro lugar.

Observou-se ao longo do tempo um forte desvio da atividade do Poder Judiciário por força de uma intervenção indevida na vida interna dos contratos, sob o manto da função social e da boa-fé objetiva.

O novo princípio da intervenção mínima do Estado foi taxativamente estabelecido pela nova redação dada ao art. 421 do CC/02, ao qual também se acrescentou um parágrafo único, da seguinte forma:

“Art. 421.  A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica.

Parágrafo único.  Nas relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima do Estado, por qualquer dos seus poderes, e a revisão contratual determinada de forma externa às partes será excepcional”.

A primeira novidade está na submissão dos limites inerentes à função social do contrato aos termos da Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que são muito extensos e abertos. Desse fato decorre naturalmente uma imprecisão dos conceitos e grande dificuldade para entender o seu alcance e operacionalizá-los. Esse ato interpretativo somente poderá ser feito com alguma segurança quando se toma a ideia mãe das mudanças efetuadas por meio daquela Declaração, a partir da consciência de que, no campo contratual, devem prevalecer os ditames da liberdade de iniciativa e do livre exercício da atividade econômica, reduzindo-se o papel do Estado ao de agente normativo e regulador, tal como consta precisamente das linhas estabelecidas pela CF (arts. 170 e segs), que devem ser resgatadas.

De certa forma, cuida-se de dar um novo sentido ao papel do operador do direito nessa área, passando-se a utilizar uma exegese funcional finalística dos contratos, fundada nos princípios acima mencionados. Como se percebe, o grau de reconhecimento dos efeitos da autonomia privada tornou-se sensivelmente mais amplo, mas cercada de alguns perigos que somente com o tempo serão superados na sua incerteza por obra do trabalho da doutrina e da jurisprudência.

Não se pode deixar de perceber que o princípio da função social do contrato, tal como se encontrava na redação anterior do art. 421 do CC/02 perdeu espaço em função dos limites que foram estabelecidos pelos termos do seu novo parágrafo único. Este encerra, por sua vez, dois outros princípios: (i) o da intervenção mínima do Estado nas relações contratuais privadas; e (ii) a revisão contratual externa deverá ser feita de forma excepcional.

Dos dois parâmetros acima citados evidentemente o segundo constitui um novo marco balizador da intervenção judicial na economia interna do contrato. E isto se dá de forma abrangente, dentro do quadro da teoria geral do contrato, como também em função das alterações expressas, efetuadas nos artigos 423 e nos novos artigos 480-A e 480-B1.

No sentido acima o art. 480 dispõe de maneira geral que, se em um contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, ela poderá pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva. A larga aplicação dessa faculdade pelo Judiciário tem acarretado certo nível de abuso em revisões contratuais, fundado muitas vezes na pretensa necessidade de proteção da parte mais fraca, seja do ponto de vista jurídico, seja econômico. O resultado tem sido o do sensível aumento dos custos de transação e a consequente inserção no preço do contrato dos efeitos correspondentes, por iniciativa da parte que faticamente detém o poder para tanto. Resulta que os preços de produtos e serviços terminam ficando mais caros porque o mercado precifica a intervenção do Judiciário e isto acontece de forma bastante rápida em resposta a orientações dos Tribunais que afetem os interesses (na maioria dos casos legítimos) dos empresários.

Dentro desse cenário, em boa hora o art. 480-A deu às partes, nas relações interempresariais o direito de estabelecerem no momento da contratação certos parâmetros objetivos voltados para orientar a interpretação dos requisitos de revisão ou de resolução do acordo. Em complementação o art. 480-B determina que nas mesmas relações interempresariais deve-se presumir a simetria dos contratantes e observar como eles alocaram os riscos da forma como assim definiram. 

O que se percebe no parágrafo anterior é que, quando se trata de contratos entre empresários, fica reconhecida a sua igualdade (em caráter de presunção juris tantum), nelas não se dando lugar a entender que um deles seja considerado hipossuficiente para efeito da proteção legal, a menos que no caso concreto essa verdade seja desmentida. E dessa forma, se as partes construírem tais parâmetros objetivos, o julgador estará obrigado a obedecê-los diante de um pleito que tenha sido levantado por aquela que entender tiver sido prejudicada em alguma circunstância.

O resultado dessa nova construção se revela potencialmente de forma extremamente benéfica para a realização de negócios entre empresários, fortalecendo-se o mercado pelo estabelecimento de um novo nível de segurança jurídica que se espera seja reconhecida pelas cortes superiores ao longo do tempo de uma nova experimentação.

Ressalte-se que as relações de consumo permanecem regidas pelo CDC, sem alterações.

Os lineamentos aqui apresentados afloram apenas a superfície dos temas apresentados, a serem desenvolvidos no seu estudo, vindo este texto a integrar o item próprio da abordagem da teoria geral do contrato, objeto da nova edição do quarto volume da coleção de Direito Comercial ao autor, a ser brevemente publicada pela Editora Quartier Latin, revista, ampliada e completada.

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1 “Art. 480-A.  Nas relações interempresariais, é licito às partes contratantes estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação de requisitos de revisão ou de resolução do pacto contratual.”

“Art. 480-B.  Nas relações interempresariais, deve-se presumir a simetria dos contratantes e observar a alocação de riscos por eles definida.”

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor Sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP e sócio de Duclerc Verçosa Advogados Associados

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